Ministério Público pede fim de captação irregular de água, autorizada por decisão liminar do Tribunal de Justiça do Tocantins mesmo depois de vencido, em 31 de julho, o prazo de outorgas dadas aos latifundiários da região; povos tradicionais são os prejudicados
Por Márcia Maria Cruz, em De Olho nos Ruralistas
Em plena pandemia, os povos indígenas e assentados da bacia do Rio Formoso, no Tocantins, travam uma batalha judicial para garantir seu direito à água. Apesar de viverem em uma região rica em recursos hídricos, o acesso à água potável pelas comunidades tem sido ameaçado pelo aumento na captação de água, realizada de forma irregular por fazendeiros da região para irrigar lavouras de soja.
No dia 26 de agosto, a desembargadora Etelvina Maria Sampaio Felipe concedeu à Associação dos Produtores Rurais do Sudoeste de Tocantins (Aproest) uma liminar autorizando a prorrogação de prazo para as outorgas de captação de água por grandes empreendimentos agroindustriais. Desde 2016, esse prazo, originalmente fixado em 31 de julho, vinha sendo estendido na Justiça para o dia 15 de agosto, dentro do período mais crítico da estiagem no Cerrado tocantinense, que ocorre entre os meses de julho e setembro.
No entanto, entre julho e agosto de 2020, três decisões consecutivas do juiz federal Wellington Magalhães, da comarca de Cristalândia (TO), haviam mantido o prazo em 31 de julho. Com isso, quaisquer captações realizadas na bacia do Rio Formoso após essa data estariam irregulares e passíveis de multa.
No esforço de salvar a bacia hidrográfica, o Ministério Público do Tocantins (MPTO) entrou, no dia 03, com um agravo de instrumento solicitando a revogação da liminar de 26 de agosto. Segundo a denúncia, o bombeamento pelas fazendas já teria secado trechos do Rio Urubu, onde é possível ver a terra rachada em seu leito seco.
A ação é ratificada por 51 organizações da sociedade civil, entre as quais sindicatos, associações indígenas, pastorais sociais, coordenações quilombolas e atingidos por barragens, que encaminharam nota à desembargadora solicitando a revisão imediata das outorgas.
FAZENDEIROS DESMATAM ILEGALMENTE E NÃO TÊM LICENCIAMENTO
A retirada de água prejudica as comunidades indígenas, ribeirinhas e camponesas que dependem dos rios para sobreviver. A batalha para o acesso à água teve início em 2016, quando o MPTO encaminhou uma denúncia expondo os danos ambientais causados pela irrigação. Na época, em uma audiência pública determinada pela Justiça, os produtores se comprometeram a instalar um sistema de gestão da bacia para verificar as condições de captação. Foram colocados equipamentos de última geração para monitoramento em tempo real dos volumes captados.
O acordo também previa a revisão das outorgas neste ano. O Ministério Público, no entanto, apontou que alguns produtores e empreendedores tinham irregularidades em relação ao licenciamento ambiental e identificou , nas propriedades, áreas desmatadas além do permitido — em alguns casos até um terço de área estava ilegalmente plantada.
Foi definida pela Justiça, então data limite para retirada de água até 31 de julho, prorrogável para 15 de agosto, até que fosse concluída a revisão das outorgas de uso da água. A revisão de outorgas é a quarta fase da solução técnica Gestão de Alto Nível, proposta pelo Instituto de Atenção às Cidades (IAC) da Universidade Federal do Tocantins (UFT) e pactuada por todos os atores envolvidos em 5 de dezembro de 2016, em audiência pública.
No entanto, próximo ao prazo de 15 de agosto, os produtores entraram com pedido de liminar na Tribunal de Justiça. As organizações denunciam que eles insistem em captar os recursos hídricos, mesmo no período de estiagem, quando os cursos d’água não são suficientes para manter os rios vivos. Em toda a bacia, há instaladas 120 bombas de captação. Segundo ação do MP, as bombas tem o dobro de vazão da bomba que alimenta a capital Palmas, o que faz com que os cursos d’água desapareçam, de uma hora para outra, quando as bombas são ligadas.
O sistema de monitoramento das captações foi desenvolvido e é realizado pelo Instituto de Atenção às Cidades (IAC) da Universidade Federal do Tocantins (UFT). “A situação, em agosto e setembro, é sempre grave”, diz o professor Felipe de Azevedo Marques, que preside o instituto. “Por ser um período prolongado sem chuva, naturalmente a vazão do rio vai lá embaixo. Com as captações vira um desafio muito grande fazer a gestão dos recursos hídricos”. Ele destaca que a tecnologia foi apresentada em 2016, quando o Rio Formoso secou completamente. “Apresentamos solução técnica, que começava com um sistema de monitoramento, que ainda não existia no país e foi desenvolvido por nós, e terminava com a revisão das outorgas”.
O sistema permite monitorar a oferta e a demanda remotamente e em tempo real. “Com esse sistema, financiado pelos produtores, conseguimos fazer uma gestão de alto nível na bacia. Só não conseguimos, em definitivo, assegurar as captações, porque as outorgas têm uma série de problemas que precisam ser corrigidos”. Segundo Marques, somente com a revisão das outorgas serão sanados os problemas da bacia. “Sem a revisão das outorgas tudo o que a gente construiu não vale de nada. Estou monitorando tudo, mas não sei dizer se está certo ou errado. Só vou saber, quando revisar as outorgas para equilibrar a oferta e demanda”.
UMA SÓ BOMBA D’ÁGUA DOS SOJEIROS ABASTECERIA PALMAS
As organizações definem que as captações resultam em momento dramático:
— A forte estiagem, que assola o estado do Tocantins, e a exorbitante quantidade de água retirada dos rios tornam a situação dramática na região. Considerando que cada bomba tem capacidade de retirar, em média, 1.600 litros de água por segundo, ligada 24 horas/dia, são 96.000 litros/minuto, 138.240.000 litros/24 horas e 4.147.200.000 litros/30 dias. A título de comparação, a cidade de Palmas tem 306.296 habitantes, a sua principal estação elevatória para abastecer cerca de 70% da capital retira 800 L/s do curso d’água. Podemos concluir que só uma bomba dos produtores rurais abasteceria a cidade inteira de Palmas.
E denunciam que, ano a ano, o aumento nas áreas plantadas prejudica ainda mais os cursos hídricos. “Muito nos preocupa ver situação da diminuição das águas nesta bacia, sobretudo os canais que são verdadeiras transposições do rio e são exclusivamente para atender à necessidade de produtores cujos produtos dessas culturas raramente contribuem com a alimentação das comunidades atingidas”, escrevem na nota enviada à desembargadora.
A nota informa também que o uso de agrotóxicos, nas plantações de soja, causa contaminação de peixes, tartarugas, animais silvestres e aves. “A contaminação do meio ambiente também é a contaminação de pessoas da região, através do consumo de alimentos e do consumo da água”.
A reportagem entrou em contato com o Tribunal de Justiça, mas até o momento não obteve resposta.
Foto principal (Caoma/MPTO): rios da bacia do Rio Formoso ameaçados pela irrigação da soja