A eterna epidemia do racismo ambiental: o saneamento e a produção do genocídio eugenista brasileiro


Por Victor de Jesus, na Anpocs

A pandemia do Coronavírus tem escancarado as desigualdades sociais no Brasil, que sob a frieza dos números têm revelado uma realidade dramática de parcela significativa da população negra que não tem sequer saneamento para a higiene (prevenção) básica de lavar as mãos, o que produz, dentre outros fatores, maior letalidade da covid-19 na população negra, pobre, do Norte e Nordeste[1]. É significativo que um vírus invisível esteja contribuindo para explicitar um problema historicamente invisível no debate científico e midiático brasileiro, o racismo ambiental. 

Compreende-se por racismo ambiental como um dano ambiental desproporcional, independente da intencionalidade, que tem historicamente impactado a saúde e a vida da população negra e indígena, além de excluir-lhes dos processos e planejamentos que impactam diretamente sua cultura e sua existência nos seus territórios. Diversos conflitos ambientais racializados estão no escopo do racismo ambiental[2]. Aqui, atentarei para o saneamento básico[3].

Historicamente tem havido um acesso desigualmente racializado aos serviços de saneamento básico. Desde os navios tumbeiros de África até os dias atuais, a população negra tem sido cerceada das condições básicas de saneamento e higiene e, portanto, do direito fundamental à saúde, ao ambiente sadio e à habitação digna. Em 2010, mesmo a população negra sendo 51% da população brasileira, representava 62% da população sem água encanada, 59% da população sem rede de esgoto e 79% da população que sequer tinha banheiro em casa. A consequência dessa realidade é de 97.897 óbitos de pessoas negras entre 1996 e 2014 por Doenças Relacionadas ao Saneamento Ambiental Inadequado (DRSAI), doenças consideradas evitáveis, negligenciadas e da pobreza. Isso equivale à queda de 40 aviões/ano, ou ainda, a cada uma hora e meia morre uma pessoa negra no Brasil por falta de saneamento, sendo metade delas bebês e idosos[4].

Essa é uma realidade colonial que parcela significativa da população negra ainda vive no dito Estado Democrático de Direito, impondo à população negra uma vivência historicotidiana[5] em meio ao lixo, ao esgoto, sem água em quantidade e qualidade desejáveis e exposta aos riscos da água da chuva e das doenças pela falta de saneamento. Uma realidade na qual a própria população negra tem sido tratada como lixo, como merda, coisificada e esvaziada enquanto sujeitos, forjada em relações sociais racialmente subalternizadas e em um imaginário social racialmente estigmatizado de que pessoas negras são sujas, fedidas e imundas e que, portanto, reificam o lugar social naturalizado como normal de que esses são os lugares concretos e simbólicos de ser negro[6].

Nesse sentido, o saneamento e o racismo ambiental têm se constituído como importantes tecnologia-mecanismos de biocontrole racial, atualizando o projeto eugenista de Brasil e produzindo um genocídio da população negra a partir da destituição das condições básicas de saúde, de ambiente salubre e de habitação digna, sob a recusa escravocrata e eugenista da humanidade, da cidadania e da dignidade da população negra brasileira. Isto é, sob a histórica recusa da população negra como sujeitos e como sujeitos de direitos, que a afasta da cidadania e consequentemente afasta também o Brasil dos princípios e da realidade republicana e democrática. 

Esse contexto nos convoca então a olhar, refletir e questionar desde a historicidade das desigualdades raciais e do racismo ambiental no Brasil, mas também o papel histórico das Ciências Sociais Brasileiras na instituição do racismo científico e da eugenia brasileira na legitimação do negacionismo do racismo brasileiro via a criação do mito da democracia racial, até o seu silenciamento atual em que algumas áreas e subáreas têm se mantido impermeáveis à problematização da constituição do racismo, como a Ciência Política, a sociologia ambiental, a sociologia da saúde, a sociologia urbana, as teorias de Estado, cidadania e políticas públicas, e as discussões sobre cotidiano, cultura e habitus. 

É tardia e urgente a importância de pensar as condições políticas, sociais e culturais que forjam um historicotidiano de racismo ambiental (institucional e estrutural), assim como a tarefa de refletirmos sobre o papel de cada um(a) de nós[7] para que o racismo e as desigualdades raciais sejam enfrentados. Enfim, nova pandemia (contemporânea), velhas desigualdades (coloniais), a colonialidade, a eugenia republicana e o racismo ambiental continuam dando as cartas, uma realidade que tem contribuído para a pandemia histórica e colonial da população negra através de políticas sutis para matar e deixar morrer, como mostram os dados da racialidade dos óbitos da covid-19, das mortes por inadequação em saneamento e saúde, do homicídio e da violência estatal-policial.

Victor de Jesus é doutorando do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais (PGCS) da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) e também membro associado da Associação Brasileira de Pesquisadores Negros (ABPN).

Notas:

1 Ver 11ª Nota Técnica (NT) do Núcleo de Operações e Inteligência em Saúde (NOIS) da PUC-Rio (CTC/PUC-Rio); Boletim Socioepidemiológico da Covid-19 nas Favelas, da Fiocruz; análise de dados e cartografia da Pública (Agência de Jornalismo Investigativo); além de painéis e boletins das Secretarias Estaduais de Saúde. No entanto, segundo o levantamento feito pelo consórcio de veículos de imprensa, apenas 8 estados (AL, AM, CE, ES, PR, RN, RO e RS) têm divulgado os dados raciais dos doentes e mortos pelo coronavírus.

2 Por exemplo, o impacto de resorts e condomínios de luxo em áreas protegidas, usinas hidrelétricas-eólicas-carvoeiras, latifúndios agropecuários, monocultura de soja e  eucalipto, indústrias petroquímicas- farmacêuticas, carniciculturas, atividades mineradoras, poluição por pesticidas e agrotóxicos e tantas outras cujos danos/custos ambientais têm sido historicamente arcados pelos povos originários(“indígenas”) e pela população negra em benefício do grande empresariado agroindustrial branco-urbano-sudestino.

3 Basicamente, o saneamento básico compreende as obras, serviços e infraestruturas de abastecimento de água, esgotamento sanitário, drenagem pluvial e resíduos sólidos.

4 Ver “Racializando o olhar (sociológico) sobre a saúde ambiental em saneamento da população negra: um continuum colonial chamado racismo ambiental”, de Victor de Jesus. Disponível em: <https://www.scielo.br/pdf/sausoc/v29n2/1984-0470-sausoc-29-02-e180519.pdf>.

5 Da colonização (histórica) aos dias atuais (cotidiana).

6 Ver “Coisas negras no quarto de despejo: saneando subjetividades, corpos e espaços”, de Victor de Jesus. Disponível em: <http://objdig.ufrj.br/42/teses/860943.pdf>.

7 Na condição de pesquisador(a) – cidadã/cidadão, que são indissociáveis.

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Este texto é parte de uma série de boletins sequenciais sobre a questão étnico-racial em tempos de crise que será publicado ao longo das próximas semanas. Trata-se de uma ação conjunta que reúne a Associação Nacional de Pós-Graduação em Ciências Sociais (ANPOCS), a Sociedade Brasileira de Sociologia (SBS), a Associação Brasileira de Antropologia (ABA), a Associação Brasileira de Ciência Política (ABCP) e a Associação dos Cientistas Sociais da Religião do Mercosul (ACSRM). Esse é um esforço para continuar dando visibilidade ao que produzimos e afirmar a relevância dessas ciências para o enfrentamento da crise que estamos atravessando.

A publicação deste boletim também conta com o apoio da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC/SC), da Associação Nacional de Pós-Graduação em Geografia (ANPEGE), da Associação Nacional de Pós-Graduação em História (ANPUH), da Associação Nacional de Pós graduação e Pesquisa em Letras e Linguística (Anpoll) e da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional (Anpur).

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Foto: Fernando Frazão/ Agência Brasil

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