Por mariam pessah, no Blog da Boitempo
Hoje, dia 28 de setembro, é o dia latino-americano e caribenho pela descriminalização e legalização do aborto. Nesta data, o aborto grita e sai das gavetas.
De todas as gavetas? Em todos os lares a data é engavetada durante o resto do ano? Em todos os lares a data é lembrada?
Não.
Por isso precisamos falar sobre aborto
O primeiro texto que escrevi, mais parecido com um ensaio, foi O que temos a ver as lésbicas com o aborto? Corria o ano de 2004 e disso não se falava. Eu voltava de Montevidéu, de estar junto com as companheiras na votação da lei pela legalização do aborto. Não saiu, mas tentamos. Já o presidente Tabaré Vázquez (mais um “esquerdo”-macho que compunha o Frente Amplio) tinha avisado que, mesmo ganhando a votação, não haveria lei, pois ele a vetaria.
Companheiro. De quem?
Os homens abandonam lares, crianças e adolescentes todos os dias, mas disso não se fala.
Os homens estupram todos os dias, MATAM mulheres, mas isso tudo não é notícia, não engrossa as estatísticas do patriarcado.
Quando recentemente uma menina ficou grávida, a notícia não falavam sobre ele, por exemplo : Um homem estuprou por 4 anos a sua sobrinha-menina de 10 anos, até descobrirem ela grávida. Então ele sumiu. Procuramos com urgência o paradouro de um pedófilo que periga atacar novas crianças. Não. A grande mídia cúmplice do patriarcado reproduzia notícias da menina, da preocupação com um possível aborto que é legal no Brasil, desde 1940. Mas não se preocupavam com um aborto num corpinho-menina. Chamavam ela de mãe! Uma criança estuprada não é mãe, mas o homem sim é um estupra-dor. Foi chamada até de assassina por alguns e algumas. Ela! A menina! Ela, a criança a quem os homens do sistema queriam tornar mãe! Ela, a menina estuprada desde os seis aninhos! Mas esses mesmos homens nunca se perguntaram onde estava o abusador. Cadê o tio? Nunca vi um titular desses. As manchetes todas visavam a vítima e a preocupação com a possível morte de um punhado de células que ainda não se tornaram um ser humano. Mas com a menina-humana, que poderia morrer, não expressavam nenhuma preocupação.
Por que não se importam? Porque é menina, porque é mulher, porque é de classe baixa. Negra, talvez.
Porque esse ser, se nascesse, viria a engrossar a fileira da oferta de mão-de-obra que é obrigada a trabalhar em troca de quase nada. A classe alta, a classe media, a classe homem*, precisam de pessoas que as sirva em troca de baixos e baixíssimos salários. E até sem salário. Pessoas pobres, de baixa autoestima. Pessoas concebidas num estupro.
Pessoas nessas condições acabam sendo absolutamente funcionais ao sistema patriarcal capitalista, pois ele precisa delas. Sabemos que existe uma classe alta, porque existem pessoas exploradas. Pensemos, se o aborto fosse legal, se as mulheres e corpos gestantes pudessem decidir por si mesmxs, como o fazem os homens, a autoestima das mulheres mudaria. A dos homens também, pois os seus privilégios se veriam atingidos, assim como os bolsos de alguns deles. É o caso dos donos das clínicas de aborto clandestino.
Enquanto isso, nós temos que seguir nos explicando por que usamos o termo feminismo, e, tanto homens, quanto mulheres ainda acham o termo “um pouco forte”. Chegam a nos chamar de radicais, de exageradas, de “feminazis”. A nós, que em lugar de fazer mal, em lugar de matar ou estuprar lutamos para sermos livres em pleno século XXI!
Insisto, os homens abusam, estupram, matam, mas não são notícia. Notícias são as mulheres e meninas que desejam e precisam abortar.
Vamos falar com propriedade.
Mulher gestante não é mãe. A mãe nasce com o desejo de trazer ao mundo uma criança, um ser humano.
Estuprador não é pai. Pai é um homem responsável pela vida que gera.
Menina não é mãe. Gestar e parir uma vida não é uma brincadeira. Brincadeira é ter que aclarar isto. Menina abusada e violada tem que ser acolhida. Porque uma menina abusada e violada, não é uma mãe, é uma brutal consequência da ditadura patriarcal capitalista.
Assim como uma mulher que fica grávida e afirma não ter ou não estar em condições de trazer essa futura criança ao mundo. Se sonhamos com outro mundo, temos que começar por escutar, (ou)vir a entender as razões que tantas mulheres e pessoas gestantes têm para não desejar se tornar (mais uma vez) mães.
O que poderíamos ler nas entrelinhas é que ser um maltratador, um estuprador não corrompe a instituição familiar. Mas abortar, sim. O ato de pensar e pensar em aborto, sim. Fazer um aborto — dizem eles — torna às mulheres assassinas de fetos. Brasil é presidido por um milico que, quando era deputado, gritou na cara da Ministra dos Direitos Humanos, que só não a estuprava porque ela não merecia. O Brasil de hoje está presidido por um ser que divide às mulheres entre as que merecem e as que não merecem ser estupradas. Recentemente o Ministério de saúde criou a Portaria 2282 que gera exigências para burocratizar o processo e dificultar o acesso ao aborto previsto em lei. Como eu já disse, um direito garantido desde 1940. Isso acontece no Brasil presidido por um milico confesso adorador do torturador Brilhante Ustra.
Surpreende?
Desde 2018, e antes, temos lutado já não para obter mais direitos, mas para não perder os direitos já adquiridos.
Quando em 2004 eu escrevi sobre as lésbicas e o aborto, associava as duas sexualidades sem função de reprodução e falava de prazer. Sim, falava em prazer sexual.
Até quando Brasil? Até quando suportaremos essas mentiras? Esses enganos? Essas mensagens distorcidas de “realidade”?
Pensemos no dia 28 de setembro como um dia de revolta, um dia de volta à vida, à luta. Nós precisamos estar unidas e erguidas.
Precisamos falar de aborto e de tudo que há nas suas voltas.
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Créditos: Reprodução/Wikipedia