A UHE de Formoso parecia ser um capítulo vencido na história do São Francisco, mas virou prioridade do governo Bolsonaro
Amélia Gomes, Brasil de Fato
O rio São Francisco é um dos principais cursos hídricos do nosso país. Por sua extensão e vazão, o Velho Chico é o responsável pelo abastecimento direto em centenas de municípios brasileiros, atendendo às famílias, empresas e à agricultura. Além disso, suas águas são abrigo para uma importante biodiversidade, são fonte de sustento e alimento de pescadores e também servem de meio de transporte em diversas regiões.
No entanto, o São Francisco e consequentemente todos que dele dependem estão em risco com a possibilidade de construção de mais uma hidrelétrica no rio. Tramita no governo federal, sem qualquer diálogo com a sociedade, um processo de licenciamento para a construção da UHE de Formoso, na cidade de Pirapora (MG).
Por debaixo dos panos
O projeto foi divulgado no fim de 2019 e pegou de surpresa as comunidades ribeirinhas, o Comitê da Bacia do São Francisco e até mesmo a prefeitura de Pirapora.
A obra integra o Programa de Parcerias de Investimento, que potencializa o processo de privatização no Brasil. A empresa responsável pela hidrelétrica é a Quebec Engenharia. De acordo com informações disponíveis na página da empresa, a UHE de Formoso terá capacidade de 306 mw de potência e três turbinas. A área do reservatório da barragem será de 312 km2, o que equivale a 31 mil e 200 campos de futebol.
A UHE de Formosoparecia ser um capítulo vencido na história do São Francisco. É que o projeto foi proposto inicialmente 1985 pela Cemig, mas com a criação da lei estadual nº 10.629, o trecho do rio onde seria construída a usina foi declarado como de preservação permanente. Com a alteração na legislação em 2018 e o decreto estadual 47.369, que permite a geração de energia elétrica na área de preservação, o projeto foi retomado, mas agora sob o comando da iniciativa privada.
No final do ano passado, a construção da UHE foi listada como projeto prioritário dentro do PPI, mas não há especificação sobre o que isso representa na prática. Nossa reportagem tentou contato com o Ibama para entender em qual fase está o processo de licenciamento ambiental, mas não obteve retorno. A página na internet do PPI informa apenas que a obra está em fase de estudos ambientais.
Problemas ambientais e sociais
Alexandre Gonçalves, agente da Comissão Pastoral da Terra (CPT), alerta quea usina coloca em risco a dinâmica de reprodução dos peixes no rio e, consequentemente, impacta na alimentação e na renda de inúmeras famílias.
“O setor elétrico vai controlar ainda mais a vazão do rio, prejudicando o ciclo de cheia e vazante do rio, assim, cria um efeito muito negativo na ecologia e na agricultura vazanteira, tão importante para a produção de alimentos”, pontua.
O alerta é reforçado por Laís Cristina, agente da Comissão Pastoral Pescadores (CPP). Ela atenta também para o risco de rompimento da barragem. “Essa empresa já está envolvida em um outro caso de uma represa que se rompeu. Então ela também representa mais esse risco ao rio. Eles querem eliminar até a última gota do nosso São Francisco. E a comunidade está pronta para se levantar contra qualquer projeto de privatização das águas do nosso rio.”
Laís explica ainda que o local onde será construída a represa é sagrado para os povos Tuxá e diversas outras comunidades tradicionais.
Manobra para acelerar processo
A comunidade denuncia que, para agilizar o processo de licenciamento do empreendimento, há umatentativa de transferir a responsabilidade para o governo estadual. Em julho deste ano, foi firmado um termo de cooperação entre o Ibama e a Secretaria Estadual de Meio Ambiente (Semad). Em agosto o termo foi cancelado.
Questionado pela nossa reportagem sobre a situação, o Ibama não respondeu. Já a Semad informou por meio de nota, que “o processo de regularização da UHE Formoso é de competência federal, tendo em vista que se propõem a uma geração de energia igual ou superior a 300 MW. Desse modo, apenas após assinatura de Termo de Cooperação Técnica seria possível o licenciamento ser deslocado para a competência do Estado de Minas Gerais, o que até o momento não ocorreu”.
Seca histórica pode se repetir
De acordo com o Comitê da Bacia Hidrográfica do São Francisco, desde 2013 o rio enfrenta um período de seca histórica. Em 2015 esteve à beira do volume morto e somente agora, com as chuvas de 2019-2020, conseguiu recuperar a sua vazão. Situação que pode se repetir em um nível mais grave, caso o projeto da hidrelétrica seja levado adiante.
“O rio não suporta mais esse tipo de empreendimento. O que ele precisa é revitalização, saneamento básico, coleta e tratamento de esgoto, recomposição das matas ciliares e combate às erosões e não investimentos agressivos”, alerta o presidente do Comitê Anivaldo Miranda.
Na avaliação de Anivaldo Miranda, além de todos os problemas sociais e ambientais envolvidos no projeto, a proposta de construção de uma hidrelétrica para suprir a demanda energética nos dias atuais é totalmente defasada.
“É uma inversão da ordem de prioridades que a gente deveria ter. Esta hidrelétrica está sendo construída para atender interesses que não são os prioritários para o conjunto da bacia e os promotores tanto sabem que estão construindo a iniciativa longe da opinião pública”, critica.
Brasil não tem demanda por energia
Gilberto Cervinski, da coordenação do Movimento dos Atingidos por Barragens, avalia que a real motivação para a construção da usina não é a demanda energética e sim os lucros que o empreendimento vai gerar para os envolvidos.
Ele explica que somadas, todas as fontes de energia no Brasil têm capacidade de 93 mil megawatts médios, ao passo que o consumo em nosso país é de 65 mil megawatts.
“Tem uma sobra de energia elétrica de cerca de 30% de tudo que está instalado. Então porque querem construir uma hidrelétrica? Porque quem tem a concessão de usinas de energia tem o direito de jogar todo o custo dessa produção na conta de luz, está na Lei Nacional do Setor Elétrico. Então nós pagamos mesmo pelo que não consumimos.”
“Interessa às multinacionais que produzem turbinas, aos bancos que fazem os empréstimos, às empreiteiras, etc. Geram empregos por 3 anos, mas lucram com a conta de luz por 30 anos”, alerta Gilberto.
Comunidade protesta
Em repúdio à construção da UHE de Formoso, mais de 60 entidades elaboraram um abaixo-assinado contra a obra. O documento é assinado por representações como a Cáritas Brasileira, o Movimento dos Atingidos por Barragens e a Fundação de Desenvolvimento Integrado do São Francisco.
O Comitê da Bacia Hidrográfica do São Francisco está preparando um seminário virtual para discutir o tema e dar visibilidade ao problema. A primeira mesa de debates está marcada para o dia 30 de setembro.
Além disso, a entidade afirmou que vai contratar um estudo sobre a construção da UHE Formoso na calha do São Francisco para mostrar os impactos ambientais, sociais e políticos que o projeto vai trazer aos brasileiros.
Edição: Elis Almeida e Rodrigo Chagas
—
Imagem: O Velho Chico enfrenta, desde 2013, um período de seca histórica; mais de 60 entidades elaboraram um abaixo-assinado contra a obra – Foto: Agência Brasil/Fabio Pozzebom