Morte de engenheiro negro por policial no RS gera indignação e movimento Black Lives Matter local

Por Daniel Gallas, da BBC News Brasil em Londres

No dia 19 de abril deste ano, o engenheiro elétrico gaúcho Gustavo Amaral, de 28 anos, estava radiante: era seu primeiro dia como chefe de equipe, liderando uma operação de manutenção de subestações. Gustavo morava em Santa Maria e trabalhava na empresa de seu pai de serviços elétricos.

Ele dirigia o carro da empresa a caminho do trabalho em Marau, no noroeste do Rio Grande do Sul, junto com outros três colegas quando parou em uma barreira policial na estrada.

Os policiais da região haviam montado a barreira para interceptar uma caminhonete que havia sido roubada por ladrões.

Os bandidos se depararam com o bloqueio mas avançaram mesmo assim, atingindo em cheio o carro de Amaral.

Nesse momento, o jovem engenheiro elétrico e seus três colegas saíram às pressas do veículo e buscaram um lugar seguro para se proteger. Os quatro trabalhadores vestiam uniformes da empresa, que incluem calças refletoras e distintivos claramente indicados. Gustavo Amaral, o chefe, era o único negro da equipe.

Foi quando, em meio ao acidente e perseguição dos bandidos, surgiu um soldado da Brigada Militar (a polícia militar, no Rio Grande do Sul) e disparou três vezes contra Amaral, acertando dois tiros no jovem engenheiro, matando-o.

A morte aconteceu por um erro de juízo do policial. Ele alegou ter confundido Amaral com um dos bandidos da caminhonete, e disse que achou que o jovem engenheiro estava armado e correndo em direção a inocentes. Amaral tinha na mão um telefone celular.

Família destruída

“A minha família foi destruída”, conta o irmão gêmeo de Amaral, Guilherme, à BBC News Brasil. “Eu e ele sempre fomos muito próximos. Eu fui colega do Gustavo da pré-escola até a engenharia.”

Guilherme conta que seu irmão era um exemplo de dedicação em todas as áreas da vida. No estudo, sempre foi um dos melhores alunos da classe, e sempre ajudou seu colega e gêmeo.

Na sua família, de classe média em Santa Maria, no interior gaúcho, era empenhado em ajudar a tocar o negócio do pai, no ramo de serviços elétricos.

“Agora de repente ele não está mais aqui. As roupas dele agora são minhas. Eu durmo no mesmo quarto que dividíamos e a cama dele está ali, vazia”, diz Guilherme.

A importância de Gustavo Amaral para seus familiares contrasta com a forma brutalmente vazia com que morreu: pelas mãos de um agente de segurança do Estado confundido com um bandido em meio a um acidente sem ter feito nada errado.

Vidas Negras Importam

Mas o sofrimento da família estava prestes a piorar.

Por meses, o inquérito sobre o papel do policial que disparou contra o jovem engenheiro negro avançou lentamente.

Enquanto a família Amaral vivia essa tragédia, outra morte de um inocente negro nas mãos da polícia ganhou destaque mundial: a do americano George Floyd, que foi sufocado por policiais em Minneapolis.

O episódio, ocorrido pouco mais de um mês após a morte de Amaral, provocou uma onda de indignação nos Estados Unidos e em outros países contra a violência praticada por policiais contra a população negra.

O caso de George Floyd, morto sufocado por um policial quando já estava rendido no chão, era muito diferente de Gustavo. Mas para familiares e amigos do gaúcho, o contraste da resposta pública para os episódios era enorme. Nos Estados Unidos e no resto do mundo, havia indignação. No Rio Grande do Sul, silêncio e lentidão na apuração dos fatos.

No Rio Grande do Sul, ativistas do Vidas Negras Importam, movimento inspirado no americano Black Lives Matter, realizaram protestos no dia 8 de junho em Santa Maria, Porto Alegre e Marau para lembrar o caso de Gustavo Amaral e cobrar uma atitude das autoridades. A morte de um jovem negro inocente por tiros disparados por um policial seguiria sem nenhuma investigação?

O protesto deu resultado e, nos meses seguintes, líderes do movimento e familiares de Amaral se reuniram com o governador gaúcho, Eduardo Leite, e com lideranças do Ministério Público e da Polícia. O governador criou um grupo de trabalho reunindo diversas entidades oficiais de segurança, do Judiciário e organizações civis para discutir a violência policial contra a população negra.

Apesar da tragédia, havia sinais de que o poder público estava agindo para dar uma resposta ao caso.

Legítima defesa imaginária

Mas todos esses sinais foram abruptamente interrompidos nas semanas seguintes.

Dois inquéritos foram abertos para apurar o papel do policial militar no episódio — um pela Brigada Militar e outro pela Polícia Civil. E ambos chegaram a conclusões distintas. A Brigada Militar pediu o indiciamento do policial; já a Polícia Civil recomendou o arquivamento, aceitando as alegações feitas pelo policial.

Em setembro, para a surpresa e indignação da família de Gustavo Amaral, a Justiça gaúcha decidiu arquivar o processo contra o policial, acatando um pedido feito pelo Ministério Público estadual do Rio Grande do Sul, que reuniu os dois inquéritos que estavam abertos.

Gustavo Amaral, um cidadão inocente e desarmado a caminho do trabalho, foi morto por tiros disparados por um agente do Estado — e, segundo a Justiça gaúcha, tudo aconteceu dentro da normalidade legal. Ninguém será investigado ou processado por isso.

A Justiça gaúcha aceitou a recomendação feita pelo Ministério Público estadual de que o policial agiu em “legítima defesa putativa” ou “legítima defesa imaginária”. Ou seja, mesmo que Gustavo Amaral não representasse nenhuma ameaça real — pois não era o bandido buscado pela polícia, e sequer estava armado —, a percepção do policial, mesmo sendo errada, de que ele seria o bandido e de que existia perigo na cena justifica seu ato de disparar.

A família do jovem engenheiro não aceita a conclusão da Justiça.

“Se em vez do Gustavo, que era um engenheiro negro, isso tivesse acontecido com o filho de uma pessoa importante, filho de um empresário rico, filho do juiz, do comandante da polícia, do delegado, será que teríamos esse desfecho? Será que a justiça arquivaria o processo sem investigar ninguém?”, pergunta Guilherme.

A decisão foi muito contestada pelo movimento negro.

“Nós temos certeza que o delegado e o promotor agiram com racismo institucional”, disse Gilvandro Antunes, um dos integrantes do Vidas Negras Importam do Rio Grande do Sul, à BBC News Brasil.

O racismo institucional é definido como um fracasso coletivo de organizações públicas — como a polícia e a Justiça — de prestarem serviços a determinados grupos étnicos. Em outras palavras, o sistema que deveria proteger os cidadãos para de funcionar quando o cidadão em questão pertence a uma minoria étnica.

“Esse é um caso de racismo institucional. Isso não quer dizer que o delegado e o promotor são pessoas racistas”, diz Antunes. “Mas o inquérito policial e o Ministério Público aceitam de forma taxativa a defesa do policial, que tinha dez anos de carreira e cometeu um erro injustificável. O promotor sequer se deu direito à dúvida. Sequer o PM vai à julgamento. Ele foi absolvido.”

A decisão judicial voltou a provocar protestos no Rio Grande do Sul. No dia 20 de setembro, movimentos negros organizaram uma carreata em Porto Alegre pedindo justiça no caso. O protesto foi organizado em desfile de carros para evitar a aglomeração de pessoas por conta da pandemia de coronavírus.

Ativistas e a família de Gustavo Amaral ainda lutam para um desfecho diferente para o caso. A família está recorrendo contra a decisão de arquivar os processos. Eles não aceitam que a morte de um cidadão inocente pela polícia possa terminar sem culpados — ou sequer sem um julgamento.

A posição do Ministério Público

Apesar dos protestos e críticas, o Ministério Público estadual defende a sua decisão de recomendar o arquivamento do caso.

Na visão dos promotores, o policial teria visto Gustavo Amaral correndo em direção a outro carro, onde estava uma família que também não tinha nada a ver com o acidente.

No curto espaço de tempo que teve para entender o que estava acontecendo, o policial viu um perigo e gritou para Amaral parar de correr, o que não aconteceu. O policial alegou ter confundido o celular de Amaral com uma arma, e por isso teria disparado contra o engenheiro.

O coordenador do Centro de Apoio Operacional Criminal e de Segurança Pública do MP, promotor de Justiça Luciano Vaccaro, disse que a morte de Gustavo Amaral foi uma tragédia absurda, e que se reuniu com os familiares da vítima para prestar sua solidariedade. Mas que, do ponto de vista jurídico, não haveria motivos para se investigar o policial que o matou.

Ele também rejeita a noção de que ninguém será punido nesse caso porque a vítima é negra.

“A solução dada ao fato é eminentemente jurídica, não passa por essas questões. Em nenhum momento a questão de ele ser negro mudou (o desfecho do caso). Sequer isso foi mencionado. Nenhuma testemunha falou isso. Se fosse um branco na mesma situação, o fato poderia ser igual. Não se trata disso”, disse Vaccaro à BBC News Brasil.

Gilvandro Antunes, do Vidas Negras Importam no Rio Grande do Sul, não aceita a explicação de que o policial se confundiu apenas por causa do celular na mão de Gustavo Amaral.

“Na verdade o policial confundiu a cor do Gustavo Amaral com a de um bandido. Ao ver um jovem negro correndo, o policial o confundiu com um bandido”, diz o ativista.

O caso segue sendo acompanhado por ativistas no Rio Grande do Sul, que prometem não desistir de lutar. O movimento negro Vidas Negras Importam cobra uma atitude do Ministério Público, que é responsável pelo controle externo das forças policiais. Nesta semana, eles solicitaram uma reunião com o Procurador Geral do Rio Grande do Sul.

Na Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, uma deputada estadual quer aprovar um projeto de lei, apelidado de Lei Gustavo Amaral, que obrigaria policiais a usarem câmeras de vídeo em seus carros e uniformes, como acontece nos Estados Unidos, o que poderia ajudar a dar mais transparência em investigações sobre mortes provocadas por agentes de segurança.

E a família de Gustavo Amaral prepara agora seu recurso contra o arquivamento. Para o irmão gêmeo Guilherme, foi particularmente difícil, durante a visita com o governador, ouvir de uma das autoridades presentes que Gustavo teria tido culpa na própria morte, por não ter parado de correr.

“Ele estava fugindo do acidente, apavorado com a situação, e com uniforme da empresa, claramente identificado. Como pode ser culpa dele?”

Em meio a tudo isso, Guilherme diz que ainda não conseguiu superar a perda do irmão, e que caiu em depressão. Mas promete que não vai desistir de lutar.

“Eu vou levar esse caso adiante.”

Irmão gêmeo de Gustavo Amaral, Guilherme (ao centro), e ativistas protestaram em Porto Alegre contra a impunidade

Enviado para Combate Racismo Ambiental por Amyra El Khalili

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