O (quase) consenso da maconha

Parlamentares de esquerda e direita se unem a militantes e pesquisadores pela aprovação do uso medicinal da cannabis

Por Igor Carvalho, Agência Pública

“Essas questões têm que ter mais discussão em casa, na família e na escola. Não podemos ter tabu, temos que quebrar o tabu e discutir o tema. Não tem que liberar e nem proibir, tem que regulamentar e informar, da mesma forma que se faz com o álcool. É uma questão de democracia, ou você confia que as pessoas aprendem e decidem ou não tem jeito.” A frase foi dita pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso para um seleto grupo de empresários que pagou R$ 1.500 para participar do Cannabis Thinking, um congresso sobre as possibilidades da cannabis medicinal para o mercado brasileiro ocorrido no dia 7 de março em São Paulo.

O evento foi organizado pela Green Hub, uma consultoria e aceleradora de startups que atua no mercado da cannabis. Entre os palestrantes, além do ex-presidente, estavam o cientista Stevens Rehen, referência na pesquisa com cannabis, o advogado Emílio Figueiredo, responsável por importantes conquistas jurídicas para os defensores do uso medicinal da planta, o deputado federal Paulo Teixeira (PT-SP), entre outros.

A flexibilidade ideológica do encontro é emblemática. No mesmo ambiente, havia cientistas, políticos de vertentes distintas, pais de pacientes de doenças crônicas e militantes que defendem o uso medicinal da cannabis. Apoiado nessa rara unidade, o deputado federal Fábio Mitidieri (PSD-SE) protocolou o Projeto de Lei 399/2015, que tramita na Comissão Especial da Câmara dos Deputados.

Caso aprovado, o PL 399 preencherá uma lacuna de 14 anos na legislação brasileira. A Lei 11.343 de 2006, conhecida como Lei de Drogas, já previa o cultivo da maconha para uso na produção de medicamentos e pela ciência. Em seu parágrafo único, a legislação afirma: “Pode a União autorizar o plantio, a cultura e a colheita dos vegetais referidos no caput deste artigo, exclusivamente para fins medicinais ou científicos, em local e prazos predeterminados, mediante fiscalização, respeitadas as ressalvas supramencionadas”.

No entanto, a ausência de regulamentação sobre as condições de cultivo da maconha sempre impediu que associações e empresas investissem na produção de medicamentos. “O foco é resolver essa questão do plantio. O uso medicinal da cannabis é permitido no Brasil. Nós queremos produzir toda a cadeia aqui, regulamentar o setor, para que o país possa sair desse atraso”, afirma o deputado Luciano Ducci (PSB-PR), relator do PL.

Após 11 audiências públicas e a visita de parlamentares da comissão a dois países que já legislaram sobre o tema, Uruguai e Colômbia, o texto final do projeto foi apresentado por Ducci no dia 1o de setembro deste ano, durante uma reunião online da Comissão Especial da Câmara dos Deputados que analisa e discute a proposta legislativa. O PL 399 versa sobre o cultivo, processamento, pesquisa, produção e comercialização de produtos à base de Cannabis sativa. Caso a matéria seja aprovada pelo Congresso Nacional, autorizará a pessoas jurídicas o plantio da maconha para fins medicinais e científicos, além do cânhamo industrial.

O principal argumento para a aprovação do projeto é a possibilidade de tornar acessível a cannabis terapêutica para pessoas que sofrem com epilepsia, dores crônicas, Alzheimer, mal de Parkinson, doenças neurodegenerativas, entre outros. No dia 3 de dezembro de 2019, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) autorizou a produção e a comercialização de medicamentos à base de cannabis no Brasil. A medida entrou em vigor em 10 de março deste ano. O órgão, porém, não permitiu o plantio, obrigando os fabricantes a importar a matéria-prima do medicamento, o que manteve o preço alto.

O frasco de 200 ml do canabidiol, primeiro produto à base de cannabis feito e comercializado no Brasil, do laboratório Prati-Donaduzzi, de Toledo, no Paraná, lançado em junho deste ano, custa entre R$ 2.140 e R$ 2.780 em cinco farmácias pesquisadas pela reportagem. Para importar o medicamento, entre burocracia, taxas e câmbio, uma pessoa pode gastar até R$ 10 mil. A solução para quem não possui tanto dinheiro é comprar das associações. Na Associação Brasileira de Apoio Cannabis e Esperança (Abrace), uma embalagem de 60 ml custa R$ 150. Na Associação de Apoio à Pesquisa e Pacientes de Cannabis Medicinal (Apepi), com os mesmos R$ 150 se compram 30 ml do remédio.

“O efeito do canabidiol em crianças com epilepsia refratária é milagroso. Essas crianças chegam a ter 30 convulsões em um dia. Elas não andam, não falam e não frequentam espaços como as escolas. Essas crianças passam a levar a vida normalmente após o uso da cannabis. Inclusive, tem trazido mães e avós para a luta pelo uso da cannabis”, explica o petista Teixeira. “Há uma demanda muito grande na sociedade brasileira por esses medicamentos. Porém, os preços são elevados. Os remédios chegam a custar R$ 3 milHá uma regulamentação que dá acesso, mas o valor não democratiza o acesso. Por isso, precisamos melhorar a regulamentação, para diminuir o preço e desenvolver pesquisas científicas mais profundas no Brasil em relação ao uso medicinal da cannabis”, conclui.

O consenso da maconha

Com a promessa de redução drástica no valor do medicamento, a campanha pela aprovação do projeto criou um raro consenso entre diversos setores da política nacional. Parlamentares de esquerda, direita e centro convergem para a mesma direção, a aprovação do PL apresentado na Comissão Especial para garantir que mais brasileiros tenham acesso ao canabidiol.

A adesão mais surpreendente é da deputada federal Carla Zambelli (PSL-SP), apontada como uma das congressistas mais conservadoras de Brasília. Em janeiro de 2019, a parlamentar publicou um artigo no jornal Folha de S.Paulo em que afirma que a “cannabis medicinal é a esperança”.

“Era novembro de 2018 quando conheci projetos voltados ao desenvolvimento e à segurança em Israel. Mal sabia que lá me chocaria com um tema tabu para mim, mas que, a partir de então, entendi a sua importância: a cannabis medicinal. Voltei ao Brasil refletindo como apresentar o assunto à sociedade. Uma realidade em muitos países precisava ser debatida aqui. Então, identifiquei meu preconceito e vi-me na necessidade de trabalhar pela causa”, expôs Zambelli, que é integrante da Comissão Especial.

Agência Pública procurou a deputada para que ela se manifestasse sobre os trabalhos da comissão, suas impressões a respeito da legislação proposta pelo PL 399 e sobre a adoção da pauta, que no Brasil é identificada como uma bandeira do campo progressista. Zambelli, porém, preferiu não falar sobre os temas propostos pela reportagem.

Outro parlamentar governista que integra a Comissão Especial, o deputado federal Enéias Reis (PSL-MG), sinalizou positivamente para a pauta. “A proposta visa permitir que a sociedade brasileira possa ser beneficiada ao viabilizar o uso lícito dos medicamentos que tenham como princípio ativo substâncias oriundas da maconha. Em que pese haver resistência entre deputados e representantes da sociedade civil, há mérito no projeto, pois ele estabelece o uso desse tipo de medicamento apenas em casos de pacientes que não responderam bem a outras terapias ou tiveram efeitos colaterais com medicamentos disponíveis atualmente no mercado. Se aprovado pelo Congresso Nacional, haverá um novo marco de regulação da cannabis no Brasil.”

O apoio dos deputados alinhados com o governo é celebrado por Teixeira. “Nós temos situações que não dizem respeito a esse recorte de progressistas e conservadores. Há vários conservadores que defendem o uso medicinal da cannabis. Nós estamos fazendo um trabalho que foi acolhido por diversas correntes ideológicas, que veem no uso medicinal da cannabis algo importante e que não fazem essa confusão com o uso pessoal, porque tem gente que quer fazer confusão. O uso medicinal é controlado, e esse uso controlado tem apoio de diversos segmentos políticos.”

A defesa do canabidiol em Brasília também é feita para além da Comissão Especial. Ex-comandante do Exército e atual assessor especial do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) do governo Bolsonaro, o general Eduardo Villas Bôas sofre desde 2016 com a perda de movimento do corpo por conta de uma doença rara: a esclerose lateral amiotrófica (ELA). O militar é favorável ao uso da cannabis para fins medicinais, segundo a revista Época. Sua filha, Adriana Villas Bôas, que também padece de outra síndrome pouco comum, espondilite anquilosante, deu entrevista à publicação em agosto de 2019.

“Não teria nenhum problema em experimentar. Eu não diria não. Meu pai também pensa como eu. Com o tanto de remédio que eu tomo, já era para meus rins terem parado. Por dentro, meu corpo deve ter 90 anos. Ser contra isso é a maior hipocrisia que existe”, explicou Adriana. “Quando você pega uma mãe que dá canabidiol para seu filho e a trata como uma maconheira, isso é ofensivo, isso é grave.”

Em setembro de 2019, a senadora Mara Gabrilli (PSDB-SP), que ficou tetraplégica após ter quebrado o pescoço em um acidente de carro em 1994, surpreendeu os parlamentares em uma reunião da Comissão de Direitos Humanos do Senado ao divulgar que usa canabidiol. “Eu mexo muito pouco do pescoço para baixo, mas eu mexo muito mais do que eu já mexi um dia, porque eu era uma pessoa deitada, que respirava numa máquina, que não falava, que não sentava, que não sentia e que não se mexia. Sabe por que eu faltei tanto tempo aqui, fiquei de licença? Porque durante todo o período que fiquei sem ter o THC, eu desenvolvi uma epilepsia refratária.”

Em seguida, Gabrilli lembrou que as pessoas de baixa renda não podem acessar o medicamento. “Eu tenho uma condição financeira que me permite comprar um remédio. O remédio que eu uso é aprovado pela Anvisa, tem 27% de THC e custa R$ 3 mil. Uma espirradinha do remédio – ele está aqui, eu posso mostrar para vocês – custa R$ 15. É pesado para eu bancar, que sou uma senadora da República. Agora imagina para o resto da população brasileira.”

Em off, parlamentares afirmam que somente quatro ou seis deputados, dos 40 que integram a Comissão Especial, devem votar contrário ao texto final do PL 399 apresentado por Ducci. Entre os opositores, dois se destacam, os deputados federais Osmar Terra (MDB-RS) e Diego Garcia (Podemos-PR).

É um obscurantista”

Quando apresentou o texto final do PL 399, em 1o de setembro deste ano, Ducci fez uma ressalva: “Prestem atenção, o PL não trata de cultivo doméstico, não trata de uso recreativo e não trata do uso ritualístico e religioso”. Em seguida, Garcia afirmou: “Nós estamos tratando, sim, do uso recreativo da maconha neste projeto. Só para quem não leu é que nós não estamos tratando desse tema. Estamos tratando, sim. Infelizmente, muitas famílias que têm filhos enfermos estão sendo utilizadas como escudo pela indústria e pela ala ideológica que quer, sim, o avanço dessa agenda pela liberação das drogas, não apenas da maconha, como de outras drogas”.

Inimigo contumaz da pauta, Terra também se manifestou durante a reunião on-line da Comissão Especial. “Essa comissão, desde que foi instalada, está conduzindo para a legalização da maconha no Brasil. Não é uma preocupação com os jovens, não é uma preocupação com as crianças que precisam de um remédio, é o canabidiol, que é uma das 480 substâncias da maconha. Não é essa a preocupação que está norteando. Se fosse essa, conseguiríamos a liberação do canabidiol gratuito pelo SUS.”

O advogado Emílio Figueiredo celebrou o estágio da pauta e criticou Terra. “Temos um consenso que vem de uma construção duríssima. É um projeto de lei que agrada todo mundo interessado nessa pauta. Só não vai agradar um obscurantista como o Osmar Terra. Realmente, temos consenso político no uso medicinal da cannabis. Hoje, quem é contra já não consegue se manifestar contra, só o Osmar Terra mesmo, que fala as asneiras dele.” O deputado federal foi procurado pela Pública, mas os pedidos de entrevista foram ignorados por sua assessoria.

Bolsonaro

Caso aprovado na Comissão Especial, o PL 399 segue para apreciação do plenário da Câmara dos Deputados e depois para o Senado. Chegaria, então, para a sanção presidencial. Teixeira e Ducci são otimistas e acreditam que Bolsonaro pode corroborar o PL.

“Eu acredito que o Bolsonaro sancionará. Existe muita gente da base do Bolsonaro que é favorável ao uso medicinal da cannabis”, afirma o petista. “Depende do momento que o projeto vai chegar para o presidente e como o projeto vai ser usado por ele. Pelo que eu tenha escutado é que há uma tendência de que seja aprovado pelo Bolsonaro, a própria primeira-dama é favorável”. A Pública perguntou ao Palácio do Planalto se Michelle Bolsonaro é favorável ao plantio, mas não obteve resposta.

No último dia 22 de setembro, Jair Bolsonaro respondeu ao questionamento de uma eleitora que o esperava em frente ao Palácio da Alvorada sobre o cultivo da maconha para uso medicinal. “Comigo não tem liberação de droga, nem plantio, tá? Fica tranquila.”

A lei e o tempo dos homens

Se aprovado, o projeto beneficiará a advogada Margarete Brito, que viu sua filha, Sofia, ter crises convulsivas quando tinha apenas 35 dias de vida. A cena se repetiu por anos até que, em 2013, ela decidiu subverter a ordem para salvá-la. “Na época, importar o óleo de maconha, que é vendido nos Estados Unidos como suplemento alimentar, era considerado tráfico ilegal de entorpecentes. Mas a vida da minha filha não espera o tempo dos homens repensarem as suas leis. Mesmo cometendo um crime, importei o remédio. Era uma luz no fim do túnel.”

O óleo de maconha citado por Margarete é o canabidiol e ajudou a reduzir em 60% as crises de Sofia, que foi diagnosticada com a síndrome CDKL5, doença rara que causa epilepsia. Antes, ela e o marido, Marcos Langenbach, tentaram ajudar a filha com medicamentos recomendados pelos médicos que a tratavam.

“Foi o início de um sofrimento. Além de dar drogas e mais drogas para aquele bebê tão pequenininho, tão delicado, nenhuma delas controlava as crises. Eram drogas e mais drogas, repito. E todas lícitas. Tarja preta, vermelha, amarela, todas as cores, todas as doses e combinações”, recorda Margarete, que fundou, em 2014, no Rio de Janeiro, a Associação de Apoio à Pesquisa e Pacientes de Cannabis Medicinal (Apepi), que reúne familiares de doentes que precisam usar o canabidiol e lutam pela liberação do uso terapêutico da maconha.

Em novembro de 2016, Margarete se tornou a primeira pessoa no Brasil a conseguir habeas corpus para o autocultivo da maconha sem que seja criminalizada. Assim, ela e o marido passaram a produzir em casa o óleo de maconha para a filha. Pela legislação brasileira, a produção ilegal de medicamento pode gerar uma sentença negativa de até 15 anos de prisão. O cultivo doméstico, se configurado tráfico, pode gerar outra pena de até 15 anos de reclusão. Desde 2014, a Anvisa autoriza a importação de medicamentos à base de cannabis, mediante receita médica e com cadastro realizado pelo órgão.

Até agosto deste ano, outras 132 pessoas conquistaram o habeas corpus para o autocultivo, de acordo com a Rede Reforma, coletivo de advogados que atuam voluntariamente no que chamam de “direito canábico”, auxiliando famílias que precisam cultivar a erva, e pela legalização do uso terapêutico da planta.

A Reforma foi fundada em 2015 por Emílio Figueiredo, considerado um dos expoentes do país na luta pela liberação do cultivo da planta. O advogado é responsável pelo processo que garantiu a autorização para que a Abrace, de João Pessoa, na Paraíba, pudesse plantar maconha. A permissão foi concedida em abril de 2017 pela 2a Vara Federal da Paraíba, e desde então a organização produz seu próprio óleo de maconha com respaldo jurídico. Desde 2014, porém, o fazia clandestinamente.

Cassiano Teixeira, fundador da Abrace, conta uma história muito comum aos atores envolvidos na luta pelo uso medicinal da erva, a tentativa de dar uma vida confortável aos parentes doentes. “Minha mãe sempre teve um problema de imunidade baixa, a cada três meses ela era internada. Certa vez, ela foi parar na UTI e tiveram que colocá-la no respirador. Foram sete dias de internação. Quando ela chegou em casa, ela não conseguia nem tomar um café. Eu levantei e fui comprar 50 gramas de maconha. Voltei para casa, fui no fogão e fiz uma extração simples, coloquei na lata do azeite, esperei esfriar e dei para minha mãe uma colher. Uma hora depois, ela estava lavando louça, e bem.”

Hoje, a Abrace fornece canabidiol para 9,5 mil pacientes, destes 1,5 mil não pagam pelo remédio. Além disso, seis pessoas conseguiram na Justiça o direito de receber o medicamento da associação gratuitamente via Sistema Único de Saúde (SUS). Em seu laboratório, a organização fundada por Teixeira realiza, neste momento, 17 pesquisas utilizando propriedades da maconha, sendo três delas para buscar a cura da Covid-19.

Seguindo os passos da Abrace, no dia 15 de julho deste ano a Apepi, que hoje têm 1.200 associados, conseguiu a autorização na Justiça para o plantio da maconha para fins medicinais. A fazenda Sofia Langenbach já é uma realidade e deve fazer com que a entidade comece a produzir seu próprio canabidiol. Hoje, a entidade importa o medicamento para os seus membros. “Olha, tudo que envolve a maconha é complicado. Há muito preconceito, até mesmo para alugar o local em que vamos plantar tivemos dificuldades”, explica Margarete Brito.

2020 é o ano da consolidação”

No seminário da Green Hub, em São Paulo, o tom do congresso era de otimismo com a possibilidade de um novo mercado. “Estamos nos preparando para esse momento tem muito tempo. 2020 é o ano da consolidação dessa indústria, estamos prontos para isso e é um momento histórico”, celebrava o empresário Alex Lucena, sócio da empresa que organizou o congresso, em entrevista à Pública no dia do evento. A confiança está depositada no PL 399.

Todavia, quatro dias depois, na sede da Organização Mundial da Saúde (OMS), em Genebra, na Suíça, o coronavírus foi classificado como “pandemia” pelo presidente da entidade, o etíope Tedros Adhanon Ghebreyesus. Desde então, o ímpeto dos empresários segue contido diante do ritmo lento do Congresso, que atua em sistema de home office, por conta da imposição do distanciamento social, com sessões mais espaçadas e em meio ao processo eleitoral que definirá os prefeitos e vereadores dos 5.568 municípios brasileiros.

O interesse dos empresários na possibilidade de abertura de um novo mercado tem justificativa. De acordo com a Green Hub, a cannabis deve movimentar cerca de R$ 4,7 bilhões nos próximos três anos. Isso porque, caso o PL 399 seja aprovado, as portas estarão abertas para milhares de novos itens, entre tecidos, roupas, remédios, cosméticos e outros.

Para mostrar que há unidade e segurança política para investir no setor, a Green Hub convidou um tucano (FHC) para abrir o congresso e um petista (Paulo Teixeira) para encerrá-lo. “A política é tão dúbia, porque a pauta da maconha sempre foi uma pauta da esquerda no Brasil, tradicionalmente de esquerda. Mas em outras partes do mundo, não. O que aconteceu aqui [no congresso] foi uma evidência de que essa é uma pauta que reúne todo o espectro político do país. Olha, quando um parente seu está com um problema, você pode ser um general ou um ativista mais radical de esquerda, fará o que for preciso para que ele sobreviva”, explica Lucena.

O sócio da Green Hub tomou conhecimento da luta pela regulamentação do canabidiol no país após seu pai ter sofrido um acidente vascular cerebral (AVC) que paralisou o lado esquerdo do corpo. Em seguida, a mãe de Lucena teve um quadro de depressão e também passou a tomar medicamento à base de cannabis. A solução encontrada pelo empresário foi importar o remédio para os pais. “O único alívio dos dois é o óleo da maconha. Eu posso pagar, ainda bem, mas e quem não pode? O que queremos é que seja democrático e que não custe R$ 2.500. Só uma elite compra. Estamos falando de acesso, precisamos produzir produtos acessíveis. O moleque na favela que sofre de epilepsia tem o mesmo direito de acessar o remédio que o moleque que mora na avenida Vieira Souto no Rio de Janeiro”, encerra.

Durante o evento, os empresários se esforçaram para apresentar a maconha como um item importante e lucrativo, longe da imagem secular de criminalização da planta. O historiador Henrique Carneiro, autor do livro Drogas: a história do proibicionismo, explica: “[O preconceito] está ligado a uma especificidade racial do Brasil. É um discurso eugenista no Brasil, que começa a dizer que é uma planta do Norte, associada a caboclos e a certas profissões, como pescadores. Diziam que era uma substância primitiva, que tirava o juízo e que era o ópio do Brasil. Teve uma série de iniciativas para combater a maconha nos anos 1930, mas o ápice dessa criminalização foi nos anos 1960, quando ela se generaliza na classe média de todas as grandes cidades”.

Carneiro conta ainda que “a maconha é uma planta que tem sua origem primordial na Ásia Central. Foi o comércio árabe que a trouxe para a África e depois ela foi usada na Europa, sobretudo como insumo naval: era obrigatório o plantio nas colônias para fazer a corda dos navios, a estopa, o velame, enfim, tudo que era tecido”.

Ainda de acordo com o historiador, a chegada do mercado e a apropriação da planta pelo capitalismo podem ser positivas. “Esse caminho vem sendo o caminho de institucionalização internacional, a partir dos EUA. Começou com um movimento muito forte na Califórnia. Lá, se conquistou a opinião pública com a realização de plebiscitos, entre outras ações, e que consagrou o uso medicinal. A partir daí, se normalizou a relação com a maconha. Isso é um mercado de uma potência emergente incontornável, se tornou uma indústria das mais rentáveis em um período, agora, de profunda crise, de enorme depressão internacional. A demanda por esse produto vai crescer”, prevê.

Com o consenso quase garantido entre ativistas, políticos, empresários e pesquisadores, o caminho pode estar aberto para a nova legislação. Porém, obstáculos importantes, como o imposto pelo presidente da República, pode atrasar ou fazer sucumbir o projeto. Para Fernando Henrique Cardoso, só há um caminho: “Na prática, precisamos convencer. Convencer, na etimologia, é vencer junto. Ou você convence, ou não vence. É a mesma coisa nessa questão que estamos discutindo aqui. É preciso que haja uma pregação do que se trata, e não podemos passar a sensação equivocada de que estamos disseminando o mal”.

Imagem: Ana Clara Moscatelli/Agência Pública

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