Por Hugo Albuquerque, no Caixa de Ferramentas
Bolívia, e isso é importante:
1. O MAS ganhou, pois ele não perdeu sua capacidade de mobilização de massas, apesar de uma burocratização natural pelo tempo de governo — a questão não é que o desastre do governo golpista produziu essa retomada, mas que havia algo de potente ali que permitiu esse levante mesmo depois do golpe e com Evo e Linera exilados.
2. Luis Arce ganhou por conta do apoio de Evo e da máquina do MAS, o que não quer dizer que ele não tenha agência própria, o que pode ser bom e ruim.
3. Quando Evo tomou o golpe, talvez em pouco tempo a resposta óbvia seria um levante indígena-operário, o que seria naquele momento contido. O MAS jogou com paciência, se manteve recuado, mantendo uma normalidade suficiente, mas sem dar governabilidade a Áñez. O temor de um levante popular imprevisível operou mais efeito do que um levante em si, o que foi importante.
4. Que não se diga que a direita boliviana é estúpida: ela soube se agenciar com elementos internacionais, assim como infiltrou-se no Estado, isto é, nas forças armadas, polícia e judiciário. Assim, embora ela não tenha conseguido governar e impedir novas eleições, ela tampouco foi derrubada do poder.
5. A vitória do MAS era esperada, apesar de uma série de pesquisas sabidamente mentirosas por quem entende de política, mas foi por uma margem maior do que se pensava nos bastidores. O que põe os golpistas na defensiva, mas não na berlinda. Áñez se mostrou comportada com o resultado das urnas para negociar uma transição que envolva anistia — novamente, ela joga em alto nível, mostrando que a melhor ação na política muitas vezes é a não ação. Aqui, a ameaça de melar a transição e a posse pesa mais do que um movimento nesse sentido.
6. Bolsonaro foi o grande derrotado da eleição boliviana. Ele contava com uma divisão da oposição e um resultado apertado, que mandasse a eleição para o segundo turno ou colocasse a vitória em primeiro turno em causa. Aí, seu candidato Luis Camacho iria tomar a frente das manifestações, tomando a frente do segundo colocado Carlos Mesa. O resultado é que ao apostar nisso, Bolsonaro ajudou a definir as eleições no primeiro turno e perdeu tudo.
7. A Bolívia passou a importar muito por conta do lítio. Isso pode fazer a economia de lá bombar nas próximas décadas, inclusive caminhando independente de Brasil e Argentina. Você pode funcionalizar isso com modelo à la Pinochet, que está fracassando no Chile, ou com algo mais socialista, a disputa internacional é sobretudo a respeito desse modelo.
8. Lucho Arce não poderá (ou melhor, *não deve*) se separar de Evo e dos movimentos, se o fizer, o país se liquefaz no caos a exemplo do Equador. Não é que estará errado, mas vai dar errado, não vai ser funcional. Agora, tenho dúvidas que ele vai fazer as reformas necessárias para manter o desenvolvimento da Bolívia na direção do que é necessário, sem cair na espiral maldita da social-democracia: fortalecimento da economia nacional, consequente enriquecimento de uma burguesia que depois vai trair o regime.
9. O golpe — sim, foi golpe — uniu a todos, mas há questões importantes: a questão não é se foi golpe em 2019, mas uma vez tendo sido golpe, e o MAS não tendo conseguido evita-lo apesar de ter maioria eleitoral, que o golpe é sempre possível.
10. De todo modo, foi uma grande vitória da esquerda na Bolívia. E como se vê, lá se faz política em alto nível, mesmo no sentido direitista e golpista, ao contrário do Brasil, que virou um horror banal, frívolo e raso.
P.S.: Haverá outra vitória importante da esquerda nos Andes: o plebiscito constitucional chileno. Pouca gente está olhando pra isso.
Hugo Albuquerque é publisher da Jacobin Brasil, editor da Autonomia Literária, advogado e direitor do Instituto Humanidade, Direitos e Democracia — IHUDD.