por Maíra Mathias e Raquel Torres, em Outra Saúde
VÍTIMA DO PRÓPRIO SUCESSO
No ano passado, a Estratégia Saúde da Família completou 25 anos. Poucos meses antes desse marco, o Brasil foi celebrado como exemplo mundial pela forma como organizou os serviços de atenção primária, levando a saúde para mais perto das pessoas. A admiração foi expressa por vários países em Astana, no Cazaquistão, durante uma conferência da OMS voltada para o tema.
Investir em equipes de saúde que se tornam responsáveis por um certo número de pessoas, as conhecem e, por isso, têm condições de evitar que adoeçam é uma ideia antiga, que surgiu – literalmente – cem anos atrás, mas ganhou impulso na década de 70. Demorou muito para que o setor privado brasileiro, fragmentado em operadoras e muito pautado na consulta com especialista, exames e hospitais, descobrisse essa pólvora. De cinco anos para cá, contudo, as propagandas começaram. Quando a Amil lançou um plano de saúde “baseado em atenção primária” passou a vender como ‘inovação’ algo que já vinha sendo feito mais e melhor pelo SUS.
Esse é parte do contexto em que surge o decreto 10.530, publicado ontem no Diário Oficial, assinado por Jair Bolsonaro e Paulo Guedes com o objetivo de abrir a fórceps o caminho para as empresas lucrarem com a atenção primária em um país onde cerca de 60% da população é coberta por uma equipe de Saúde da Família – serviço avaliado como bom ou muito bom por 80% daqueles que usam, segundo o Ipea.
Para criar um mercado onde hoje domina o setor público, o governo escolheu inserir as unidades básicas de saúde no PPI, o Programa de Parcerias de Investimentos. O BNDES fará estudos para fomentar ‘parcerias’ dos municípios – que, efetivamente, são os gestores dessas unidades – com a iniciativa privada. O decreto fala em três modalidades de contrato: para construção de unidades de saúde, modernização das existentes (são 44 mil) e operação dos serviços – esta última é, efetivamente, o filé mignon da história. Mas a desculpa do Ministério da Economia é “encontrar soluções para a quantidade significativa de unidades inconclusas ou que não estão em operação no país“. Mas questionada por diferentes jornalistas, a pasta não soube dizer quantas unidades estão nessa situação.
Por conta dos limites de contratação direta impostos pela Lei de Responsabilidade Fiscal, a operação dessas unidades, e também de hospitais e pronto-socorros, vem sendo terceirizada, principalmente via Organizações de Saúde (OSs). O município ou o estado repassa os recursos e a OS contrata os profissionais. Sempre se denunciou a falta de transparência desse tipo de arranjo. No ano passado, a assembleia de deputados de São Paulo examinou esses problemas em uma CPI. Mas foi ao longo da pandemia que pipocaram escândalos de corrupção envolvendo as OSs, o maior deles no Rio de Janeiro. Hoje, já há clima político para rediscutir esse modelo, em favor de alternativas que fortaleçam a gestão pública. Eis que, no meio do caminho, surge o PPI.
E O MINISTÉRIO DA SAÚDE?
O decreto de Bolsonaro e Guedes não fez menção ao Ministério da Saúde, nem foi co-assinado por Eduardo Pazuello. No saneamento básico, por exemplo, um decreto parecido levou as assinaturas de Ricardo Salles (Meio Ambiente) e Gustavo Canuto (então ministro do Desenvolvimento Regional). Ao que tudo indica, a pasta não foi informada dos planos de quebrar a principal perna do SUS. Procurado por toda a imprensa, o ministério não foi capaz de compor uma única nota explicativa até o final da noite de ontem.
Mas o Poder 360 recuperou um fato importante: a entrega das unidades básicas de saúde para a iniciativa privada já tinha sido recomendada pelo Conselho do PPI num longínquo novembro de 2019. Passou batida por todo mundo a resolução que trata disso.
De toda forma, existia no documento a previsão de que o Ministério da Saúde fosse ouvido. Em nota enviada ao site, o Ministério da Economia afirmou que a exclusão foi uma “simplificação” no texto do decreto… A pasta, no entanto, disse que a Saúde será consultada.
ONDAS ANTERIORES
Mas, ao contrário do que possa parecer, a desconstrução da atenção primária já estava sendo gestada na pasta. Aconteceu na gestão de Luiz Henrique Mandetta, a partir de três ondas: a mudança nos critérios usados pelo governo federal para repassar dinheiro para financiar a atenção primária nos municípios; o lançamento de uma “carteira” nacional de serviços que precisam ser oferecidos nas unidades, que excluía um conjunto de ações educativas, com ênfase nos procedimentos biomédicos; e a criação de uma agência privada para a atenção primária, conhecida pela sigla ADAPS.
“A criação da ADAPS previa a articulação e contratação do setor privado, foi apoiada por representantes da corporação médica e operadoras de planos de saúde, como a Unimed”, lembra Ligia Giovanella, pesquisadora da Fiocruz e uma das principais especialistas em atenção primária do país. “O decreto concretiza mais um passo para a privatização do SUS, sendo uma iniciativa que aponta para a comercialização do setor mais publicizado e eficiente do Sistema Único – o que é, inclusive, reconhecido pelo Banco Mundial”, analisou a pedido do Outra Saúde.
Também a pedido da newsletter, Maria Paula Dallari Bucci, professora da Faculdade de Direito da USP, contextualizou o decreto. Para ela, a movimentação do setor privado para entrar no SUS via atenção primária tem a ver com o contexto geral de empobrecimento da população brasileira e desemprego crônico. “A crise econômica projeta restrições financeiras para a clientela tradicional dos planos de saúde. Com isso, a atenção básica passa a ser cada vez interessante, do ponto de vista comercial. Isso já estava no radar desde 2016, quando Ricardo Barros – hoje líder do governo na Câmara – era ministro da Saúde e defendia os planos de saúde acessíveis”, diz.
PERPLEXIDADE E REAÇÕES
Há ainda muita perplexidade em relação ao decreto, e nem todo mundo faz a ligação entre a destinação de recursos públicos para empresas e os interesses de mercado.
Carlos Lula, secretário de saúde do Maranhão e atual presidente do conselho que reúne gestores estaduais, o Conass, afirmou que o assunto será discutido pela entidade. “É uma loucura ter um decreto do Ministério da Economia para falar sobre atenção primária”, disse ao Globo. Ainda para ele, a proposta não fecha do ponto de vista financeiro. “O sentido da PPP é a empresa construir porque o Estado não tem recurso para isso e ela administrar porque vai ter, em tese, um lucro durante determinado período de tempo. Óbvio que isso acontece no caso de hospitais, mas no caso de UBS não faz nenhum sentido, porque a obra é pequena, precisa de poucos recursos, e , segundo, não gera receita. É um negócio esquisito e sem a participação do Ministério da Saúde, o que deixa ainda mais esquisito. É estranhíssimo”.
Ricardo Heinzelmann, da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade, também não entende “qual seria o interesse do setor privado para atuar nesse nicho de mercado”. Mas na entrevista que concedeu à Folha, ele viu algumas vantagens mercadológicas na proposta do PPI quando comparada com o modelo das Organizações Sociais: “As OSs não constroem, enquanto a PPP vai além nisso: ele poderia construir e ser como um proprietário daquele serviço. Há um avanço maior no campo da privatização quando falamos nessa lógica”.
Tanto a arbitrariedade da decisão quanto o vetor privatizante foram criticados pelo Conselho Nacional de Saúde: “Nossa Câmara Técnica de Atenção Básica vai fazer uma avaliação mais aprofundada e tomar as medidas cabíveis em um momento em que precisamos fortalecer o SUS, que tem salvado vidas. Estamos nos posicionando perante toda a sociedade brasileira como sempre nos posicionamos contra qualquer tipo de privatização, de retirada de direitos e de fragilização do SUS. Continuaremos defendendo a vida, defendendo o SUS, defendendo a democracia”, escreveu o presidente Fernando Pigatto.
De imediato, pelo menos uma parlamentar – deputada federal Jandira Feghali (PCdoB) – vai entrar com um projeto de decreto legislativo para sustar o texto do governo. Mas, caso consiga as assinaturas necessárias, esse instrumento precisa ser votado; e a votação precisa ser pautada pelo presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), que voltou a azeitar a relação com Guedes e é neoliberal de carteirinha. Por isso, na opinião de Feghali, será importante que partidos e, especialmente, as entidades da saúde entrem com ações no Supremo para tentar derrubar o decreto.
O NASCITURO NA ESTRATÉGIA
“Promover o direito à vida, desde a concepção até a morte natural, observando os direitos do nascituro” é um dos pontos da Estratégia Federal de Desenvolvimento para o Brasil no período de 2020 a 2031, instituída ontem por outro decreto do governo Jair Bolsonaro. A orientação está no “eixo social” da Estratégia, no item relacionado aos direitos humanos.
Essa é só mais uma em uma série de ações recentes em que o governo tenta minar o já restrito direito ao aborto no Brasil (veja aqui e aqui). A Folha explica que o decreto não tem como impedir o aborto previsto em lei, mas pode esvaziar políticas públicas relacionadas à saúde sexual e reprodutiva. “Essa diretriz (…) serve para que o Executivo esvazie políticas públicas relacionadas à saúde reprodutiva das mulheres. Embora o governo não possa impedir o aborto legal, porque isso demandaria alteração legislativa, ele cria um ambiente de desinformação e aparente insegurança jurídica, que tem efeitos práticos porque dificulta ainda mais o acesso de mulheres aos serviços de aborto legal”, afirma Nalida Coelho Monte, coordenadora do núcleo de defesa e promoção dos direitos das mulheres da Defensoria Pública de São Paulo.
Não precisamos ir muito longe para lembrar que, pouco depois da vitória de Bolsonaro nas eleições, Damares Alves foi a público falar sobre o Estatuto do Nascituro. Então indicada para chefiar o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, ela disse que tratava-se do projeto mais importante em tramitação no Congresso Nacional. A proposta equipara o nascituro e o embrião humanos ao mesmo status jurídico e moral de pessoas nascidas e vivas – e enquadra o aborto como crime hediondo.
Em tempo: falamos na semana passada sobre a Polônia, que endureceu ainda mais sua legislação e proibiu abortos em caso de má-formação grave do feto. Uma reportagem d’O Globo nota que os protestos contra a decisão, que começaram a se espalhar em seguida, não dão mostras de terminar: as manifestações já duram seis dias e ainda há mais de 150 marcadas.
OUTRO DETALHE
O planejamento de longo prazo do governo federal também tem um item dedicado ao “Desafio: melhorar o acesso aos serviços de saúde e a sua qualidade”. É claro que não há uma única linha sobre incrementar os recursos para o SUS, mas o texto fala em aumentar “a eficiência e a equidade do gasto com adequação do financiamento às necessidades da população”, além de avançar na articulação entre os setores público e privado.
OS INCÊNDIOS E O MINISTÉRIO
Ontem pela manhã um incêndio atingiu o Hospital Federal de Bonsucesso (HFB) no Rio de Janeiro. Em meio à fumaça, quase 200 pacientes foram removidos; uma parte foi transferida para outras unidades de saúde, e alguns foram levados em macas ou colchões para um depósito de pneus. Até o envio desta edição da newsletter, haviam sido confirmadas as mortes de três pessoas – duas delas estavam internadas com covid-19.
Só que a tragédia foi mais do que anunciada, e o Ministério da Saúde tinha conhecimento dela. Em abril do ano passado, um relatório produzido por uma equipe de engenheiros, a pedido da pasta, constatou problemas na estrutura de combate a incêndios no hospital. O incêndio mostra que nenhuma providência foi tomada desde então. Ontem, em nota, a pasta disse que havia “vários projetos aprovados” e “em andamento” para “realizar uma série de reformas de urgência”…
Esse não foi o único documento sobre os problemas do HFB que chegou às mãos do Ministério. O jornalista Tales Faria, do UOL, revelou um ofício enviado à pasta em agosto pela então diretora-geral do Hospital, Cristiane Rose Jourdan Gomes. No texto, ela diz ter tomado conhecimento de “problema grave no sistema elétrico” e pede “providências com a maior urgência possível que o caso requer”. Há menções específicas a um risco de explosão. E mais: esse documento ainda diz que dois outros ofícios já haviam sido enviados, tratando do mesmo problema. Em dezembro, a Defensoria Pública da União pediu à direção do HFB que fossem tomadas “ações imediatas”. As primeiras denúncias de risco de incêndio são de 2007, segundo o Sindicato dos Médicos do Rio.
A unidade não tinha certificado de aprovação do Corpo de Bombeiros, havia recebido dois autos de infração e, o pior de tudo, não é o único hospital com irregularidades. “Quando assumi, há 30 dias, pedi uma grande reunião com todos os hospitais. Não é só o HFB que tem problemas. Mas é muito difícil, quase impossível, interditarmos um hospital com 600 leitos. Nosso código de segurança contra incêndio é uma legislação da década de 1970 e é difícil um prédio antigo se adequar”, comentou o Secretário de Defesa Civil, coronel Leandro Sampaio Monteiro.
Há algo muito errado, e não é só no Rio. Este ano houve 45 incêndios em hospitais brasileiros, incluindo públicos e privados – quase o dobro dos 23 ocorridos em 2019. Não há dados estatísticos oficiais sobre isso, mas a informação é do Instituto Sprinkler Brasil, que monitora incêndios estruturais noticiados pela imprensa. Ou seja, número real pode ser maior, já que os focos rapidamente controlados acabam não sendo noticiados.
PARA TRANQUILIZAR
Muita ênfase foi dada a um estudo do Reino Unido que mostrou queda no nível de anticorpos contra o coronavírus, alguns meses após a infecção. “Algumas dessas manchetes são bobas”, resumiu, muito objetivamente, o imunologista da Universidade da Pensilvânia Scott Hensley, no New York Times. Em junho, quando o primeiro trabalho constatando essa redução foi publicado, dissemos aqui que ela não necessariamente significa o fim da imunidade. Depois disso, continuamos tratando do tema em outros momentos. Em resumo: uma queda nos anticorpos é normal, e essas células não são a única resposta imunológica possível.
A matéria do NYT retoma e detalha essas explicações. E ainda lembra que, de todo modo, é errado interpretar baixos níveis de anticorpos como um indício de que as vacinas não vão funcionar. Isso porque uma vacina é diferente de uma infecção natural. Por exemplo, o papilomavírus humano “provoca uma resposta imunológica terrível e anticorpos ruins, (…) mas a vacina com uma única imunização produz anticorpos fantásticos que são 99% protetores nas pessoas por mais de dez anos”, diz o virologista Shane Crotty.
… E PARA PREOCUPAR
Um novo estudo mostra que alguns sobreviventes de covid-19 produzem moléculas chamadas ‘autoanticorpos’, que atacam as próprias células do corpo, em vez do vírus. É um mecanismo que lembra o de doenças autoimunes, como lúpus. Os pesquisadores analisaram 52 pacientes que tiveram formas graves de covid-19 e não tinham histórico de doença autoimune; encontraram autoanticorpos em quase metade.
O trabalho foi publicado como pré-impressão, ainda não recebeu revisão de pares. Mas especialistas ouvidos pelo New York Times (a matéria foi traduzida pela Folha) dizem que as descobertas não são inesperadas, já que outras doenças virais também desencadeiam o surgimento de autoanticorpos. “É possível que mesmo uma doença moderada a leve possa induzir esse tipo de resposta”, comenta a imunologista Akiko Iwasaki.
Isso ajudaria a explicar por que alguns pacientes continuam com sintomas durante meses, mesmo depois que não se detecta mais a presença do coronavírus; e alguns dos autoanticorpos identificados estão ligados a problemas de fluxo sanguíneo, de modo que talvez alguns dos problemas de coagulação vistos em pacientes possam ser causados por essa resposta imune. Mas ainda há muita incerteza, e são necessárias mais investigações.
INDICAÇÃO CANCELADA
Jair Bolsonaro cancelou ontem a indicação de Roberto Ferreira Dias para o cargo de diretor da Anvisa. Na segunda, o Estadão publicou uma reportagem mostrando que Dias havia assinado um contrato de R$ 133 milhões que está sob suspeita de irregularidade. O contrato se referia à compra de kits de testes de covid-19.
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Imagem: Cellus
Houve algum estudo, nota ou manifestação por parte do governo, no sentido de elaborar “preços acessíveis” nas unidades básicas? Ouvi algo parecido num telejornal, em canal fechado.