“Marco temporal”: indígenas questionam interesse por trás de mais um adiamento no STF

Julgamento só deve ocorrer após a entrada do ministro Kassio Nunes, apoiado por ruralistas e indicado por Bolsonaro

Daniel Giovanaz, Brasil de Fato 

O dia 28 de outubro de 2020 poderia entrar para a história da luta pela demarcação de terras indígenas no Brasil. O julgamento sobre o chamado “marco temporal” era aguardado com expectativa por indígenas e ruralistas, mas foi adiado mais uma vez no Supremo Tribunal Federal (STF), em decisão publicada na última quinta (22). O mesmo havia ocorrido em 10 de agosto.

Enquanto não há nova data para julgamento, organizações que acompanham o tema questionam as razões para a retirada da pauta pelo ministro Luiz Fux, presidente da Corte.

A assessoria do Supremo informou que o adiamento não se deu em função de um pedido de vistas ao processo, mas devido ao acúmulo de pautas.

O que está em jogo

O STF deve julgar o recurso extraordinário 1.017.365, referente a um pedido de reintegração de posse movido pela Fundação do Meio Ambiente do Estado de Santa Catarina (Farma) contra a Fundação Nacional do Índio (Funai) e indígenas do povo Xokleng. A decisão se refere à Terra Indígena Ibirama-Laklanõ, área reivindicada e já identificada como parte de seu território tradicional.

O recurso teve a repercussão geral reconhecida pelo plenário do Supremo em fevereiro de 2019. Ou seja, o que for julgado nesse caso valerá para todos os demais que envolvam demarcações de terras indígenas.

Há duas teses em disputa. A primeira, baseada na “teoria do indigenato” reconhece o direito territorial dos povos indígenas como originário, segundo os termos da Constituição Federal. A segunda, apoiada por ruralistas, propõe uma reinterpretação do texto constitucional com base no chamado “marco temporal”.

Nesse último caso, os povos indígenas só teriam direito à demarcação das terras que estivessem sob sua posse no dia 5 de outubro de 1988, data de promulgação da Constituição, ou que estivessem sob disputa física ou judicial comprovada nessa data.

Questionamentos

Dinaman Tuxá, coordenador executivo da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), critica a decisão de Fux de retirar o julgamento da pauta do STF e afirma que a falta de justificativas abre margem para especulações.

“Eles estão lidando com vidas, não estão lidando com máquinas, com gado”, enfatiza. “Há uma grande mobilização da parte contrária, que tem interesse em explorar as terras indígenas e que tem um lobby muito grande. São grandes corporações, é o agronegócio, que vem atuando de forma muito intensa sobre o Legislativo e também sobre o Judiciário.” 

O recurso com repercussão geral só deve voltar à pauta do Supremo após a posse de Kassio Nunes, em 5 de novembro. O novo ministro substituirá Celso de Mello, juiz mais antigo da Corte, que está prestes a se aposentar.

O coordenador da Apib lembra que Nunes foi indicado por Jair Bolsonaro (sem partido), conhecido por ataques recorrentes aos povos indígenas.

“No nosso entendimento, há sim uma vinculação [do adiamento] com a espera desse novo ministro, que tem alinhamento com o atual presidente”, acrescenta. “O Celso [de Mello], por outro lado, tinha certo diálogo conosco, entende a importância da pauta, é um constitucionalista e tem preocupação com o fortalecimento da nossa democracia.”

A Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA) apoiou a indicação de Kassio Nunes ao Supremo em uma nota divulgada no dia 21 de outubro, que cita textualmente o julgamento do marco temporal. 

Juliana Batista, advogada do Instituto Socioambiental (ISA), explica que a retirada de processos da pauta do STF não é um fenômeno raro e que cabe ao presidente do STF definir quando será o julgamento. 

“Seria bom se houvesse uma justificativa do porquê, se há expectativa de voltar para a pauta”, analisa.

“A gente entende que tem que ser votado logo, porque é uma pauta importante para conferir segurança jurídica para interpretação do artigo 231 da Constituição e para termos uma palavra final do STF sobre o tema. Uma interpretação equivocada pode gerar manobras contrárias aos direitos indígenas”, ressalta.

O Código de Processo Civil orienta que casos de repercussão geral são prioritários e devem ser julgados em até um ano. “No caso do marco temporal, a pauta está aguardando há mais de um ano e meio”, ressalta Batista. 

Enquanto o recurso não é julgado

O ex-presidente Michel Temer (MDB) assinou, em julho de 2017, um parecer da Advocacia Geral da União (AGU) obrigando todos os órgãos do Executivo a aplicar o marco temporal e a vedação à revisão dos limites de terras já demarcadas. Naquele ano, a Apib lançou a campanha “Nossa história não começa em 88”, em oposição ao argumento defendido pela AGU, por Temer e pela FPA.

Desde a assinatura de Temer, a tese do marco temporal inviabilizou a demarcação de pelo menos 27 terras indígenas, que tiveram seus processos devolvidos do Ministério da Justiça e Segurança Pública para a Funai. Outras 310 terras indígenas estão com processos de demarcação paralisados. 

Em maio de 2020, o ministro do STF Edson Fachin suspendeu os efeitos do parecer da AGU e todas as ações judiciais de reintegrações de posse ou anulação de processos de demarcação de terras indígenas enquanto durar a pandemia de covid-19 ou até o julgamento final do recurso extraordinário n.º 1.017.365. 

A Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), assim como várias organizações indígenas, participou como amicus curiae (em português, “amigo da Corte”] no julgamento. Ou seja, foi ouvida pelos ministros do STF para subsidiar a tomada de decisão.

Assessor jurídico da CNA, Rodrigo Kaufman defendeu no dia 22 de maio o parecer da AGU e a tese do marco temporal. Contrária à suspensão determinada por Fachin, a Confederação – que reúne lideranças ruralistas de todo o país – sinalizou que considerava urgente de um posicionamento definitivo do STF para evitar “insegurança jurídica” e a “conflagração de conflitos no setor rural.” A sustentação oral ocorreu antes da indicação de Nunes por Bolsonaro.

“Eu acredito que isso é uma jogada”, diz Dinaman Tuxá, sobre o fato de a CNA não ter se posicionado publicamente em defesa do adiamento da votação.

“Eles veem esse novo ministro [Kassio Nunes] como um aliado, em termos de entendimento sobre a pauta do agronegócio. A nota da FPA não foi em vão. O Kassio ainda não se posicionou sobre o marco temporal, mas já teve decisões contra a pauta indígena, o que gera temores.”

Brasil de Fato entrou em contato com a CNA para entender como a organização reagiu ao adiamento do julgamento no Supremo, mas não houve resposta.

Edição: Leandro Melito

Foto: Tiago Miotto/Cimi

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