Leandro Machado, da BBC News Brasil
No dia 7 de agosto de 1965, o jornalista Vladimir Herzog escreveu uma carta a seus amigos Jean Claude Bernardet (crítico de cinema) e sua esposa, a professora de literatura Lucila Ribeiro Bernardet:
“Eis-me já assentado em Londres, já entrando aos poucos na rotina… Como sabem, estou na BBC, devendo ficar, em princípio, por três anos. Quanto ao problema da volta ao Brasil, prefiro não colocá-lo no momento, mesmo porque seria fora de cogitação, em vista da evolução da situação aí”.
Quando fala sobre “evolução da situação aí”, é provável que Herzog se referisse à ditadura militar, que havia tomado o poder com um golpe de estado pouco mais de um ano antes. Foi esse regime que, em 25 de outubro de 1975, há 45 anos, acabaria por torturar e assassinar Herzog nos porões do Doi-Codi, em São Paulo.
Detalhes dos três anos em que a Vlado, sua esposa Clarice Herzog e seus dois filhos viveram em Londres, além do trabalho do jornalista para o serviço brasileiro da BBC — hoje, a BBC News Brasil — , foram disponibilizados recentemente em um acervo na internet.
No ano passado, seu acervo pessoal e produção jornalística foram tema de uma exposição no Itaú Cultural, em São Paulo, sob curadoria da própria entidade e do Instituto Vladimir Herzog. Nesse ano, o instituto disponibilizou o material completo na internet, que tem cartas, fotografias, reportagens escritas e até uma adaptação radiofônica de uma peça teatral protagonizada pelo jornalista e transmitida pela BBC.
Mas, antes do conhecido episódio da morte do jornalista pelas mãos dos militares, o que teria levado Herzog à Inglaterra?
“No meu entendimento, com o golpe de 1964, as condições de trabalho ficaram mais difíceis no Brasil. Dois amigos do meu pai já tinham ido para Londres, então apareceu uma oportunidade de trabalho na BBC. Ele e minha mãe, recém casados, resolveram ir também”, diz Ivo Herzog, filho de Vlado. Ivo nasceu em agosto de 1966, em Londres, assim como seu irmão, André, de abril de 1968.
Brasileiros na BBC
O primeiro amigo de Vlado a ir para Londres foi o jornalista Nemércio Nogueira, hoje com 80 anos. Os dois se conheceram no jornal O Estado de S. Paulo, onde Nogueira era redator da seção de política; e Herzog, repórter que cobria principalmente cinema e cultura.
“A gente trabalhava em áreas diferentes no Estadão, então pouco se via na redação. Na verdade, a gente se conheceu em 1961, num barzinho, apresentados por amigos em comum, naquela vida social que o jornalistas vivem”, conta Nogueira, por telefone.
No final de 1962, Nogueira enviou uma carta pedindo uma oportunidade trabalho para o serviço brasileiro da BBC, que na época tinha redação apenas em Londres e transmitia programas gravados e ao vivo para o Brasil, em ondas curtas.
“Mandei a carta na cara de pau mesmo, achava que nunca iriam me responder. Para minha surpresa, veio uma resposta dizendo que havia uma vaga naquele momento. Pediram para eu fazer um teste de voz e de inglês, além de um exame médico. Passei em tudo. Depois chegou a passagem. Casei correndo e fomos eu e minha mulher para Londres. Naquela época era mais fácil, né?”.
Seis meses depois da ida de Nemércio Nogueira, ocorreu o golpe militar. “Ser jornalista no Brasil naquela época era bastante insalubre. As condições de trabalho não eram boas, isso contou muito. Uma das poucas oportunidades para se trabalhar como jornalista fora do país era a BBC. E, além disso, ainda havia muita incerteza sobre a ditadura, que, em 1965, antes do AI-5, ninguém sabia direito se iria durar ou não. Então consegui indicar dois amigos para a BBC”, diz o jornalista.
O primeiro amigo foi Fernando Pacheco Jordão (1937-2007), também oriundo do Estadão. Depois, desembarcou Vladimir Herzog, em julho de 1965.
Cinema documental
“Houve uma influência da ditadura na decisão do Vlado de deixar o país. Mas ele também tinha muito interesse em cinema documental e em TV educativa. Ele via na BBC e na Europa uma chance de melhorar sua formação profissional e intelectual”, explica o documentarista Luís Ludmer, coordenador do acervo Vladimir Herzog.
Antes de sair, Vlado tinha se aproximado bastante da produção cinematográfica, área que teria sido seu futuro caso ele não tivesse sido assassinado, acredita Ludmer.
Em 1963, o jornalista fez um estágio na Argentina com o cineasta e teórico Fernando Birri, por exemplo. Também participou da gestão cultural da Cinemateca Brasileira e dirigiu um curta-metragem documental chamado Marimbás (1963), além de ter participado da produção de outros filmes.
Na Europa, além do trabalho diário na BBC, ele escreveu críticas de cinema e reportagens para a revista Visão, como correspondente — no período, Vlado e a esposa Clarice conheceram diversos países. Também cobriu mostras e até apresentou uma mesa sobre o cinema documental brasileiro no Festival de Florença, em 1966.
“O Vlado acabou virando uma espécie de embaixador do cinema brasileiro na Europa. Ele conseguiu que alguns filmes produzidos aqui fossem exibidos em festivais europeus”, diz Ludmer.
Para Rogério Sottili, diretor-executivo do Instituto Vladimir Herzog, o acervo recém-lançado mostra uma faceta do jornalista que o grande público não conhecia. “Todos sabem da história do ‘caso Herzog’ na ditadura, mas a produção intelectual dele era pouco conhecida”, explica.
“O material mostrou que Vlado tinha um enorme interesse por cinema, principalmente documental. Ele tinha uma preocupação de que o cinema não deveria existir só pela arte, mas sim para mostrar a realidade brasileira e as questões importantes da população.”
Iê-Iê-Iê na BBC
Segundo uma carta enviada por Vlado a um amigo em agosto de 1965, ele e a esposa Clarice viviam em um apartamento com dois cômodos (quarto e cozinha). “A coisa barateia se vocês não fizerem questão de banheiro exclusivo”, escreveu. Segundo ele, havia no prédio seis apartamentos e quatro banheiros, divididos pelos moradores.
Nemércio Nogueira lembra que os brasileiros da BBC viviam bem em Londres, mas não havia muito conforto para a maioria. “O salário não era tão bom assim. Dava para viver tranquilamente, mas sem grandes exageros”, explica.
Na época, o único contato frequente com o Brasil era por carta, diz Nogueira. “Nos três anos que fiquei na BBC, liguei para o Brasil pouquíssimas vezes, porque custava uma fortuna. Eu ligava normalmente no Natal, e falava só por três minutos, que era o tempo que eu podia pagar”, conta.
O jornalista lembra que Londres vivia uma efervescência cultural na segunda metade da década de 60, enquanto ele, Vlado e Fernando Pacheco Jordão beiravam os 30 anos. “Havia os Beatles, os Rolling Stones… Londres era a cidade da moda, tudo acontecia lá. E a gente achava que deveria mostrar o que estava acontecendo para o Brasil”, diz Nogueira.
Além de produzir o boletim noticioso diário, o trio de jornalistas criou um programa para transmitir aos brasileiros o moderno rock inglês da época. A atração semanal, que durava 15 minutos, chamava “Iê-Iê-Iê na BBC”, em referência ao quarteto de Liverpool.
“Quando saía um disco na Inglaterra, demorava muito para ele chegar no Brasil. O programa acabou sendo importante, porque era o primeiro a transmitir as novidades musicais da Inglaterra para o Brasil”, aponta Nogueira.
O jornalista conta outra história interessante sobre a turma dele e de Vlado em Londres. Em 1966, a Inglaterra sediou a Copa do Mundo, e a direção do serviço brasileiro da BBC decidiu que a equipe não iria transmitir o campeonato. “Eu, Fernando e o Vlado contestamos, dizendo que era o evento mais importante para o Brasil. Seria nossa maior audiência desde a 2ª Guerra Mundial”, conta Nogueira.
A BBC topou a ideia, mas havia um problema básico: ninguém na equipe entendia muito de futebol nem tinha qualquer experiência em transmitir e narrar jogos. A solução foi enviar Nogueira e Brandão para treinar em partidas do campeonato inglês anteriores à Copa.
“Usamos um gravador portátil, no colo, e eu comecei a narrar as partidas. Mas eu não sabia o nome de nenhum jogador, às vezes nem dos times ingleses. Mesmo assim, fizemos tudo certo. Levávamos a gravação para a redação, e todo mundo ouvia e dava pitacos”, conta.
Quando a Copa chegou, Nogueira e Brandão foram enviados aos estádios para transmitir ao vivo os jogos da Seleção Brasileira — Vladimir Herzog ficava na redação, na função de ‘plantão’, que informa os resultados de outras partidas.
A Copa foi um fiasco para a Seleção, então bicampeã mundial, eliminada na primeira fase depois de perder por 3 a 1 para Portugal. Apesar da vitória na estreia contra a Bulgária por 2 a 0, o Brasil perdeu em seguida para a Hungria por 3 a 1, placar que repetiria contra Portugal, encerrando o sonho do tricampeonato consecutivo de forma lamentável. Todas as três partidas da seleção brasileira foram disputadas em Liverpool, no estádio Goodison Park, do Everton.
Mas a equipe brasileira da BBC continuou cobrindo o torneio até a final vencida pela Inglaterra por 4 a 2 sobre a Alemanha. Quando o jogo estava empatado em 2 a 2, Geoff Hurst marcou, aos 11 minutos da prorrogação, um gol irregular que colocou o time inglês à frente do placar, episódio até hoje considerado um dos mais controversos da história do futebol.
“Curiosamente, depois que o Brasil saiu da Copa, muitas rádios brasileiras enviaram suas equipes de volta. Acabou que a BBC foi uma das únicas que transmitiram a Copa inteira para o Brasil. Logo nós, que, até pouco tempo antes, nunca tínhamos feito nada sobre futebol”, conta Nogueira, que nunca mais narrou uma partida na vida e se tornaria apresentador do Repórter Esso, na TV Tupi.
Vida e carreira interrompidas
Quase nada do material produzido por Vladimir Herzog para a BBC sobreviveu. Naquela época, a maior parte da programação era transmitida ao vivo. Já os programas gravados foram registrados apenas em fitas, que depois eram reutilizadas.
Hoje, há disponível apenas a adaptação da peça teatral Verdadeiro Demais Para Ser Bom, de Bernard Shaw, que tem interpretação de Vlado e de outros membros da equipe. Esse é um dos poucos registros da voz do jornalista.
Na BBC, ele ainda fez um curso sobre televisão educativa, um dos seus principais desejos ao se mudar para Londres. Ele e a família voltaram ao Brasil no final de 1968, quando os militares endureceram o regime por meio do AI-5.
Vladimir Herzog ainda foi editor da revista Visão e diretor de jornalismo da TV Cultura de São Paulo, cargo que ocupava quando, em outubro de 1975, foi preso pela ditadura militar.
Segundo a Comissão Nacional da Verdade, que investigou crimes praticados pelo regime, a prisão e morte de Vlado “foi consequência da Operação Jacarta, que atingiu entidades influentes da opinião pública, como a Arquidiocese de São Paulo, Sindicato dos Jornalistas, OAB e o movimento estudantil.
De acordo com a versão oficial divulgada pelos militares, Herzog teria se enforcado com o cinto do uniforme do presídio. Mas essa história foi desmascarada pelo testemunho de dois companheiros de prisão, os jornalistas Rodolfo Konder e George Benigno Jatahy Duque Estrada, que estavam detidos na mesma época no órgão de repressão.
“De lá, podíamos ouvir nitidamente os gritos, primeiro do interrogador e, depois, de Vladimir e ouvimos quando o interrogador pediu que lhe trouxessem a ‘pimentinha’ e solicitou ajuda de uma equipe de torturadores. Alguém ligou o rádio, e os gritos de Vladimir se confundiam com o som do rádio. […] A partir de determinado momento, o som da voz de Vladimir se modificou, ficou abafada, como se lhe tivessem posto uma mordaça […]”, afirmou Rodolfo Konder ao Superior Tribunal Militar, segundo transcrição do livro Brasil: Nunca Mais.
Vlado tinha 38 anos quando teve a vida e a carreira interrompidas pela ditadura militar.
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Imagem: Vladimir Herzog – Foto: Instituto Vladimir Herzog
Enviada para Combate Racismo Ambiental por Isabel Carmi Trajber.