Apagão do Amapá e os riscos para o país: insegurança energética volta à ordem do dia

“Consumidor não ganhou nada com privatização”, diz diretor da Associação de Engenheiros e Técnicos do Sistema Eletrobras

Cristiane Sampaio, Brasil de Fato

A crise de abastecimento que atinge o Amapá desde o último dia 3 realçou o debate sobre os riscos da privatização dos serviços de distribuição de energia elétrica no país – uma realidade no mercado nacional, onde apenas seis das mais de 50 empresas do ramo são estatais.

“A gente tem visto, desde o princípio do processo de privatização, nos anos 1990, que isso vem com precarização do serviço e aumento da tarifa. O consumidor não ganhou nada com a privatização. Pelo contrário, perdeu”, resume o diretor da Associação dos Engenheiros e Técnicos do Sistema Eletrobras (Aesel), Ikaro Chaves.

Em conversa com o programa Bem Viver, da rádio Brasil de Fato, o engenheiro criticou a tentativa de venda da Companhia Energética de Brasília (CEB), atualmente alvo de um edital de privatização, e rememorou o caso do estado de Goiás, onde a venda da estatal local tem provocado problemas recorrentes no serviço.

Essas experiências, somadas ao exemplo amapaense, trazem, para Chaves, um alerta: é preciso combater a política das privatizações e evitar a venda da Eletrobras, ponta de lança dessa cartilha. “Se faltar luz na sua casa, não tem pra onde você recorrer. Você não vai ter cada pessoa comprando um gerador pra sua casa. Então, a gente tem que lutar com todas as forças”, estimula o especialista. Confira a seguir a entrevista na íntegra.

BdF – Gostaria de começar falando da situação do Distrito Federal (DF). O governo Ibaneis (MDB) já vinha manifestando há algum tempo o interesse em privatizar a Companhia Energética de Brasília (CEB), e agora, de fato, o processo foi aberto. Vocês têm sido fortemente contrários a essa venda. Poderia explicar esse posicionamento?

Nós nos posicionamos contra desde que o governador lançou essa proposta. É bom lembrar que, na campanha [eleitoral], ele inclusive assinou documento se comprometendo com a manutenção da CEB pública, mas ele simplesmente rasgou a palavra dele. Nós temos nos colocado contrários a isso por causa das consequências que a gente sabe que vai haver, primeiro, pros trabalhadores da CEB.  

As privatizações do setor elétrico vêm, inevitavelmente, com demissão em massa e precarização do serviço 

A gente sabe que as privatizações do setor elétrico vêm, inevitavelmente, com demissão em massa, com precarização do serviço e das questões relacionadas à segurança e saúde do trabalhador. E, principalmente, [prejuízos] pra população, porque o histórico das privatizações no Brasil é de precarização no serviço e aumento da tarifa.  

Então, a gente sabe que a população do Distrito Federal vai pagar a conta dessa privatização. Isso é importante [de ressaltar] não só pelos moradores daqui, mas pelo fato de ser a capital da República. Não é uma unidade federativa qualquer. Significa vulnerabilidade no sistema elétrico da capital, onde estão as embaixadas, os ministérios, os Poderes da República. Na nossa opinião, além de ser crime contra a população do DF, é uma tremenda irresponsabilidade.

BdF-  O que significa a privatização do setor elétrico quando a gente fala da vida do cidadão?  

O setor elétrico brasileiro já é majoritariamente privado. A grande maioria das distribuidoras de energia elétrica, que são aquelas que vendem energia para o cidadão, é privada. A gente tem seis distribuidoras de energia estatais no Brasil hoje. Entre mais de 50, só seis são estatais. O resto é tudo privado. Parte do parque gerador já é privada, parte do sistema de transmissão também.

E o que a gente tem visto, desde o princípio desse processo de privatização, lá nos anos 1990 ainda, é que, invariavelmente, isso vem com precarização do serviço e aumento da tarifa. Então, o consumidor não ganhou nada com a privatização. Pelo contrário, perdeu, e a gente vê vários estados onde a situação é de calamidade pública praticamente, como é o caso do estado de Goiás, onde as cidades chegam a passar dias sem energia elétrica. Então, a experiência tem mostrado pra gente o quanto esse processo é danoso para o país e o consumidor, principalmente.

BdF- Além desse impacto que a privatização tem na vida do público consumidor, quem mais é afetado? O Estado em si, o país também podem perder algo com isso?

Os prejuízos são muito grandes. Primeiro, do ponto de vista da segurança energética do país. O Brasil é um país em desenvolvimento e ainda tem uma utilização relativamente baixa da energia elétrica comparadamente a outros países. Então, a gente precisa ampliar a oferta de energia elétrica para ampliar o nosso desenvolvimento, a industrialização, inclusive pra que as pessoas possam utilizar nas suas residências também.

A iniciativa privada geralmente não investe na expansão do sistema. As grandes obras estruturantes foram feitas com a participação decisiva de empresas estatais 

E o que acontece? A gente vê que a iniciativa privada geralmente não investe na expansão do sistema. As grandes obras estruturantes do país, tanto no passado [histórico] quanto no passado recente, foram feitas com a participação decisiva de empresas estatais, principalmente da Eletrobras.

A gente vê que, se privatizar essas empresas, é muito provável que tenhamos a repetição de episódios como vivemos no começo do século, como o apagão, quando a iniciativa privada simplesmente não investiu. A Eletrobras, naquela época, ficou proibida de investir, e a iniciativa privada não investiu. Há um risco muito grande ligada à questão da segurança energética e também da própria soberania nacional.

País nenhum do mundo entrega todo o controle do seu sistema elétrico para a iniciativa privada – no nosso caso, principalmente estrangeira, vamos deixar claro. Isso realmente é um atentado muito grande à soberania.

BdF- A gente acompanha atualmente a situação do Amapá, onde 14 municípios tiveram e ainda estão tendo um sério problema com o abastecimento de energia. Chamou a atenção o fato de o presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM), ter passado a defender que a empresa privada perca a concessão no estado e que a Eletronorte, que é um braço da Eletrobras (portanto, uma empresa pública), administre a demanda da região. Alcolumbre é um aliado do presidente Jair Bolsonaro, especialmente na agenda econômica, que traz uma série de privatizações. O fato de ele estar defendendo o fim da concessão surpreende você?

Não. Não é surpresa. A gente sabia que isso iria acontecer porque a história tem demonstrado isso. Não é a primeira vez que isso acontece. A gente não podia imaginar que fosse agora, tão cedo, mas o fato é que era previsível que isso ocorresse. O que acontece? Essa empresa Isolux participou de um leilão, construiu essa obra, é verdade, e foi uma das poucas obras estruturantes feitas sem a participação da Eletrobras ou de outra estatal.

Essa linha que leva energia do sistema interligado nacional do Amapá foi construída por essa empresa. E qual é o problema? É que, para poder se consagrar vencedora do leilão, a Isolux ofereceu preço menor pela cobrança do serviço. E como ela conseguiu fazer isso? Comprometendo a qualidade do serviço. 

Nós estamos vendo agora: a qualidade dos equipamentos é muito ruim e economizou muito dinheiro na manutenção, com equipes absurdamente reduzidas, sem experiência, sem o quantitativo necessário de pessoas, sem equipamentos pra fazer ensaios, para fazer todo o tratamento do óleo, ou seja, não tem a condição necessária de fazer uma manutenção adequada daquele serviço, e muito menos lidar com uma ocorrência do vulto como se viu no Amapá.

Por isso que o Estado brasileiro, o Ministério das Minas e Energia foi obrigado a chamar a Eletronorte pra que ela pudesse fazer isso, porque a Eletronorte tem um quadro altamente qualificado, tem todos os equipamentos pra tratar uma situação como essa, e é quem está fazendo isso.

Então, a gente sabia que isso iria acontecer, e o presidente do Senado, que está acompanhando o caso de perto, sabe que, se deixar como está, é bem provável que a gente veja a repetição desse incidente no futuro. Ele sabe que a coisa mais prudente a fazer neste momento é, de fato, passar a concessão pra proteger o povo do Amapá. E quem tomaria conta? Seria a Eletronorte, que, aliás, já trabalha no Amapá desde a década de 1970.

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Então, não é surpresa, isso já aconteceu no passado. Vamos lembrar que, no Rio Grande do Sul, o governador Leonel Brizola, nos anos 1960 ainda, fez a encampação do sistema elétrico do estado, e isso aconteceu em vários estados, justamente por essa falta de qualidade.

É lamentável, a população sofre, e a gente espera que isso sensibilize a classe política e a população como um todo sobre o risco de você entregar um setor tão estratégico como o elétrico pra empresas privadas e geralmente estrangeiras, como é o caso da Isolux, sem compromisso com o serviço público.

BdF- Você mencionou a questão da expertise dos funcionários da Eletronorte que estão sendo chamados a atuar no Amapá. A Eletrobras tem, de fato, um know-how que é muito valorizado. É comum vocês observarem nas empresas privadas que assumem esses serviços um certo nível de dificuldade? Eles têm, por exemplo, um nível de terceirização relativamente alto. Isso chega a chamar a atenção de vocês?

É exatamente isso. É uma crítica que a gente faz a esse modelo de expansão do setor elétrico, que é feito de forma muito fragmentada. Você pega, por exemplo, a Eletronorte, que atua no Pará, no Amapá, no Tocantins, em Mato Grosso, Amazonas, Acre, Rondônia, Roraima, até em São Paulo. É uma empresa que está em vários estados e que é grande. Isso faz com que ela consiga, primeiro, ter equipes grandes, equipes com especialistas em várias áreas.

Então, foram chamadas equipes de vários estados – Maranhão, Pará, do próprio Amapá, Rondônia. Eles levaram os melhores especialistas pra lá e também ela [a estatal] consegue ter equipamentos pra fazer manutenção porque ela tem uma área muito grande.

Então, ela tem que fazer manutenção em várias plantas, em várias linhas, e tem uma quantidade grande de equipamentos para lidar com uma situação como essa. Para uma empresa que só tem uma linha de transmissão, só tem um trecho, é difícil de manter uma equipe tão grande de especialistas e tantos equipamentos de ponta, como a Eletronorte possui.

Precisamos que a população se mobilize, que cobre dos seus parlamentares, utilize as redes sociais, vá pras ruas, porque o preço a pagar (de privatizações) é muito alto 

E a gente vê isso, vê algumas sociedades de propósito específico (SPEs), que têm uma ou outra linha de transmissão pelo país, e que têm um quadro absurdamente reduzido, aí o pessoal fica rezando pra não dar nenhum problema porque, se der, não tem quem faça a correção disso. Não tem quem tome conta e tenha condições de colocar o sistema em operação de novo, que foi exatamente o que aconteceu ali. Então, isso, lamentavelmente, é uma característica do setor elétrico brasileiro hoje, e o que aconteceu no Amapá pode acontecer em outros lugares. O problema do Amapá, e que é mais grave, é que o estado só tem essa linha praticamente. Eles não têm um caminho alternativo pra energia, por isso tem acontecido essa tragédia no estado.

BdF- Já que a privatização é vista como algo tão danoso aos interesses do consumidor e do país, como lutar contra ela? Qual seria a cartilha a ser aplicada pra se lutar contra?

Precisamos lutar com todas as armas, porque o preço que pagamos depois é muito alto. A gente vê isso, por exemplo, em Goiás, onde a população, antes da privatização da Celg, por mais que os sindicatos tenham alertado, eles não se mobilizaram. Hoje eles se mobilizam, mas, depois que privatiza, é muito difícil voltar atrás.

A gente está vendo o que acontece no Amapá… Se aquela linha tivesse sido construída pela Eletrobras, muito provavelmente não teria acontecido essa tragédia. A gente não deixaria chegar a esse ponto jamais, porque ali, provavelmente, foi muita negligência que houve no caso.

Agora, o que precisamos fazer? Nos mobilizar. Precisamos que a população se mobilize, que cobre dos seus parlamentares, utilize as redes sociais, cobre, vá pras ruas, faça protesto, manifestação, porque o preço a pagar é muito alto. A gente não pode deixar isso acontecer. Energia elétrica não é um produto qualquer. Se faltar luz na sua casa, não tem pra onde você recorrer. Você não vai ter cada pessoa comprando um gerador pra sua casa. Então, a gente tem que lutar com todas as forças, pressionando o parlamento e os governos, fazendo manifestações de rua e o que mais for preciso pra evitar que isso aconteça.

Edição: Rogério Jordão

Imagem: Rudja Santos/Amazônia Real (via Fotos Públicas)

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