Apesar dos enormes desafios para superar o racismo estrutural, Brasil celebra o Dia da Consciência Negra em meio à globalização do debate. Entrevista especial com Kabengele Munanga

“Temos lições a tirar dessa espontaneidade em massa”, diz o antropólogo, sobre protestos que reuniram pessoas de todas as cores e nacionalidades

Por: João Vitor Santos, em IHU On-Line

No dia 20 de novembro se celebra no Brasil o Dia Nacional da Consciência Negra. A data é celebrada no dia da morte de Zumbi dos Palmares, uma liderança negra histórica que lutou contra a escravidão. Retomamos neste dia a entrevista com o antropólogo Kabengele Munanga, publicada originalmente em junho de 2020, quando eclodiram as recentes manifestações do Black Lives Matter, com o assassinato de George Floyd.

Recordamos também algumas edições da revista IHU On-line que debatem o tema da negritude, tais como, O Brasil na potência criadora dos negros – O necessário reconhecimento da memória afrodescendenteResistência Viva. A luta de Zumbi e Dandara continua e Ubuntu. ‘Eu sou porque nós somos’.

A expansão das manifestações contra o racismo para vários países do mundo depois da morte de George Floyd, nos Estados Unidos, merece atenção porque demonstra que algo novo está em curso: “a globalização da consciência sobre um dos graves problemas da humanidade, o racismo”, diz o antropólogo Kabengele Munanga à IHU On-Line. Segundo ele, os manifestantes dos sucessivos protestos que ocorrem em meio à pandemia de covid-19 “estão dizendo que o racismo não é problema do negro, mas, sim, um problema da humanidade e das sociedades que o praticam. Portanto, os sujeitos brancos conscientes não podem ficar indiferentes, sobretudo quando têm consciência de que a branquitude lhes oferece vantagens que os negros não têm num universo racista”.

O pesquisador explica que o racismo é um fenômeno “complexo”, com raízes estruturais e culturais. “O racismo que nós conhecemos e que remonta à modernidade ocidental é sempre ligado à estrutura de poder político, quer isso seja nos Estados Unidos, no regime do Apartheid ou no regime nazista”, onde o racismo foi oficialmente institucionalizado a partir da legislação. Já no Brasil, compara, “o racismo existe de fato nas instituições, onde os negros não aparecem ou são sub-representados, como nos três poderes”. Além disso, lamenta, “a cada 26 minutos um jovem negro é morto pela violência policial em nossas periferias. Tudo isso é sabido pelos responsáveis do país a nível federal, estadual e municipal, mas nenhuma política pública para preservar a vida de muitos jovens negros é construída seriamente, como que para dizer que as vidas negras pouco importam”.

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, Munanga também reflete sobre o racismo no Brasil e sobre os desafios do movimento negro na atual conjuntura. “O movimento negro, com suas diversas organizações, sempre terá grandes desafios como todos os movimentos sociais, sobretudo nos momentos de crise como este que estamos vivendo por causa da pandemia de covid-19 e da conjuntura política que quer rasgar todas as conquistas das gerações anteriores. O desafio é maior por causa da situação política, econômica e social fragilizada”, conclui.

Kabengele Munanga é antropólogo brasileiro-congolês, graduado pela Université Officielle du Congo e doutor em Antropologia pela Universidade de São Paulo – USP. Foi diretor do Museu de Arqueologia e Etnologia e do Centro de Estudos Africanos da USP. Desde 2014, leciona na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia. Em 2002 foi agraciado com a Ordem do Mérito Cultural, dada a personalidades brasileiras e estrangeiras como forma de reconhecer suas contribuições à cultura do Brasil.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Qual a sua análise sobre as manifestações decorrentes do assassinato de George Floyd? Podemos comparar à mobilização desencadeada por Martin Luther King?

Kabengele Munanga – A liderança de Luther King e a de Malcolm X, apesar de lançarem mão de estratégias diferentes, tinham o mesmo objetivo: erradicar a discriminação racial e outras formas de práticas racistas que bloqueavam o acesso dos negros aos direitos civis reservados aos brancos numa sociedade racialmente segregada. Os movimentos de luta contra a segregação racial em defesa dos direitos civis dos negros nos Estados Unidos se acirram em 1955 a partir do episódio da costureira Rosa Parks, que foi presa por se recusar a ceder seu assento no ônibus a um cidadão branco na cidade de Montgomery. Foi então que os ativistas negros defensores dos direitos civis para negros iniciaram o movimento de boicote aos ônibus em Montgomery, que durou 382 dias e levou a Corte Suprema americana em 1956 a considerar como inconstitucional a segregação racial no transporte público. Nesse movimento, Martin Luther King Jr. se destacou e intensificou sua liderança, que o tornou mais conhecido na Marcha sobre Washington em 1963, a qual reuniu 250 mil pessoas, marcha marcada pelo discurso “eu tenho um sonho” (I Have a Dream).

Manifestações globais

Mas a Marcha sobre Washington, apesar das repercussões mundiais, não reuniu tantas pessoas de todas as cores, negros, brancos, latinos e asiáticos, como se viu nas manifestações de protestos contra a morte de George Floyd  pelo policial branco, que se arrastam em todos os estados dos Estados Unidos e atravessam as fronteiras para repercutir nas grandes metrópoles europeias, como LondresParisBerlimAmsterdam, e nos países asiáticos, como Japão e Coreia do Sul, entre outros. Pela primeira vez, eu vejo brancos de vários países do mundo ocidental, cuja maioria da população é de brancos, protestando contra a violência policial que matou um negro num país onde essa violência sempre existiu. Claro, os negros nos Estados Unidos sempre se mobilizaram e protestaram, mas nunca houve tamanha participação dos brancos tanto nos Estados Unidos como em países europeus.

O que é surpreendente é que isto acontece em plenas medidas de isolamento para evitar os riscos de contaminação pela covid-19, que recomendam que as pessoas fiquem em suas casas. Nem isso serviu e as pessoas foram para as ruas, arriscando suas próprias vidas. Por que acontece só agora e não antes? A consciência dos sujeitos brancos e outros contra as injustiças racistas já existe em várias sociedades ocidentais, mas nunca se manifestou com tanta força e carga afetiva como a gente está vivendo nestes dias, a partir do episódio de George Floyd. O que houve para que aconteça de repente, neste momento que ninguém esperava? Explicações especulativas não faltariam, mas temos lições a tirar desta espontaneidade em massas, pois esses protestos estão surgindo sem lideranças conhecidas, como foram Luther King, Malcolm X,  Gandhi,  Mandela etc. São manifestações populares sem grandes lideranças preparadas e organizadas.

Globalização da consciência

Da mesma maneira que se aproveitou do episódio de Rosa Parks, em 1955, em Montgomery, para dizer não à segregação racial nos Estados Unidos, estão se aproveitando no plano, diria, mundial, para dizer não ao racismo e ao fascismo. Esses movimentos teriam algo a mais, que merece atenção: a globalização da consciência sobre um dos graves problemas da humanidade, o racismo. Essas manifestações estão dizendo que o racismo não é problema do negro, mas, sim, um problema da humanidade e das sociedades que o praticam. Portanto, os sujeitos brancos conscientes não podem ficar indiferentes, sobretudo quando têm consciência de que a  branquitude lhes oferece vantagens que os negros não têm num universo racista.

Será que a luta contra o racismo vai definitivamente levantar voo depois dessas manifestações no mundo, num momento tão delicado para nossas vidas? O racismo não morreu e os racistas não morreram depois deste momento histórico, mas os movimentos de lutas se fortalecerão, certamente, para pressionar os responsáveis políticos de suas sociedades para rever suas estratégias e as políticas públicas, até agora em construção de maneira tímida, para lutar contra o racismo e em defesa da inclusão dos excluídos negros, indígenas e outros.

IHU On-Line – O mundo inteiro se comoveu com a história de Floyd, gerando manifestações muito além dos Estados Unidos. Isso revela que o racismo está em vários lugares, mas ele é o mesmo, se dá da mesma forma, em todos os países?

Kabengele Munanga – O racismo como fenômeno ideológico que estipula a superioridade branca e a inferioridade negra em todos os planos é único, tanto nos Estados Unidos, no regime nazista, como no regime do  Apartheid  e nos países da América dita Latina encabeçados pelo Brasil. Mas desenvolveram-se historicamente modelos diferentes, como o sistema Jim Crow no Sul dos Estados Unidos, o regime do Apartheid na África do Sul e nosso modelo brasileiro ancorado no ideal de democracia racial que, na realidade, é um mito e não uma realidade, pois essa democracia racial não existiu e ainda não existe até este momento em que estamos falando. No entanto, todos os racismos são abomináveis, pois cada um de sua maneira faz suas vítimas.

Elie Wiesel, judeu Nobel da Paz, tem uma frase interessante que diz que o “carrasco mata sempre duas vezes, a segunda pelo silêncio”. O racismo mata fisicamente, como demonstrado pelo genocídio da juventude negra nas periferias brasileiras, e mata pelo silêncio a consciência tanto das vítimas do racismo, quanto a dos brancos que, em sua maioria, ainda acreditam no mito de democracia racial e na ideia de que somos todos mestiços e, portanto, não há mais negros no Brasil a serem discriminados, como não há mais brancos que podem discriminar.

O modelo racista americano favorece a união entre pretos e mestiços que social e politicamente não existem na sociedade americana, pois basta você ter uma única gota de sangue africano para ser considerado ou se considerar negro. No Brasil, o ideal do branqueamento, que faz parte das características do racismo à brasileira, acaba enfraquecendo a união de pretos e mestiços e ambos são vítimas do racismo e deveriam estar juntos. Mas tudo isto está em processo, pois muitos mestiços e mestiças brasileiros(as) estão hoje politicamente assumindo sua negritude, que faz deles vítimas de uma sociedade racista.

IHU On-Line – No Brasil, muitas pessoas questionam por que o assassinato de Floyd causa tanta comoção, enquanto jovens negros e de periferia são mortos quase que diariamente sem gerar a mesma repercussão. Como o senhor observa esses questionamentos?

Kabengele Munanga – A violência policial letal em relação aos negros é, respeitando as proporções, a mesma que no Brasil. Mas, nos  Estados  Unidos, os negros sempre protestaram em todas as cidades e estados onde aconteciam essas violências. Isto teria a ver com a consciência racial muito elevada devido ao modelo racista americano, oficialmente institucionalizado pelas leis segregacionistas que foram abolidas na década de 1960, embora saibamos que a segregação que de fato fundamenta o racismo brasileiro continua a existir nos Estados Unidos.

Violência policial

A violência policial no Brasil mata mais negros que nos Estados Unidos, como comprovado pelas pesquisas do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – Ipea e do Núcleo de Estudos da Violência – NEV da Universidade de São Paulo. A cada 26 minutos um jovem negro é morto pela violência policial em nossas periferias. Tudo isso é sabido pelos responsáveis do país a nível federal, estadual e municipal, mas nenhuma política pública para preservar a vida de muitos jovens negros é construída seriamente, como que para dizer que as vidas negras pouco importam.

Um ou dois anos atrás, um jovem negro foi morto asfixiado por um segurança de um supermercado por ser suspeito de roubar algo, em condições semelhantes às de George Floyd. O que aconteceu em termos de protestos naquela cidade ou no Brasil todo? Nada, comparativamente ao que sempre acontece nos Estados Unidos quando uma pessoa negra é morta pela violência policial. Qual é a explicação? Estaria no nosso modelo de racismo que silencia, esconde, e na grande imprensa, que divulga mais os mesmos fatos que acontecem nos Estados Unidos do que os que acontecem em seu país. É como para dizer: não somos racistas; os racistas são os outros. Um grande jornalista [Ali Kamel] não escreveu um livro intitulado Não somos racistas, que foi muito vendido e até utilizado numa cena de uma novela da Globo? Eu fiquei me perguntando: com que coragem e falta de vergonha os brasileiros se manifestariam contra o assassinato de George Floyd, quando aqui a situação é pior para os negros e nunca se posicionaram contra, por meio de protestos de massa, como os que vimos ultimamente nos Estados Unidos e em alguns países da Europa  e da Ásia?

Surpreendentemente, os brasileiros e as brasileiras perderam a vergonha, tomaram coragem para se solidarizar com os americanos e começar a criticar a sua própria realidade, o que é muito positivo. Poderão, de hoje em diante, entender os protestos de seus compatriotas negros e se solidarizar com eles em todos os momentos de injustiça e negação dos direitos humanos. É como se a massa brasileira estivesse acordando para dizer que o racismo não é um problema do negro, mas, sim, um problema da sociedade, na qual eles têm a obrigação, como cidadãos, de dizer “chega”, independentemente da cor de sua pele. Me parece que começam a entender que a solidariedade constitui uma das palavras-chave da cidadania.

IHU On-Line – Atualmente, muito se fala que o racismo no Brasil é institucionalizado. O senhor concorda? No que consiste esse ‘racismo institucional’ e no que se revela?

Kabengele Munanga – Muito se diz sobre o racismo, mas lamento que muitos não saibam, na realidade, o que é o racismo. Quando vi algumas pessoas dizendo, durante o debate sobre cotas ou políticas afirmativas para o acesso dos estudantes negros e indígenas na universidade pública, que as cotas para negros seriam um racismo ao contrário, me convenci de que muitos falam de racismo sem saber o que é. Ou outra bobagem: que alguns negros praticam racismo contra outros negros. O dia que os negros começarem a acreditar que são superiores aos brancos por um motivo ou outro e que essa superioridade tem a ver com sua pele negra, a gente pode falar em racismo negro. Lamento se isso acontecer na história da humanidade, mas felizmente não estarei vivo para presenciar esse triste momento.

Certo que um negro pode discriminar um branco ou outro negro, mas não o faz porque ele se considera racialmente superior ao branco ou ao negro que ele discrimina. Ele tem outros motivos que o levam a isso, os quais não podemos aprovar. As pessoas falam muito hoje do racismo estrutural brasileiro, mas não se perguntam antes o que é a estrutura e de que estrutura se trata: estrutura social em geral, política, econômica, psíquica, mental? A estrutura de uma sociedade capitalista, socialista, outra?

Racismo institucional

O racismo que nós conhecemos e que remonta à modernidade ocidental é sempre ligado à estrutura de poder político, quer isso seja nos Estados  Unidos, no regime do Apartheid ou no regime nazista. No regime nazista, no Apartheid e no regime do Sul dos Estados Unidos, praticou-se um racismo de Estado, institucionalmente oficializado pelas leis escritas, ou seja, expressas como as de segregação a que as populações brancas e negras deveriam obedecer e respeitar. É neste sentido que se fala de racismo institucional. Mas no caso do Brasil e de muitos países da América dita Latina e da Europa Ocidental, o racismo existe de fato nas instituições, onde os negros não aparecem ou são sub-representados, como nos três poderes. Em muitos cargos de comando e responsabilidade, os negros não se encontram, justamente por causa do racismo que, por muito tempo, lhes fechou as portas da universidade e da educação superior, o que impacta a sua mobilidade social.

Apesar da ausência de leis expressas como em outros modelos de racismo acima citados, o racismo está presente, de fato, nas instituições e na estrutura social e política da sociedade brasileira. Mas o racismo é um fenômeno complexo, cuja leitura não deve ser somente estrutural, pois ele está presente na cultura, através da educação, está presente em algumas crenças religiosas, no inconsciente coletivo, na subjetividade das pessoas. Por isso, na luta contra o racismo, não basta lutar somente para transformar a estrutura do poder que faz com que as estruturas dos países capitalistas manipulem mais as diferenças somáticas entre os explorados, na estratégia de dividir para dominar. Em países que tiveram estruturas socialistas de poder e não exploraram o racismo como os países capitalistas, o racismo se manteve até um certo ponto. Este foi o caso da União  Soviética, onde as agressividades racistas contra judeus não acabaram; é o caso de Cuba, onde os negros não estão na estrutura de poder, apesar da estrutura socialista adotada por aquele país. É por isso que a luta contra o racismo não se reduz apenas à mudança estrutural, ou à instituição de leis antirracistas. A educação é um instrumento importante nesse processo, pouco importa o modelo de estrutura, apesar de que concordo que este também deveria mudar.

IHU On-Line – Qual o papel das instituições, empresas, escolas e mesmo do poder público no combate ao racismo? Como fazer o debate avançar para além das políticas de cotas?

Kabengele Munanga – Se as instituições são racistas e não abrem as portas aos não brancos, como é que eles terão sua mobilidade social e sua afirmação como cidadãos? É por isso que se diz que o racismo institucional é o pior comparativamente ao racismo periférico, que acontece entre pessoas em suas relações cotidianas. Se uma pessoa racista disser: “Eu não gosto de negros, de homossexuais, entre outros”, essa pessoa não vai prejudicar a mobilidade profissional ou social dos negros – aliás, isso se diz com muita frequência. Mas se essa mesma pessoa estiver ocupando um cargo de responsabilidade ou de comando numa empesa, numa instituição, ela vai impedir o acesso dos negros através das políticas de contratações. Até o próprio dono da empresa pode dizer que não quer negros na sua empresa, independentemente dos diplomas ou da capacidade dos negros.

É por isso que as instituições têm que trabalhar com as políticas de  diversidade, para que negros e mulheres possam entrar nelas e ocupar cargos de responsabilidade, de acordo com suas habilidades técnicas ou profissionais. Por que nos meios de comunicação de massa se veem tão poucos jornalistas negros, num país onde são demograficamente mais da metade da população total? Por que num debate sobre o episódio de George Floyd convocou-se primeiramente só jornalistas brancos – até aquele que foi demitido da TV Globo por causa de sua brincadeira racista [William Waack] – e não se pensou em convidar os poucos jornalistas negros que existem no país para darem sua opinião como negros e negras que fazem parte da comunidade vítima das práticas racistas? Essa atitude em si pode ser considerada como um racismo institucional. Parece que os brancos são mais capacitados para falar do negro do que os próprios negros que têm seus pontos de vista a partir de suas experiências de vida como vítimas de racismo. Quando nós falamos, às vezes escutamos que nosso discurso é de vítima, como se a vítima não tivesse a capacidade e o direito de fazer uma narrativa diferente. Por que motivo a vítima faria o discurso do vitimador? Sempre me perguntei isso diante deste tipo de desqualificação do nosso discurso.

IHU On-Line – Como a luta pela igualdade racial vem se transformando no Brasil ao longo dos tempos?

Kabengele Munanga – O movimento negro, com suas diversas organizações, sempre terá grandes desafios como todos os movimentos sociais, sobretudo nos momentos de crise como este que estamos vivendo por causa da pandemia de covid-19 e da conjuntura política que quer rasgar todas as conquistas das gerações anteriores. O desafio é maior por causa da situação política, econômica e social fragilizada. Os negros não estão representados no poder, nem político nem econômico nem financeiro. Ainda são sub-representados nas universidades, apesar das conquistas que tiveram graças às cotas, que permitiram o acesso à universidade nos últimos vinte anos. As políticas de inclusão mal começaram com o governo petista, mas hoje, na atual conjuntura política, elas correm o risco de desaparecer. Claro que hoje temos muitas organizações negras, entre elas as organizações feministas negras, que são muito criativas e têm propostas de lutas muito inovadoras. Mas isso não impede uma reavaliação e uma reflexão sobre novas estratégias de luta numa conjuntura pouco favorável. E isto é certamente um grande desafio para uma luta que não parou e não vai terminar amanhã.

IHU On-Line – Quais os maiores desafios na atualidade dentro e fora do movimento negro?

Kabengele Munanga – A luta pela igualdade racial no Brasil não parou e não vai parar amanhã; ela vem crescendo e tivemos algumas conquistas, entre as quais, as políticas afirmativas que garantem o acesso dos negros à universidade, as leis 10.639/03 e 11.645/08 que tornam obrigatório o ensino da História da África, do negro e dos povos indígenas na escola pública; em algumas universidades já temos até cotas para negros nos programas de pós-graduação; nos concursos públicos estaduais e federais também existem vagas para negros, isto é, pretos e pardos.

No plano político, algumas conquistas foram rasgadas, como a supressão da Secretaria Nacional de Políticas de Promoção da Igualdade Racial – Seppir, e atualmente se corre o risco de ver a Fundação Cultural Palmares totalmente descaracterizada pelo atual presidente, que me parece foi colocado neste cargo com esta finalidade.

IHU On-Line – Como o senhor analisa a atual conjuntura brasileira, em que as lutas das minorias são marginalizadas e as proteções sociais e políticas públicas afirmativas são desmontadas?

Kabengele Munanga – Em primeiro lugar, as populações negras, somadas às indígenas e às mulheres, não são minorias. Pelo contrário, constituem numericamente uma maioria dirigida por uma minoria a serviço do capitalismo e dos interesses pessoais. Não vamos negar que já tivemos um governo de políticos nacionalistas que pensaram nos interesses dessa maioria que você chama de minoria: saúde, educação, habitação, alimentação, emprego, entre outros, que o atual governo quer destruir. Melhor que o próprio povo para defender seus interesses, não existe. Ele está sendo manipulado através das fake news e de algumas religiões populares tendenciosas, mas até quanto tempo vai durar essa manipulação, não poderia dizer.

Certamente, o povo vai acordar, como nos mostra a história da humanidade e das revoluções populares. Adolf Hitler, Mussolini, Salazar e tantos outros fascistas desapareceram e estão surgindo novos, que desaparecerão também. Enquanto isso, as mortes, a fome, a miséria, o genocídio dos jovens, principalmente negros, se multiplicam. Me parece que são surdos ou se fazem de surdos até o dia em que o próprio povo dirá “chega”. Será uma questão de vida ou morte, na qual algumas pessoas poderão sacrificar suas vidas para salvar a vida da maioria. É uma especulação futurista que detesto, mas a história sempre reserva surpresas e essas poderão ser diferentes.

IHU On-Line – Estamos num contexto de pandemia. O senhor acredita em transformações no pós-pandemia? Por quê? E como analisa esse tempo?

Kabengele Munanga – Tem gente que pensa que a pandemia poderia servir de lição para transformar a humanidade e os modelos de sociedades em que estamos vivendo em outros modelos, diria, melhores. Esta  pandemia  não é a primeira na história da humanidade em termos de quantidade de mortes, mas ela é acompanhada de algo novo: a informação globalizada que coloca toda a humanidade em alerta e mobiliza todos os cidadãos do mundo para se cuidarem, para evitarem contaminações, ao mesmo tempo em que afeta a economia e destrói empregos em alguns países onde a elite econômica não tem responsabilidade social e o governo se preocupa mais com os lucros dessa elite e do capital do que com a vida de suas populações.

Quem faria essas mudanças: essa elite sem responsabilidade social ou o próprio povo através de suas lideranças? E que lideranças? Podem acontecer algumas mudanças, como estamos vendo a partir do episódio de George Floyd, em que alguns estados nos Estados Unidos já estão pensando em mudar seus sistemas de segurança pública, ou nada de novo pode acontecer. Detesto futurologia, mas alguns pensadores já estão especulando sobre um mundo melhor no fim desta pandemia. Como disse numa outra entrevista, no plano individual, algumas pessoas certamente vão refletir sobre seus estilos de vida, relações com a família, com a sociedade na qual estão inseridas. Talvez alguns possam sair do seu egoísmo exacerbado para desenvolver relações de solidariedade e até um certo altruísmo. São especulações possíveis, mas eu quero viver para ver o que vai acontecer.

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