Dayse Brilhante, vítima de racismo em Manaus, luta contra impunidade

Por Nicoly Ambrozio, em Amazônia Real

Cinco meses se passaram, mas aquelas frases permanecem vivas na mente de Dayse de Oliveira Brilhante, de 22 anos. “Essa negra tem que morrer”, “essa negra não deveria estar passando por aqui”, “macaca”. Os ataques racistas que a universitária ouviu jamais poderão ser esquecidos; tampouco as agressões físicas que sofreu em 25 de junho dentro do condomínio que mora, na zona centro-sul de Manaus. Um homem branco,  muito maior do que ela, a agarrou pelos braços para que duas mulheres a agredissem. “Essas mulheres socavam a minha cabeça e a minha nuca com força, me chamando de preta suja”, lembra a jovem. 

Era madrugada e Dayse passeava com seu cão Spike no condomínio. A maioria dos moradores estava cumprindo o isolamento social da pandemia do novo coronavírus. Ao passar na frente da casa do coronel Fernando Paiva Pires Junior, ex-comandante do Corpo de Bombeiros Militar do Amazonas, durante uma festa particular de São João, passou a ser agredida verbalmente por duas mulheres. Uma era a mulher de Pires Junior, a sargento bombeiro Marcélia Andrade Oliveira; a irmã dela, a investigadora da Polícia Civil, Nardelle Andrade Neves; e o casal Maurício Rodrigues de Matos Filho – o homem branco que agarrou a jovem – e Rosângela Cunha Mota. Em seguida, vieram as agressões físicas, que foram filmadas pelas câmeras do condomínio. Letícia Andrade de Oliveira Brilhante, mãe da jovem, e o síndico Milton Cândido, também foram agredidos.

Dayse Brilhante denunciou as agressões no 23º Distrito Integrado de Polícia Civil. Um inquérito policial foi aberto para apurar crimes de tentativa de homicídio duplamente qualificado e racismo. Ao relatar o caso ao Ministério Público Estadual, o delegado Henrique Brasil indiciou Dayse e os quatro agressores por crimes de lesão corporal e injúria. Ele também desconsiderou as agressões contra Letícia e Milton. O MP rejeitou o indiciamento da jovem, mas não incluiu o crime de racismo na denúncia, e sim injúria (crime contra honra). O caso está nas mãos da Justiça com um pedido de abertura de uma ação penal. 

A agência Amazônia Real procurou a advogada dos acusados, Adriana Moutinho Magalhães Iannuzzi, para ela falar sobre a denúncia do caso, mas não atendeu à reportagem. O advogado de Dayse, Josemar Berçot classificou a denúncia de “vergonhosa”. Leia no final deste texto as defesas dos advogados.

Estudante do curso de Administração na Faculdade de Estudos Sociais, da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), Dayse de Oliveira Brilhante luta agora por justiça, embora saiba que do outro lado há pessoas poderosas e influentes. Ela entrou em depressão profunda, com crises de pânico, medo e ansiedade após sofrer as agressões e violências por ser negra. E vive com medo, por morar a poucos metros dos agressores. 

Em entrevista exclusiva à Amazônia Real, a jovem relembra dos dolorosos momentos da agressão e revela dificuldade em combater o racismo no Brasil, país que exalta em algumas cidades nesta sexta-feira, 20 de novembro, como Dia Nacional da Consciência Negra, mas que a luta antirracista não é de todos. 

“Pessoas como essas, que possuem influência nos órgãos públicos, estão acostumadas com a impunidade e têm amizades políticas, raramente são punidas pelos crimes que cometem, principalmente o de racismo. Porque o jovem preto de periferia paga até pelo que não fez”, desabafa a jovem. Leia a entrevista a seguir.

Amazônia Real – O que você fazia em casa antes de sair para rua e passear com o seu cachorro na madrugada do dia 25 de Junho?

Dayse Brilhante – Dormindo. Nesse quesito, foi um dia atípico. Acordei bem cedo no dia 24, e passei o dia todo ocupada. Consequentemente, estava cansada já no fim da tarde e fui pra cama por volta das 18 horas. Acordei por volta das uma e meia, duas horas da madrugada do dia 25 com meu cachorro mais velho, Spike, arranhando a porta do quarto e tentando sair. Ele dorme junto comigo. O Spike é um chow chow de 7 anos que foi doado para minha família. Ele foi adestrado por mim desde que chegou na nossa casa. Eu levava ele para passear duas vezes ao dia, uma pela manhã, ao acordar, e outra à noite, antes de dormir. E era assim todos os dias. Eu nunca me preocupei em relação ao horário, pois onde moro tem uma guarita com porteiro e segurança 24 horas. E, como já tinha dormido bastante e não estava mais cansada, resolvi preparar as coisas para um passeio. Sempre levo uma bolsa com uma garrafa d’água, saco plástico para recolher as fezes e uma pochete com meus fones de ouvido e o meu celular. 

Amazônia Real – O que aconteceu quando você estava na rua?

Dayse – Eu estava caminhando normalmente com meu cachorro e com fones nos ouvidos, quando de repente, notei vozes, como que em segundo plano, abafadas pela música. Pausei a música, mas mantive os fones nos ouvidos. Percebi que eram gritos e risadas altas. Até esse momento, não sabia que eram direcionados para mim. Olhei para o lado, vi as bandeirinhas coloridas enfileiradas, chapéus de palha pendurados, e as mulheres usavam vestido de ciranda. Entendi que acontecia ali uma festa de São João. Achei estranho por se tratar de uma festa em plena pandemia. Parei e questionei o motivo de estar sendo filmada, mas não obtive resposta. A resposta que me foi dada foram xingamentos e injúrias de cunho racial. Como era possível distinguir a língua pesada na fala das pessoas, e todos estavam nitidamente embriagados, resolvi dar meia volta e retornar à minha casa.

Amazônia Real – Você conhecia os vizinhos?

Dayse – Não, nem de vista. Mas pelo fato da minha família ser uma das mais antigas moradoras do conjunto, era sabido que quem morava naquela casa era um coronel do Corpo de Bombeiros e sua família, que frequentemente realizava eventos em sua residência. Mas nunca tinha visto, falado com ele, nem tido qualquer tipo de contato. Nem com ele, nem com nenhum de seus familiares e amigos.

Amazônia Real – Houve algum problema antes com esses vizinhos?

Dayse – Não. Nem com esses, nem com nenhum vizinho. Nós vivemos aqui há muitos anos, e sempre vivemos em harmonia. Nunca houve nenhum problema. Sempre respeitamos o espaço dos outros, temos noção de coletividade, respeito ao próximo e ao ambiente.

Amazônia Real – Quem lhe filmou?

Dayse – A esposa do coronel Fernando Paiva Pires Junior, que também é sargento lotada no Comando Geral do Corpo de Bombeiros, Marcélia  Andrade Oliveira. Enquanto a senhora Marcélia me filmava, seus amigos riam. Todos foram identificados e reconhecidos já que eles publicaram online as fotos da noite da festa. 

Amazônia Real – Quem lhe agrediu primeiro?

Dayse – A sargento Marcelia Andrade Oliveira, seguido por sua irmã, a investigadora da Polícia Civil, Nardelle Andrade Neves. 

Amazônia Real – Que palavras essas pessoas disseram contra você?

Dayse – Preta, puta, macaca, negrinha, suja, vagabunda, “nêga” que sempre passa por aqui etc.

Amazônia Real – Qual foi sua reação contra as palavras pelo fato de você ser negra? 

Dayse – No primeiro momento, eu fiquei em choque, e incrédula no que estava ouvindo. Congelada. Imóvel. Assustada. Eu não conseguia acreditar que, em 2020, ainda existissem pessoas racistas, e pessoas que sentem a necessidade de ferir outra pelo simples fato de ela ter a pele preta. Enquanto eles me batiam, eu me sentia impotente, eu não conseguia nem me defender, nem revidar. Só tentava proteger a minha cabeça dos socos, e não focar nos xingamentos e palavras de ódio que eram ditos. Mas ao relembrar, é impossível não sentir um nó na garganta e uma angústia sem fim. Nós não escolhemos a cor de pele que teremos quando nascemos, e ninguém merece ser agredido e humilhado por isso.

Amazônia Real – Naquele momento, vocês sabia que seus vizinhos eram bombeiros e policiais?

Dayse – Não. Eu descobri no momento em que fiz o BO (boletim de ocorrência), quando informei os nomes. E me assustou o fato de todos serem servidores da área de segurança pública, e com um comportamento totalmente antiético.

Amazônia Real – Você teve medo deles?

Dayse – Tive e ainda tenho. Eles moram a menos de 50 metros da minha casa. Eles têm porte de arma, e mesmo depois do que eles fizeram comigo continuam impunes. Eles estão acostumados com a impunidade, por isso eu tenho medo.

Amazônia Real – Em algum momento, sozinha naquele dia, você temeu a morte?

Dayse – Sim, acho que eles não iriam parar. Eles não quiseram me dar uma surra, e sim me matar. Eu gritei por socorro. Pedi para que parassem, eu disse que iria chamar a polícia, e eles continuavam me batendo. Um homem branco careca com o dobro do meu peso e da minha idade me agarrou pelos braços e me imobilizou, enquanto essas duas mulheres socavam a minha cabeça e a minha nuca com força, me chamando de preta suja. Quando eu comecei a gritar mais alto ainda, taparam a minha boca para abafar o som. Apertaram o meu pescoço e tentaram me sufocar. Mesmo depois de eu conseguir me soltar e correr para a guarita para pedir ajuda, eles vieram atrás de mim e continuaram a me agredir, o porteiro pediu pra que eles parassem, e ainda assim me chutavam. Quando o síndico apareceu, eu finalmente consegui correr, mas foi quando um deles empurrou a minha cabeça contra o retrovisor de uma picape Frontier, e meu ouvido começou a sangrar. Fiquei desorientada e perdi a audição por um momento. Foi nessa hora que eu pensei que iam me matar. Depois de quase um mês e meio, eu tinha dores de cabeça todos os dias. Preciso fazer uma tomografia do crânio pedida pelo neurologista e não consigo nenhuma medicação que alivie a dor.

Amazônia Real – Você se sentiu sozinha?

Dayse – Com certeza. Eu gritei. Gritei com todas minhas forças até não poder mais. E várias pessoas escutaram meus gritos, não foram um, dois, ou três. Mas ninguém saiu de casa para me ajudar. Ninguém chamou a polícia quando eu gritei por socorro. Alguns vizinhos me relataram que chegaram a ir para a laje de suas casas ver o que estava acontecendo, mas nada fizeram. Alguns relataram que ouviram os gritos, mas pensaram que era uma “brincadeira”. Alguns disseram até que assistiram o ocorrido, mas que por não saber quem era, preferiram não “se meter”.  Talvez o fato de morarmos todos no mesmo conjunto passe uma ideia de empatia e coletividade que, na realidade, não existe. Quantos pais gostariam de ver a filha passando pelo que eu passei? Quantos vizinhos e vizinhas não têm filhos da minha idade? Não passou na cabeça deles que poderia ser a filha deles? Quantas mulheres, filhas e mães que vivem aqui, não sentem medo de sair de casa e caminhar sozinhas à noite? Quantos homens e mulheres pretos já não gritaram e não foram ouvidos? Quantos não passaram por situações semelhantes? Quantos não se sentem sozinhos? Naquele momento, eu me senti sozinha. Hoje, sei que não estou, porque vi que a luta contra o racismo ainda é muito longa e só está começando.

Amazônia Real – Quando sua mãe surgiu lhe defendendo, como foi sua reação?

Desespero e culpa. Eu nunca quis colocá-la numa situação dessas. Eu nunca quis colocá-la em perigo. Minha mãe é a pessoa mais importante da minha vida. Quando eu saí pra passear com o cachorro naquela noite, nunca pensei que algo assim iria acontecer. Me senti muito culpada por terem agredido ela também. Acho que doeu mais ver essas pessoas batendo nela, do que em mim. 

Amazônia Real – Como foi ver sua mãe também sendo agredida?

Dayse – Ela é a tudo pra mim. Minha base, meu maior exemplo de força e determinação, de luta, de inteligência, de trabalho e de empoderamento feminino. Foi desnecessário, foi covarde, foi brutal. Foi horrível. E ainda é, só de lembrar ver um homem bêbado de mais de 1 metro e 80, o senhor Maurício Matos Filho chutando a minha mãe sem motivo algum, após quebrar o meu celular e bater com uma camiseta na minha cara. E a sua esposa que é mulher e policial civil, Nardelle Andrade Neves, também embriagada, apoiando e ajudando o companheiro nesse ataque feminicida. Foi uma violência gratuita contra a mulher. E o que aconteceu com esse homem? Nada. Ele agrediu duas mulheres e saiu livremente dirigindo alcoolizado. O que aconteceu com todos os agressores? Nada. Andam por aí livremente como se não tivessem cometido um crime de racismo.

Amazônia Real – O síndico interveio quando?

Dayse – Segundo o próprio, sua esposa o acordou após ouvir meus gritos, dizendo que estava acontecendo alguma confusão na rua, que ele deveria ir lá e ver o que era. Quando ele saiu de sua casa, viu meu cachorro Spike latindo em frente à minha casa, e como é era rotina eu andar com o cachorro todos os dias, ele associou que a pessoa que estava sendo agredida era eu. Foi aí que ele chegou.

Amazônia Real – Quando a polícia chegou, você achou que seria defendida?

Dayse – Sim, para mim, é óbvio que a função da polícia é proteger a população. E eu não só esperava que eles fossem me defender, como também prender quem havia feito isso comigo. Ou, no mínimo, levá-los pra delegacia, fazer alguma coisa, qualquer coisa! Mas não foi bem assim. Quando a polícia chegou, e nesse momento, gostaria de agradecer aos moradores do condomínio Acqua, pois foram eles que chamaram a polícia, o senhor coronel Fernando Paiva Pires Junior me chamou de mentirosa em frente aos policiais e tentou me desacreditar, afirmando que eu tinha inventado toda a história. Disse ainda que eu deveria ter vergonha.

Amazônia Real – Por que a polícia foi embora?

Dayse – Quando meus agressores viram a chegada de quatro viaturas, todos eles entraram dentro da residência do senhor Fernando. Inclusive, o senhor Fernando, que, trajava apenas uma calça jeans, e se encontrava descalço e sem camisa, saiu de sua residência vestindo um blazer de linho bege. O policial que atendia a ocorrência foi até ele e ele disse para o tenente se identificar, se apresentar, e prestar continência, pois ele estaria diante de um coronel. Demonstrando total abuso de poder e a típica “carteirada”. Depois de intimidar o policial e me chamar de mentirosa, o senhor coronel Fernando Paiva Pires Júnior, disse ainda que o motivo da sua família e seus convidados me agredirem, teria sido eu invadir a sua residência, ameaçando sua esposa, família e convidados com o meu cachorro, o que é claramente contrariado pelas câmeras de segurança, que me mostram caminhando tranquilamente antes de ser atacada pelas costas pela esposa do coronel. Enfim, a polícia veio até mim e perguntou se por acaso, meu pai estaria em casa, pois se tratava de um coronel, e pouco podiam fazer. E que, portanto, seria melhor um coronel tratar com o outro. E eu disse que não, meu pai não estava, e que eu tinha sido agredida e não meu pai. O que me deu a total certeza de que, se a vítima fosse filha ou filho de qualquer outra pessoa, estaria tudo bem o que foi feito e ficaria por isso mesmo. Mas, não é a primeira vez que a polícia é chamada na casa do  coronel Fernando Paiva Pires Junior. Vários vizinhos relataram que já haviam ligado para a polícia muitas outras vezes para reclamar, principalmente, do volume da música nas festas realizadas na sua casa após certo horário. Mas que nunca dava em nada, pelo fato do mesmo abusar do poder inerente à função que ocupava para intimidar quem vinha atender a ocorrência e mandá-los embora. Esses vizinhos disseram ainda, que na noite em que eu fui agredida, havia diversas pessoas reclamando do som no grupo do condomínio.

Amazônia Real – Seu pai é policial também. Como ele lhe apoiou?

Dayse – Acredito que o maior apoio que ele poderia me dar, seria ficar do meu lado, como ele fez. Ele teve que ficar contra a própria classe e falar contra eles, a polícia. E, nestas instituições, Polícia Militar, Polícia Civil e Corpo de Bombeiros, há um corporativismo muito doentio, que faz com que muitas vezes policiais honestos acabem fechando os olhos e se omitindo para o que colegas de profissão fazem. Meu pai é um policial negro íntegro, ético e honesto. Sim, ainda existem. E ele também acha que essas pessoas mancham a imagem da instituição que ele faz parte. E, ficando do meu lado, ele também está do lado de todos os jovens, pretos e pretas, que sofrem constantemente com o abuso da força policial, com a discriminação racial e com o racismo estrutural na sociedade brasileira.

Amazônia Real – Durante a denúncia do caso, você chegou a sofrer algum tipo de desvalidação por parte das autoridades?

Dayse – Sim. Eu fui instruída pelas autoridades a retirar do boletim de ocorrência dois dos agressores, o coronel Fernando Paiva Pires Junior, que era o anfitrião da festa, em plena pandemia, que assistiu sua esposa e familiares me agredirem sem fazer nada, e o subtenente da PM, Jefferson Rocha Mota, que me segurou enquanto os outros me batiam. Eles me informaram que colocar esses dois agressores enfraqueceria o caso, pois eles “não me bateram”. E somente no momento que eu contratei um advogado e constitui uma representação soube que não deveria tê-lo feito. Além disso, era constante, no momento de relatar o ocorrido, em meio a depoimentos, que as autoridades questionassem a veracidade dos fatos e o que tinham feito comigo. Exemplo: “Mas por que você estava andando na rua essa hora?”, “Mas você tem certeza que eles fizeram isso?”

Amazônia Real – O que você espera do processo judicial contra seus agressores?

Dayse – Eu espero que todos passem o resto de suas vidas na cadeia, porque, ao meu ver, é esse o lugar dos racistas. E que todos sejam também exonerados de suas funções da segurança pública, já que eles fizeram um juramento que não cumprem. Pelo contrário, têm atitudes totalmente incoerentes com a ética exigida pelo cargo. Eu espero que a Justiça seja justa e seja feita. E que a impunidade não prevaleça. Que todos sejamos de fato, iguais, perante a lei. É isso que eu espero do processo judicial. Mas sabemos que no Brasil não é bem assim que funciona. Que as leis não são aplicadas de forma igualitária e que as pessoas como essas, que possuem influência nos órgãos públicos, estão acostumadas com a impunidade e têm amizades políticas, raramente são punidas pelos crimes que cometem, principalmente o de racismo. Porque o jovem preto de periferia paga até pelo que não fez. Essa é a realidade do falho sistema judicial brasileiro. 

Amazônia Real – Qual a sua percepção hoje sobre os acontecimentos daquela noite e as consequências que tiveram na sua vida?

Dayse – Muitos me disseram para esquecer e deixar para lá, não me expor, não denunciar. Mas acho que só quem já passou por uma situação assim, sabe como é. Hoje, eu me considero uma sobrevivente. Muitos dos que passaram por isso não tiveram sua história contada, e talvez sequer tenham tido a chance de conta-la. Como eu posso esquecer? Se a cada 23 minutos um jovem negro morre no Brasil? Como eu posso deixar pra lá? Se a cada 4 minutos uma mulher é agredida no Brasil? Uma é morta a cada 8 horas? Como eu posso descansar a cabeça no travesseiro à noite? Imaginando que ontem fui eu e que amanhã vai ser outra? Pessoas estão morrendo vítimas da intolerância racial, do feminicídio, da homofobia, da violência doméstica. Chega. A luta deles também é a minha, e unidos somos mais fortes. Eu quero que o mundo seja um lugar melhor para que as próximas gerações  não vivam com medo. Que todos possam ser quem são, sem medo de apanhar na rua por ser diferente. As consequências que esses acontecimentos geraram na minha vida foram inimagináveis. Eu me considero hoje, uma pessoa mais forte. Eu senti na pele o racismo. E nessa jornada de fazer uma denúncia de racismo no Brasil, eu conheci também muitas pessoas boas, que são resistência, pessoas que lutam pelos direitos das outras e das minorias. Pessoas que abraçaram a minha causa como a deles. Infelizmente, a justiça no Brasil é lenta e quase sempre falha e é só por isso que esses criminosos estão soltos e livres como se nada tivesse acontecido. Se os crimes fossem punidos com o rigor da lei, eles não estariam tão confiantes na impunidade.

Amazônia Real – Você comentou comigo que tem ressignificado sua identidade como mulher preta. Como tem sido esse processo?

Dayse – Incrível. Como você mesma disse: é um processo. E é lindo de se viver. Logo após a agressão, eu entrei em uma depressão profunda, aliada a muitas crises de pânico, medo e ansiedade. E eu encontrei em livros, e nas mulheres incríveis que estão por trás deles, a ajuda que eu precisava e a cura para o que eu estava sentindo. Alguns desses livros foram da autora brasileira Djamila Ribeiro, como o “Pequeno Manual Antirracista”, “Lugar de Fala” e “Quem tem medo do feminismo negro?”. Esses livros foram essenciais no processo de amadurecimento da minha identidade como mulher preta. E também fundamentais para entender conceitos como a negritude, privilégios entre outros conceitos fundamentais para se entender o racismo. Outros dois livros que me ajudaram muito a compreender toda a dinâmica do racismo no mundo, mas também a importância da luta antirracista, da luta feminista e do enaltecimento do papel da mulher negra na sociedade foram “Mulheres, Raça e Classe”, de Angela Davis, e “O feminismo é para todo mundo”, de Bell Hooks.

Amazônia Real – Desde o assassinato de George Floyd por um policial de Mineápolis, uma onda de protestos se espalhou pelo mundo ecoando a frase “Black Lives Matter”: Vidas Negras Importam. No Amazonas, o movimento negro lhe apoiou? 

Dayse – Sim, a União de Negros pela Igualdade, Unegro, e outros representantes do movimento negro me procuraram oferecendo apoio. A violência policial contra a comunidade negra não é algo novo. Nem nos EUA, nem no Brasil. A discriminação racial é tão escancarada que é só você observar como a cor da pele define quem é bandido e quem não é. Dificilmente vão parar uma BMW com um homem branco dentro, mas tem 99% de chances de pararem um carro ou uma moto com um motorista negro. Acredito que a onda Floyd foi um fenômeno necessário, em escala global, que tomou proporções inimagináveis, repercutindo inclusive aqui no Brasil. Mas é uma pena que os brasileiros só tenham se mobilizado quando algo assim aconteceu com alguém lá em Minneapolis, nos EUA, e se tornou um fenômeno mundial. Quando, na realidade, acontece todos os dias, e nós sabemos. Às vezes, acontece no seu próprio bairro, com um vizinho, ou com um vendedor ambulante. Acontece numa festa, com um amigo. Pode ser que aconteça na empresa que você trabalha, com uma colega, ou até mesmo na família. Mas não vejo ninguém indo para as ruas se manifestar contra o racismo, contra a violência policial, contra o assédio, contra o estupro, contra a homofobia. Acredito que a morte de George tenha sido o estopim de algo grande, que vai gerar uma ruptura, uma revolução, na qual os pretos serão os protagonistas. Mas não adianta lotar a (Avenida) Djalma Batista para protestar contra a violência policial e contra o racismo e fechar os olhos para o que aconteceu comigo, aqui no Parque 10, em Manaus.

Amazônia Real – Como você avalia essa apoio? 

Dayse – Avalio de forma positiva. Acho que é muito bom saber que não estamos sozinhos e existem lideranças que lutam pela causa já há algum tempo. 

Amazônia Real – Alguma organização brasileira lhe procurou? 

Dayse – Não.

Amazônia Real – Depois de tudo que você enfrentou, você sentiu sua voz ecoar?

Dayse – Eu senti que de nada valeram meus gritos, meus esforços, a exposição, o processo de denúncia. Meus agressores continuam soltos. Impunes. Eles não sentem culpa, remorso ou arrependimento. Eu nunca recebi um pedido de desculpas pelo que fizeram comigo. Pelo contrário, eles estão simplesmente vivendo a vida deles sem se importar com o que sobrou da minha. E eu sou obrigada a conviver com os criminosos morando na mesma rua, a alguns metros de distância. Eles se sentem mais confiantes do que nunca, e até se envolveram em confusão com outros vizinhos, seguros de que são blindados pela Polícia e por políticos. Não só sinto minha voz ecoar, como também a de todos que foram vítimas de racismo e outros crimes de ódio. Enquanto a Justiça não for feita, não haverá paz. Enquanto houver impunidade, essas pessoas vão continuar agindo assim. Enquanto a Justiça não funcionar no Brasil, teremos mais bandidos fora, do que dentro da cadeia. E eles usam arma e distintivo. 

O que dizem os advogados

As quatro pessoas acusadas de racismo por Dayse Brilhante – a sargento bombeiro Marcélia Andrade Oliveira, a irmã dela, a investigadora da Polícia Civil, Nardelle Andrade Neves, e o casal Maurício Rodrigues de Matos e Rosângela Cunha Mota – não se pronunciaram. A advogada deles, Adriana Moutinho Magalhães Iannuzzi, não atendeu a reportagem. Em nota publicada pelo site Amazonas Atual, a advogada acusou a jovem e afirmou: “na verdade, os acusados é quem foram interpelados e agredidos em sua residência pela sra. Dayse de Oliveira Brilhante, que filmava, injuriava e caluniava o coronel Fernando Júnior e sua família, ofendendo gravemente a sua honra e de sua esposa, com fatos caluniosos e difamatórios como: ‘traficante, prostitutas, negra imunda e vagabundas’”, diz trecho da nota.

À agência Amazônia Real, o advogado Josemar Berçot, que atende Dayse Brilhante no processo judicial, disse que foi vergonhosa a conclusão do inquérito da Polícia Civil. “O delegado simplesmente concluiu que foi uma briga generalizada e que a vítima também agrediu e ofendeu os acusados. Os hematomas de Dayse e as imagens das câmeras mostram que a vítima tentou fugir das agressões e a sargento puxando ela o tempo todo. Só batiam nela. A jovem foi brutal e covardemente agredida.  Estarei entrando com uma queixa-crime para reverter essa denúncia para crimes de tentativa de homicídio duplamente qualificado e racismo. A decisão está nas mãos da Justiça. Quero dizer que a sociedade Amazonense não pode se calar. Os agressores são pessoas com influência em nosso Estado, mas confio na completa imparcialidade do poder  judiciário e peço somente que a justiça seja feita”. (Colaborou Kátia Brasil)

A estudante (com o cartaz nas mãos) foi chamada de ”preta, puta, macaca, negrinha, suja, vagabunda” e agredida fisicamente por policiais, que até hoje não foram responsabilizados pelo crime de racismo ( Foto: Nicoly Ambrozio/Amazônia Real)

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