Racismo e ‘lawfare’ nos Estados Unidos

Por Franklin Frederick, em Alai

‘E a primeira coisa que a estrutura de poder dos EUA não quer é que os negros comecem a pensar internacionalmente.’ (Malcolm X – Autobiografia)

‘A cor não é uma realidade humana ou pessoal; é uma realidade política’. (James Baldwin, ‘The Fire Next Time’)

Os EUA, com a cumplicidade das oligarquias locais, usou de ‘lawfare’ para derrubar os governos de Manuel Zelaya em Honduras em 2009; de Fernando Lugo no Uruguai em 2012 e de Dilma Rousseff no Brasil em 2016. O ‘lawfare’ também foi utilizado pela perseguição política contra Christina Kirchner na Argentina, contra Rafael Correa no Equador e contra o Ex-Presidente Lula no Brasil. O ‘lawfare’ tornou-se assim o principal instrumento do Império para impedir o avanço das forças progressistas na América Latina. Antes de sua aplicação internacional, porém, o ‘lawfare’ foi amplamente utilizado pelos EUA na opressão e perseguição política de sua própria população negra em luta por igualdade racial e direitos civis. Deste modo, a origem do ‘lawfare’ está intrinsecamente ligada ao racismo e à manutenção das hierarquias impostas pelo capitalismo.

O escritor afro-americano Charles Chessnutt, no artigo ‘ Os Tribunais e o Negro’, publicado em 1908, já denunciava:

‘A função dos tribunais na organização da sociedade moderna é a de proteger os direitos- de mediar as disputas entre o homem e o homem ou entre o indivíduo e o Estado; e depois, pelo seu mandato, de pôr em marcha o braço do executivo para impedir ou punir um erro ou para fazer valer um direito. Obviamente, se este grande poder não for exercido corretamente, se for influenciado por preconceitos ou interesses de classe, não será feita justiça. (…) Em nenhuma parte da história da nossa jurisprudência, este poder dos tribunais foi exercido com mais força do que na questão dos direitos dos negros, e em nenhuma parte foi mais influenciado por preconceitos e interesses de classe’.

Com a libertação dos escravos ao fim da Guerra Civil nos EUA, a oligarquia derrotada dos estados do sul – a Confederação – rapidamente se organizou para impedir que através do voto os afro-americanos pudessem desafiar as hierarquias de poder, utilizando, por um lado, os diversos trinunais e a Suprema Corte – como denunciou Chessnutt na citação acima – em um ‘lawfare’ que impedisse qualquer avanço na conquista de direitos e igualdade pelos afro-americanos. Por outro lado, as oligarquias também utilizaram amplamente o terror para manter os afro-americanos em permanente opressão e longe das urnas. O paralelo com a atuação dos EUA na América Latina não poderia ser mais exato: aos linchamentos e à Ku Klux Klan correspondem os diversos esquadrões da morte dos regimes apoiados pelo Império: Somoza na Nicarágua, Pinochet no Chile, Stroessner no Paraguai e as ditaduras militares assassinas na Argentina e no Brasil, entre outros. Nos sul dos EUA ou na América Latina o objetivo é o mesmo: impedir os avanços sociais e qualquer mudança na hierarquia de poder que desafie o sistema capitalista. A estreita ligação entre o racismo e a exploração capitalista era um fato reconhecido nos EUA já no século XIX. Frederick Douglass, nascido escravo por volta de 1818, autor autodidata que fugiu da escravidão e tornou-se talvez o mais conhecido norte-americano de seu tempo, era um profundo analista da sociedade do seu tempo e, sem ter conhecido Marx, escreveu:

‘Os donos de escravos, com uma astúcia própria, ao encorajar a inimizade entre os pobres, colocando o homem branco contra os negros, conseguem tornar o referido homem branco quase tão escravo quanto o próprio escravo negro. A diferença entre o escravo branco e o escravo negro é a seguinte: o último pertence a UM escravocrata e o primeiro pertence a TODOS os escravocratas, coletivamente. Tiram do escravo branco indiretamente aquilo que tiram diretamente e sem cerimonia do escravo negro. Ambos são saqueados e pelos mesmos saqueadores. O escravo negro é roubado, pelo seu senhor, de todos os seus ganhos além do que é necessário para a sua sobrevivência física; e o homem branco é roubado pelo sistema escravocrata dos justos resultados do seu trabalho, porque é lançado em competição com uma classe de trabalhadores que trabalham sem salário.’

Dando prosseguimento, no século XX, a esta análise de Frederick Douglass, o intelectual afro-americado W.E.B. Du Bois escreveu em ‘Black Reconstruction’:

‘O trabalho negro tornou-se a pedra angular não só da estrutura social do Sul (dos EUA), mas também da manufatura e comércio do Norte (dos EUA), do sistema de fábricas inglês, do comércio europeu, da compra e venda em escala mundial; novas cidades foram construídas com base nos resultados do trabalho negro e um novo problema, envolvendo todo o trabalho, branco e negro, apareceu tanto na Europa como na América.(…) De facto, a situação da classe trabalhadora branca em todo o mundo é hoje diretamente ligada à escravatura negra na América, na qual se fundou o comércio e a indústria modernos, que persistiram em ameaçar a mão-de-obra livre até ser parcialmente derrubada em 1863. A casta de cor resultante, fundada e retida pelo capitalismo, foi adotada (…) pelos trabalhadores brancos, e resultou na subordinação do trabalho dos negros aos lucros dos brancos em todo o mundo.’

O capitalismo não teria se desenvolvido sem a escravidão e por isso a luta contra o racismo é fundamentalmente também a luta contra o capitalismo. Não é surpreendente portanto que o ‘lawfare’ esteja intrinsecamente ligado ao racismo.

Foi nos anos 60 do século XX nos EUA que as lutas das forças progressistas encarnadas nos movimentos afro-americanos pela igualdade racial e direitos civis atingiram o seu clímax. Somente nesse período caíram finalmente as principais barreiras impostas pelo ‘lawfare’ ao avanço dos direitos civis dos afro-americanos, não sem muita luta e muito sangue derramados. Talvez nenhum outro grupo tenha sido mais atacado pela dupla vertente do poder hierárquico da ordem capitalista – ‘lawfare’ e terror violento – do que o partido ‘Pantera Negra’ – Black Panther Party. E através da história do Pantera Negra pode-se compreender muito melhor a história recente da América Latina e sua relação com o Império.

A mais completa história do Pantera Negra é possivelmente o livro ‘Black Against Empire – The History and Politics of the Black Panther Party’ (‘Negros Contra o Império – A História e a Política do Partido Pantera Negra’ numa tradução literal.) dos autores Joshua Bloom e Waldo E. Martin, Jr. Neste estudo os autores escreveram:

“Os Panteras viam as comunidades negras nos Estados Unidos como uma colônia e a polícia como um exército de ocupação. Num ensaio fundador de 1967, Newton (um dos fundadores do Black Panther) escreveu,'(…) ‘Há uma grande semelhança entre o exército de ocupação no Sudeste Asiático e a ocupação das nossas comunidades pela polícia racista’.”

“(…) em 1970, o Partido tinha aberto escritórios em sessenta e oito cidades, de Wisconsin-Salem a Omaha e Seattle. O Partido Pantera Negra tinha-se tornado o centro de um movimento revolucionário nos Estados Unidos. (…) O diretor do FBI, J. Edgar Hoover, declarou: ‘O partido Pantera Negra representa a maior ameaça à segurança interna do país’.(…) O governo federal e as forças policiais locais de toda a nação responderam aos Panteras com uma campanha sem paralelo de repressão e vilipêndio. Eles alimentaram a imprensa com histórias difamatórias. Colocaram escutas telefónicas nos escritórios dos Panteras em todo o país. Contrataram dezenas de informantes para se infiltrar nos capítulos dos Panteras.(…) Ao atacar os Panteras Negras como inimigos do estado, os agentes federais procuraram reprimir não só o Partido como organização, mas a possibilidade política que este representava’.

Sabe-se hoje muito mais sobre o papel do FBI na campanha contra o Pantera Negra e contra o movimento pelos direitos civis em geral. O livro de Nelson Blackstock ‘COINTELPRO – The FBI’s Secret War on Political Freedom’ – (COINTELPRO é a sigla em inglês para Programa de Contra – Inteligência – e o título deste livro em traduçáo livre seria Cointelpro – A luta secreta do FBI contra as liberdades políticas) – é uma excelente fonte de informações sobre este tema.

Nesta obra o autor afirma:

‘Uma das coisas que transparecem claramente nos documentos do Cointelpro é que o FBI reservou um ódio especial ao movimento de direitos civis dos negros.’

Noam Chomsky, que escreveu a introdução ao livro, explica que a função do FBI era de:

‘Bloquear a atividade política legal que se afaste da ortodoxia, confundir a oposição à política estatal, minar o movimento de direitos civis.’

Desta forma, ainda nas palavras de Chomsky, era previsível que ‘os programas de ruptura mais sérios do FBI foram os dirigidos contra os Nacionalistas Negros. (…) Talvez a história mais chocante diga respeito ao assassinato de Fred Hampton e Mark Clark pela polícia de Chicago, dirigido pelo escritório do procurador do estado em dezembro de 1969, em uma batida policial antes do amanhecer em um apartamento de Chicago. Hampton, um dos líderes mais promissores do partido Pantera Negra – particularmente perigoso por causa de sua oposição a atos ou a retórica violentos e seu sucesso na organização comunitária – foi morto na cama. (…) há agora provas substanciais do envolvimento direto do FBI neste assassinato político ao estilo da gestapo.’

Não é uma coincidência que a operação Lava Jato e o Promotor Deltan Dallagnol no Brasil tenha se aliado justamente ao FBI em seus esforços para criminalizar o ex-Presidente Lula e o PT. As campanha de difamação e criminalização contra o partido Pantera Negra e contra o PT têm muito em comum.

Um dos principais programas do Pantera Negra era a distribuição de alimentos às comunidades pobres afro-americanas, principalmente às crianças. O partido também distribuía roupas e organizava cuidados médicos. Alguns dos centros onde o Partido distribuía café da manhã para as crianças sofreram ataques com bombas, tamanha a violência da reação da hierarquia de poder branca e capitalista ao desafio colocado pelos Panteras. Alguns líderes do partido foram assassinados, outros colocados na prisão. Como mencionado, a repressão ao Pantera Negra na dupla vertente ‘lawfare’ e terror violento foi sem precedentes mas não sem paralelos: a repressão do Império aos movimentos sociais e partidos políticos de esquerda na América Latina é semelhante e motivada pelas mesmas razões. A frase fundamental na citação acima expõe com toda a clareza o principal objetivo do Império e de seus cúmplices na América Latina: ‘Ao atacar os Panteras Negras – ou Lula, o PT, Evo Morales, Rafael Correa, Christina Kirchner, Hugo Chávez, Nicolás Maduro – os agentes federais (dos EUA) procuraram reprimir não só o Partido como organização, mas a possibilidade política que este representava.’

Ronald Reagan levou adiante a guerra da hierarquia do poder capitalista contra as forças sociais progressistas. Em um outro estudo importante sobre o racismo estrutural nos EUA e sua relação com as políticas de segurança e repressão – Incarcerating the Crisis ( ‘Aprisionando a crise’ em uma traduçâo literal) – o autor Jordan T. Camp escreveu:

“O triunfo do Reaganismo marcou a consolidação de um regime racial e de segurança, um regime neoliberal que tomou forma com as operações durante a Guerra Fria contra o movimento de direitos civis. (Reagan) enviou uma mensagem aos brancos de que seus problemas econômicos tinham sido causados por pessoas de cor que ganharam acesso ao salário social durante o movimento de direitos civis. (…) Estas narrativas neoliberais definiram o comportamento dos desempregados e os programas sociais como as principais fontes de insegurança econômica. (…) A estratégia de Reagan foi de redirecionar os recursos para longe dos investimentos no setor público e para um orçamento ampliado para o Estado neoliberal de segurança carcerária. (…) Com a eleição de Reagan, os neoliberais conseguiram capturar o poder do Estado e legitimar seu governo de classe através de apelos à segurança. Em seus dois primeiros anos na Casa Branca, Reagan dobrou o orçamento do FBI e aumentou o orçamento do Departamento Federal de Prisões – Federal Bureau of Prisons – em 30%. O discurso de segurança foi empregado como a principal justificativa para a reestruturação da forma do Estado. Muito semelhante à legitimação pelo Estado Americano do aumento de despesas para medidas agressivas de contrainsurgência na América Central e no apartheid da África do Sul nos anos 80. (…) No início dos anos 80, os Estados Unidos prenderam 420.000 pessoas em prisões federais e estaduais. Durante a próxima década, o número de prisioneiros aumentaria mais de 64% em todo o país.(…) A população carcerária cresceu de duzentas mil pessoas no final dos anos 60 para mais de 2,4 milhões de pessoas nos anos 2000. Atualmente (2016), um em cada trinta e cinco, ou 6,9 milhões de adultos nos Estados Unidos, está na cadeia ou em liberdade condicional. O aumento dos gastos com encarceramento ocorreu juntamente com a redução dos gastos com educação pública, transporte, assistência médica e emprego no setor público. A expansão das prisões coincidiu com uma mudança na composição racial dos presos, passando da maioria branca para quase 70% de pessoas de cor. Os desempregados, os subempregados e os pobres negros e latinos têm sido desproporcionalmente encarcerados. Com a maior taxa de encarceramento do planeta, os Estados Unidos atualmente encarceram os negros em proporções mais altas do que a África do Sul antes do fim do Apartheid. Todos estes números apontam para uma colisão de raça, classe e poder de Estado carceral sem precedentes históricos, mas certamente não sem explicação histórica.”.

Este redirecionamento do Estado realizado pelo Governo Reagan ainda é o principal objetivo político das oligarquias da América Latina, com forte resistência dos movimentos sociais e partidos de esquerda. As eleições de Hugo Chavez, Lula, Evo Morales, Rafael Correa e Christina Kirchner foram respostas à tentativa do Império de promover o ‘encarceramento’ da América Latina.

O neoliberalismo, que nasceu como uma reação política às ‘concessões’ do capitalismo ao ‘welfare state’, acabou tornando-se também uma reação contra as conquistas civilizatórias dos anos 60 do século XX. Daí o retorno do racismo mais virulento, dos ataques aos direitos obtidos pelas mulheres e pelos homossexuais. A manutenção da hierarquia capitalista em seu estágio neoliberal depende fundalmentalmente da parcela mais reacionária da população. E o neoliberalismo, por outro lado, tenta reproduzir e manter essas forças sociais.

A citação de Malcolm X que utilizei no início deste texto define o programa político fundamental de nosso tempo: a internacionalização da luta contra o racismo é também a construção da luta internacional contra o capitalismo e suas hierarquias de poder.

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