A pesquisadora observa que a retomada da direita no Brasil também se dá pela adesão de candidatos não tidos como religiosos a pautas conservadoras, que ainda vão além das questões dos costumes
Por: João Vitor Santos, em IHU On-Line
Quando se fala em avanço da bancada evangélica nas instâncias do Legislativo e do Executivo, logo se pensa na quantidade de políticos que professam ser evangélicos eleitos. Isso é um dado, mas a pesquisadora Ana Carolina Evangelista alerta que não é o único. “Políticos – religiosos ou não – mobilizaram o religioso e suas formas contemporâneas mais individualizantes e dogmáticas como uma forma de apresentar alternativas que permitissem um retorno da ordem, da previsibilidade, da segurança e da unidade”, aponta, na entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. “Na política brasileira hoje, a religião acaba sendo também um recurso discursivo de pertencimento e recuperação da ordem utilizado pelos conservadores, ou neoconservadores, para fazer avançar suas pautas nos espaços institucionais”, acrescenta.
Mais do que fazer uma análise das eleições deste ano, Ana Carolina observa como se movem os eleitores que aderem a pautas ditas evangélicas ou religiosas em horizontes mais amplos. É assim, por exemplo, que apreende que a ascensão de pautas conservadoras ligadas a certo cristianismo tem relação com políticas desencadeadas ainda nos governos petistas. Mas, agora, o eleitor parece ter percebido que a radicalidade do polo oposto não surte efeito, as promessas não são cumpridas. Assim, acaba optando por uma direita mais moderada e já bem conhecida, que encampa suas demandas. “Não é apenas sobre determinados grupos religiosos buscando impor a sua moral para a totalidade da sociedade via políticas de Estado, mas é, também, sobre as novas facetas do conservadorismo brasileiro usando a religião para se comunicar com o povo, as classes populares, e criar vínculos simbólicos e afetivos com ele”, analisa.
Agora, não se engane no que se refere a pautas religiosas ou evangélicas, pois elas não orbitam apenas em temas relacionados à moral, a comportamento e costumes. Para Ana Carolina, antes, é preciso compreender que o crescimento dos evangélicos no Brasil se dá, especialmente, nas periferias. “É um segmento religioso que cresce em todos os estratos sociais, mas está predominantemente na base da pirâmide social, em áreas urbanas e periféricas onde a população vive cotidianamente a ausência do Estado. Estamos falando também de uma população em sua maioria de baixa renda, negra e feminina”, exemplifica. Logo, pautas como segurança pública e renda passam a estar no radar. “O Brasil que chegava às urnas em 2018 e agora em 2020 é um dos países com os maiores índices de homicídios no mundo, com o maior índice de desemprego médio da história recente e com o maior índice de descrença nas instituições do país”, destaca.
Não por acaso, as velhas forças da direita conservadora menos radical percebem esse clamor. Logo, vai se apresentando como essa ‘força alternativa’, seja com candidatos com fé professa ou não, sendo apenas ‘apoiados pela Igreja’ ou mesmo ‘simpatizantes das causas’. “É um movimento duplo, o ser político que mobiliza o religioso e os líderes religiosos, hoje em sua maioria evangélicos, que usam o espaço da política institucional para impor a moral do seu segmento como agenda geral”, sintetiza Ana Carolina.
Ana Carolina Evangelista é diretora executiva do Instituto de Estudos da Religião – Iser. Possui graduação em Relações Internacionais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC-SP, mestrado em Relações Internacionais pela PUC-SP e mestrado em Gestão e Políticas Públicas pela Fundação Getulio Vargas – FGV-SP. Nos últimos anos, esteve focada em pesquisar sobre a participação dos evangélicos na política. Atualmente, dedica-se a pesquisas sobre candidaturas evangélicas e o comportamento legislativo de grupos religiosos.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Qual é o peso do eleitorado evangélico no cenário político nacional? E como tipificar e corporificar esse grupo que às vezes parece abstrato?
Ana Carolina Evangelista – Primeiro é importante falar sobre o que estamos entendendo por “eleitorado evangélico”. Partimos da premissa de que não existe “o voto evangélico” como um bloco de contornos claros ou algo de fácil identificação e mensuração. Ao mesmo tempo, temos pistas de elementos que têm mobilizado o voto de pessoas que se autodeclaram evangélicas. Que pistas temos?
Analisando a partir do prisma do perfil de candidaturas oriundas desse segmento, num primeiro recorte daquelas com título religioso na urna, são candidaturas que têm crescido aproximadamente 20% a cada pleito municipal e de 5-10% a cada pleito nacional. Esse crescimento se concentra naquelas de identidade evangélica, mas não é um fator que assegure sucesso eleitoral como temos observado nas últimas eleições. Ou seja, a identificação explicitamente religiosa não tem sido um fator de êxito necessariamente. Mas a identidade religiosa tem sim estado presente de maneira mais difusa, e crescente, em discursos e posicionamentos de candidaturas. Uma identidade cristã difusa, que por vezes aciona linguagens e símbolos bíblicos e, por outras, mobiliza moralidades religiosas de forma ampla. Tampouco essa identidade mais difusa é capaz de, por si só, assegurar o sucesso eleitoral, não porque não seja valorizada, mas porque não é o único aspecto orientador do voto.
Já a partir do prisma dos possíveis elementos motivadores desse eleitorado, vimos em mapeamentos do Instituto de Estudos da Religião – Iser em 2018, e agora em 2020, que alguns eixos mobilizam mais fortemente essa base: a defesa da moral, defesa da família, pelo controle e pela ordem no campo da segurança pública, permeadas por um forte posicionamento antiesquerda. A esquerda é vista, e frequentemente propagada por lideranças religiosas pentecostais mais midiáticas, como a responsável pelos males pelos quais estamos todos passando. Em especial no campo dos valores. Agora, essas não são pautas, nem formas de reagir a essas pautas, presentes apenas no eleitorado de base religiosa evangélica. Também está presente em eleitores de diferentes matizes conversadoras, com ou sem identificação religiosa.
Crescem os evangélicos, caem os católicos
A partir do prisma do perfil dos evangélicos na sociedade, como sabemos, o último Censo de 2010 apontou para uma ascendente diversificação religiosa no Brasil e um crescimento evangélico continuado. Em 30 anos, o percentual de evangélicos passa de 6,6% na década de 1980 para 22,2%, um aumento de cerca de 16 milhões de pessoas. Pesquisas amostrais recentes indicam que chegaria atualmente a 31%, num recorte da população acima de 16 anos. Ao mesmo tempo, cai significativamente o número de católicos que sempre foram a esmagadora maioria e cresce o número dos “sem religião” e de outras religiões.
Vai se criando praticamente um cinturão evangélico nas periferias urbanas do Brasil. É um segmento religioso que cresce em todos os estratos sociais, mas está predominantemente na base da pirâmide social, em áreas urbanas e periféricas onde a população vive cotidianamente a ausência do Estado. Estamos falando também de uma população em sua maioria de baixa renda, negra e feminina.
E nesse contexto de transição religiosa no Brasil os evangélicos não se destacam apenas pelo seu crescimento, mas também por seu ativismo de fé. Uma pesquisa do Pew Research de 2014 indica que 60% dos evangélicos frequentam templos e oram diariamente, em comparação com apenas 23% dos católicos. Também é um segmento que compartilha mais a sua fé fora dos templos. Estamos falando, portanto, de uma população que cresce e que é mais ativa e pró-ativa em seus hábitos de fé num país até então de maioria católica não praticante.
IHU On-Line – O voto dos evangélicos é uma forma de ‘voto de rebanho’?
Ana Carolina Evangelista – Já não podíamos falar em voto de rebanho antes e entendo que estas eleições em 2020 deixaram isso ainda mais claro. Cada vez que alguma importante liderança religiosa evangélica vem a público declarar o seu voto, em minutos, surgem análises afirmando “pra onde vai agora o voto evangélico”. Isso ganhou ainda mais força quando, de fato, a diferença de votos num único segmento – o evangélico – bateu recordes e foi significativa para definir as eleições presidenciais. Mas isso não significa dizer que quando um pastor orienta, todo o seu rebanho vota.
Primeiro porque a divisão e fragmentação no universo evangélico é enorme, com inúmeras igrejas, denominações, com histórico, práticas e lógicas muito distintas. Ainda pela ótica do vínculo institucional, uma grande parcela dos evangélicos no Brasil são os chamados “sem denominação” – 22% dos que se autodeclararam evangélicos segundo o Censo de 2010. Por outro lado, como os dados já mostraram em 2018, evangélicos votaram nos estados e para presidente a partir de pautas que se relacionavam com a forma pela qual as crises econômicas e de segurança pública afetavam suas vidas, não apenas por orientação religiosa.
O Brasil que chegava às urnas em 2018 e agora em 2020 é um dos países com os maiores índices de homicídios no mundo – na sua imensa maioria jovens entre 15 e 29 anos, negro e morador das periferias urbanas –, com o maior índice de desemprego médio da história recente e com o maior índice de descrença nas instituições do país. Enquanto as instituições políticas são alvo de ampla rejeição, os brasileiros depositam credibilidade na Igreja (61%), nos militares (46%) e nos juízes (42%), segundo dados da FGV/DAPP.
A resposta nas urnas para promessas não cumpridas
Em 2020, a situação não é melhor, mas já se passaram dois anos para essa mesma população perceber que quem disse que resolveria esses problemas só fez com que eles piorassem. De novo, essas pessoas respondem nas urnas. Apenas a partir de um voto religioso ou de “siga o seu líder religioso”? Não. Se fosse assim, Marcelo Crivella ou Celso Russomanno, apoiados pela Igreja Universal do Reino de Deus – IURD, não teriam perdido as eleições, para usarmos apenas exemplos mais emblemáticos em duas capitais.
Ao mesmo tempo, é importante reconhecer dois elementos relacionados ao voto, ou dinâmica eleitoral, nesse segmento: o apelo e a aderência a pautas morais e o peso das grandes corporações evangélicas, especialmente, pentecostais.
Determinadas denominações evangélicas desde os anos 1990 vêm aperfeiçoando a sua forma de se organizar para eleger seus candidatos. Essa organização e essa “orientação de voto” têm sim tido impacto, principalmente em relação às Assembleias de Deus, e suas subdivisões, e à Universal do Reino de Deus. São as denominações que hoje têm mais eleitos filiados a elas no Congresso, nas Assembleias Legislativas estaduais e nas Câmaras municipais das capitais.
IHU On-Line – Como está dividida a representatividade das diversas matizes religiosas do Brasil na esfera política institucional?
Ana Carolina Evangelista – Se olharmos pela lente da atuação de lideranças políticas com identidade religiosa no Congresso Nacional, por exemplo, destacam-se a Frente Parlamentar Evangélica e a Frente Parlamentar Mista Católica Apostólica Romana. Destacam-se por declararem explicitamente sua finalidade religiosa no que chamam de aprimoramento da legislação, ao mesmo tempo com uma atuação programática orientada por pautas conservadoras especialmente no campo dos direitos das mulheres e diversidade de gênero. Já a relação da Frente Parlamentar em Defesa dos Povos Tradicionais de Matriz Africana, com as religiões de matriz africana, se dá num escopo mais amplo ao priorizar sua finalidade, como a valorização da cultura e a garantia de direitos dos povos tradicionais de matriz africana, articulada com uma base de sustentação fora do Congresso.
Mas qualificar e aprofundar a análise sobre a atuação de grupos religiosos na política institucional brasileira tornou-se fundamental. Por um lado, o fortalecimento da extrema direita no Brasil e o surgimento do que muitos autores têm chamado de “bolsonarismo” evidenciam diferentes pontos de conexão entre posicionamentos políticos e crenças religiosas; por outro, o Brasil tornou-se mais plural em termos religiosos, e grupos dessas bases sociais buscam, cada vez mais, representação política.
IHU On-Line – Quais foram os principais movimentos realizados pelos evangélicos nas eleições de 2020? Que relações podemos estabelecer com o cenário das eleições de 2018?
Ana Carolina Evangelista – Em 2018, como já disse anteriormente, identificamos pautas que já vinham ganhando força no ativismo conservador, principalmente de face religiosa, mas não exclusivamente. Ricardo Mariano já apontava em anos anteriores como o perfil evangélico conservador estava mais ativo, barulhento e presente no debate público de forma geral. Como apontamos, Christina Vital e eu, durante entrevistas realizadas com candidatos evangélicos de diferentes partidos tivemos a oportunidade de observar a colagem entre identidade evangélica e a afirmação de uma limpeza moral relativa a esta identidade que lhes gabaritava a portar também o discurso do combate à corrupção. Como se houvesse uma linha de continuidade entre ser evangélico e práticas morais e de correção na conduta pública e privada.
Em 2020, as candidaturas com identidade religiosa evangélica seguiram com perfil majoritariamente conservador reproduzindo variações dessas pautas. Os principais slogans de campanha de uma dessas candidaturas é uma síntese disso: “muito cristã e conservadora, contra o aborto, contra a erotização infantil, defensora da família, a favor do livre mercado”. Vimos, no entanto, mais a presença da ministra Damares colada a essas campanhas do que a do presidente Jair Bolsonaro.
Também identificamos em 2018 e em 2020 que as candidaturas com identidade cristã se apresentam mais em torno de pautas morais conservadoras do que propriamente a referências mais diretas à Bíblia ou a símbolos religiosos numa tentativa de mobilizar mais pessoas.
Notícias falsas
Quem acompanha grupos evangélicos em períodos eleitorais sabe também que a disseminação de notícias falsas, principalmente no que se refere à chamada agenda moral, é tática antiga e vem sistematicamente relacionando ameaças morais a partidos, ativistas ou políticos de esquerda. As lideranças religiosas mais midiáticas encontram um terreno já semeado nesse sentido e investem nessa estratégia nas retas finais de campanhas políticas, seja apoiando umas ou “denunciando” outras. Acontecia antes de 2018, se fortaleceu em 2018 e seguiu firme em 2020 como tática, principalmente nos embates de 2° turno onde as disputas com concorrentes da esquerda partidária eram claras.
Outro elemento que se aprofunda é a articulação de políticos-religiosos evangélicos e católicos conservadores.
Candidaturas progressistas
Um elemento novo dessas eleições são as candidaturas progressistas nesse universo analisado. Uma espécie de aposta e reação a partir da organização de movimentos que lançam candidaturas, especialmente evangélicas, autodenominadas progressistas. Candidaturas que se lançaram em sua maioria ao Legislativo, e poucas ao Executivo, em diferentes partidos do espectro político da centro-esquerda. Mobilizaram claramente sua identidade religiosa sem necessariamente mobilizar as pautas morais e religiosas. O foco das campanhas estava em pautas municipais, de justiça social e garantia de direitos humanos de forma ampla e universal.
IHU On-Line – Qual sua análise quanto ao comportamento dos candidatos assumidamente evangélicos depois de eleitos? E, diante do atual contexto, como projeta os movimentos do eleitos em 2020?
Ana Carolina Evangelista – Os evangélicos são diversos na base da sociedade, na forma de se organizarem, na sua filiação institucional, mas o retrato depois do filtro eleitoral é um pouco mais homogêneo. Estamos falando numa imensa maioria de homens, brancos, filiados a grandes denominações pentecostais cada vez mais alinhados às pautas já mencionadas aqui. Não votam todos em bloco para todas as matérias legislativas, diferentes estudos já mostraram isso, mas têm se alinhado cada vez mais a pautas conservadoras em geral, incluindo economia, papel do Estado, educação, segurança pública, além das tradicionais pautas ativas desses parlamentares no campo dos direitos das mulheres e da população LGBTQI+.
Como identificamos na Plataforma Religião e Poder, as propostas com viés narrativo contrário ao aborto aumentaram nas últimas décadas, passando de 6% nos anos 1990 a 44% na década de 2010. Resultado de uma resposta articulada por setores fundamentalistas da Igreja Católica e ações coordenadas com lideranças religiosas e parlamentares evangélicos.
IHU On-Line – Um dos destaques do pleito de 2020 foi a eleição de grande número de mulheres, negros, indígenas e integrantes da comunidade LGBTQI+. Como interpreta esse crescimento e o que ele significa? De que modo esses grupos se aproximam ou se diferenciam dos eleitores religiosos?
Ana Carolina Evangelista – As demandas por mudanças na política e por maior representação de segmentos que são maioria na sociedade, mas minoria nos espaços institucionais, são claras e têm ganhado cada vez mais peso e visibilidade. Esse crescimento em 2020 reflete uma mobilização social, uma articulação de posicionamentos e um trabalho que vem se fortalecendo e que segue um fluxo de fora, a partir da sociedade civil e de movimentos sociais, para dentro dos partidos.
Quanto a candidaturas com identidade religiosa, nas eleições municipais de 2016 Ari Oro e Erico Tavares já apontaram que, embora a participação feminina nos segmentos evangélicos tenha sido inferior à média nacional, entre os eleitos ela foi superior, 18,54%, contra 13% no quadro mais geral. Nas eleições legislativas nacional e estaduais em 2018, identificamos pelo Iser o mesmo padrão entre as candidaturas evangélicas, uma proporção maior de mulheres eleitas.
O crescimento do protagonismo feminino no meio evangélico não é novo e já vem sendo destacado por muitos pesquisadores, não apenas no meio político, mas também nas igrejas, congregações e, principalmente, no meio cultural e artístico. No recorte de candidaturas, ainda são maioria mulheres com algum grau de parentesco com lideranças políticas ou religiosas já consolidadas.
IHU On-Line – O que das eleições de 2020 pode repercutir ou mesmo adiantar em termos de cenários para 2022?
Ana Carolina Evangelista – A reação a avanços no campo da conquista de direitos não foi o único vetor dessa virada do Brasil à direita, acompanhado pela habilidosa, crescente e orgânica ocupação de espaços estatais por parte de lideranças religiosas. A oferta de respostas e alternativas, por parte de forças da direita brasileira que aprenderam a mobilizar o religioso, aos desafios cotidianos e concretos das pessoas em meio à enorme crise social, econômica, de segurança pública e política brasileira é outro importante vetor.
Nesse contexto, políticos – religiosos ou não – mobilizaram o religioso e suas formas contemporâneas mais individualizantes e dogmáticas como uma forma de apresentar alternativas que permitissem um retorno da ordem, da previsibilidade, da segurança e da unidade. O que a Christina Vital vai chamar de “retórica da perda”. Na política brasileira hoje, a religião acaba sendo também um recurso discursivo de pertencimento e recuperação da ordem utilizado pelos conservadores, ou neoconservadores, para fazer avançar suas pautas nos espaços institucionais. Não é apenas sobre determinados grupos religiosos buscando impor a sua moral para a totalidade da sociedade via políticas de Estado – essa tentativa existe em movimentações ainda circunscritas – mas é, também, sobre as novas facetas do conservadorismo brasileiro usando a religião para se comunicar com o povo, as classes populares, e criar vínculos simbólicos e afetivos com ele. Esta construção torna praticamente impossível de se dissociar moral religiosa, agenda política, demandas sociais e dilemas pessoais.
Ao mesmo tempo, a presença de lideranças religiosas no espaço público e na política tem uma enorme influência em moldar esse cenário e, hoje, as lideranças religiosas com força política e voz pública marcante são as de cunho ultraconservador. É um movimento duplo, o ser político que mobiliza o religioso e os líderes religiosos, hoje em sua maioria evangélicos, que usam o espaço da política institucional para impor a moral do seu segmento como agenda geral.
IHU On-Line – Desde as eleições de 2018, percebem-se movimentos que parecem recusar instituições políticas, especialmente os partidos. Ao mesmo tempo, grupos, como os evangélicos, parecem buscar uma coesão em torno de determinados candidatos. Como compreende essa aparente contradição?
Ana Carolina Evangelista – É importante considerarmos as regras do nosso sistema eleitoral quando estamos falando dessas candidaturas e do êxito das chamadas “candidaturas oficiais” das principais denominações evangélicas. Eu não diria que existe uma coesão do eleitorado em torno de determinadas candidaturas evangélicas, mas sim uma organização por parte de algumas grandes denominações que sabem lidar muito bem com as regras do nosso sistema eleitoral, selecionando candidaturas, analisando distribuição territorial de votos, listas prévias partidárias etc.
Se for preciso, muda-se de partido, como vimos algumas migrações nestas eleições em 2020 quando entrou em vigor a proibição de coligações para as eleições proporcionais. Determinadas igrejas pentecostais aprenderam, já faz tempo, a jogar o jogo do nosso sistema eleitoral.
O Republicanos, ex-PRB, partido não oficial mas ligado à Igreja Universal do Reino de Deus, cresceu significativamente nestas eleições. Mas ainda precisamos analisar melhor para entender esse crescimento. Importa lembrar que este é o partido ao qual se vincularam os filhos do presidente e muitos de seus aliados.
IHU On-Line – Em sua tese de doutorado, o objeto de estudo foi a ‘direita cristã’. Como esse grupo é constituído? Que relações podemos estabelecer com outros grupos cristãos de outros momentos da História do Brasil, como os conservadores da Marcha da Família com Deus?
Ana Carolina Evangelista – Ainda estou no início desse trabalho buscando identificar elementos históricos e contemporâneos que caracterizariam o que possivelmente poderíamos chamar de uma “direita cristã” na política brasileira. Temos alguns elementos da nossa história democrática recente que poderíamos remontar. Além da entrada mais sistemática e organizada de lideranças evangélicas, principalmente pentecostais, na política, a última década do século XX também foi marcada por um crescente engajamento dos integrantes dos movimentos mais tradicionalistas da Igreja Católica, especialmente da Renovação Carismática, na política partidária e disputas eleitorais.
Sempre existiu uma relação ora de competição, ora de cooperação, entre católicos e evangélicos na política. Desde o lançamento do III Programa Nacional de Direitos Humanos – PNDH-3, em 2009, no entanto, inicia-se uma maior coordenação entre católicos e evangélicos no Congresso Nacional pela “defesa da família”. Com foco principal no combate à descriminalização do aborto e ao reconhecimento de direitos da população LGBTQI+. Em 2011, por exemplo, uma parceria com a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB fez com que os parlamentares evangélicos alterassem o nome do Fórum Nacional Evangélico de Ação Social e Política, que passou a se chamar Frente Nacional Cristã de Ação Social e Política.
Como nos relembra Maria das Dores Campos Machado em suas pesquisas, esse tipo de iniciativa teve como objetivo ampliar o poder de embate por parte de católicos e evangélicos frente a movimentos sociais e impedir que a política de reconhecimento de direitos das mulheres do governo federal se afastasse dos chamados “valores cristãos”[1]. Nesse momento, duas figuras hoje muito conhecidas da política brasileira eram as principais responsáveis por tais articulações: Damares Alves, a assessora legislativa da Frente Parlamentar Evangélica – FPE à época, e o então deputado federal Jair Bolsonaro, o parlamentar escolhido pela FPE, com apoio de católicos, para ser seu principal porta-voz nas audiências públicas contra o Plano Nacional de Direitos Humanos.
Nesse contexto, o debate sobre a descriminalização do aborto e a criminalização da homofobia dominou a disputa eleitoral para a presidência em 2010 e a candidata do então governo, Dilma Rousseff, enfrentou acirrada oposição católica e evangélica[2]. Nas eleições nacionais seguintes, essa maior aliança entre parlamentares católicos e evangélicos expandiu-se para outras agendas, como educação e segurança pública, esta última com menos homogeneidade entre os acordos. Num acompanhamento contínuo do Congresso Nacional, também temos observado aproximações entre legisladores e assessores parlamentares dos dois segmentos religiosos com foco na defesa dos valores cristãos no campo da sexualidade e da família.
Virada à direita
O deslocamento do eleitorado brasileiro para a direita já vinha sendo observado, portanto, desde as eleições nacionais de 2014, aprofundou-se nas eleições municipais de 2016, avançando para a extrema direita nas eleições de 2018. Ao mesmo tempo, recentes estudos indicam que a direita cristã é um vetor importante do chamado “novo conservadorismo” no mundo e no Brasil e o crescimento do evangelismo na política tem contribuído para esse processo.
A reação pró-família descrita acima, nos poderes Legislativos e Executivo, vem se aliando a outras pautas relacionadas ao conservadorismo e neoliberalismo. Sexismo, punitivismo, militarismo, anticomunismo passam a convergir nesses espaços institucionais mesmo antes da eleição do presidente Jair Bolsonaro, como apontou Marina Lacerda. No conjunto, essas agendas sintetizariam um “novo” conservadorismo brasileiro. A centralidade que a reação à agenda de igualdade de gênero ganha, e a relação com diferentes dimensões do neoliberalismo, é apontada por estudos recentes como ponto articulador de forças políticas e definidor de contornos desse “novo conservadorismo” de bases religiosas.
Nesse sentido, não se trata de analisar o papel de evangélicos fundamentalistas em contraposição a católicos progressistas, existem nuances, dissidências e disputas em ambos segmentos do cristianismo no Brasil. Mas, ao mesmo tempo, observa-se no Brasil recente um aprofundamento conservador em ambas bases sociais e cúpulas religiosas.
IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?
Ana Carolina Evangelista – Para essas análises, é sempre importante um olhar sobre a história recente da relação entre religião e política no Brasil e não apenas um olhar estanque dos elementos mais emblemáticos do presente. Principalmente a partir de dois ângulos: o da articulação de lideranças religiosas e lideranças políticas conservadoras presentes no Estado brasileiro que cresce e ganha maior operacionalidade; e o do olhar sobre as nuances e mudanças nas últimas décadas da presença evangélica na sociedade e as especificidades de sua influência na política por meio de determinadas lideranças e denominações religiosas.
Notas:
[1] – Machado, Maria das Dores Campos, ‘Religião, Cultura e Política’, Religião & Sociedade, (v.32, n.2, 2012).
[2] – Como apresentado em: Pierucci, Antônio Flávio, ‘Eleição 2010: desmoralização eleitoral do moralismo religioso’, Novos estudos CEBRAP, (No.89, Mar/2011).
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A Plataforma Religião e Poder é repositório acerca do tema