por Luciano Velleda, em Sul21
ŨN SI AG TŨ PẼ KI VẼNH KAJRÃNRÃN FÃ. Esse é o título, em kaingang, da primeira tese de doutorado defendida por um aluno indígena na história da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). O autor do estudo, Bruno Ferreira, de 53 anos, defenderá sua tese nessa sexta-feira (4), na Faculdade de Educação, cujo título traduzido significa “O papel da escola nas comunidades kaingang”.
Atualmente morando em Iraí, na região norte do Estado, Ferreira foi criado na Terra Indígena de Guarita, em Tenente Portela. Na tese de doutorado, ele narra sua trajetória de vida desde suas origens na terra indígena, sua infância e adolescência, e as “maldades” e castigos impostos pela escola por ser kaingang e, na época, não falar português. Eram os anos de 1970 e a escola municipal ficava dentro da terra indígena em que ele nasceu, atendendo também alunos não indígenas filhos de colonos arrendatários que viviam dentro da Guarita. A partir da 5º série, Ferreira estudou em escolas em Tenente Portela e, aos 27 anos, entrou no curso de história na Unijuí.
Ao contrário do que normalmente ocorre com o estudante branco, em que a busca pelo ensino superior está relacionada à um projeto individual de carreira, emprego e renda, os objetivos de Bruno Ferreira em sua trajetória acadêmica sempre foram outros. Para ele, cada passo dado, desde a graduação até agora no doutorado, sempre esteve relacionado à obtenção de conhecimento em prol do desenvolvimento do seu povo.
“Vou para a universidade em busca de formação para um bem coletivo”, explica, contrapondo aos anseios individuais que normalmente prevalecem na motivação dos estudantes brancos. “Em nenhum momento minha ida à universidade está condicionada somente a mim, enquanto indivíduo, o Bruno, ela é para o desenvolvimento do povo kaingang, em primeiro lugar, e dos povos indígenas. É a coletividade do meu povo que necessita de mim para fortalecer a nossa identidade, negada há 500 anos.”
O primeiro doutor indígena da UFRGS defende que seu povo precisa acessar o espaço de conhecimento do ensino superior, ambientes tradicionalmente ocupados pela elite branca brasileira, moldado a partir de uma vertente europeia, eurocêntrica, onde novos conhecimentos encontram resistências para serem aceitos.
Nas últimas décadas, os povos indígenas têm tido uma série de direitos reconhecidos, como o direito à língua e ao processo próprio de aprendizagem, o direito de manter valores e cultura própria, garantidos pela Constituição de 1988 e impulsionado pela Lei de Cotas, em 2012. “Até então, a universidade e a escola sempre negaram esses conhecimentos”, afirma Ferreira.
Ele explica que esse movimento de formação acadêmica está relacionado à construção de políticas públicas de interesse dos povos indígenas, de modo que sua voz seja ouvida em temas como saúde, educação e demarcação de terras, de acordo com a vontade das comunidades indígenas. “O indígena diz como quer a política pública, e não a política pública construída de cima para baixo. Então a ida à universidade tem essa intenção.”
Ferreira destaca que as teses elaboradas por indígenas com títulos de doutor Brasil afora vêm para fortalecer o argumento dos indígenas para realizar essas mudanças. “Essa é a importância de nós, indígenas, estarmos na universidade. Então vamos ter poder de dizer que nosso conhecimento também é reconhecido pela universidade. Nosso trabalho acadêmico fortalece nossa luta.”
Além desse aspecto, o pesquisador kaingang diz que, na pós-graduação, há também a ideia de compartilhar os conhecimentos indígenas oriundos da ancestralidade dos povos, saberes que precisam ser reconhecidos na universidade para, de algum forma, promover a interculturalidade no ambiente acadêmico. “Ao trazer nosso conhecimento, práticas e visão de mundo à universidade, vamos fortalecer a identidade dos povos indígenas e apresentar conhecimentos que também podem servir à sociedade, um outro mundo que a sociedade não indígena não conhece”, explica.
Entre alguns aspectos desse outro mundo, ele destaca a relação do indígena com a natureza, e pondera ser um equívoco o conceito de que os povos indígenas a “preservam”: “Eles são a natureza, eles vivem ela, tem uma relação íntima com a natureza”.
A recepção da academia
Com a experiência de quem percorreu um longo caminho até ser o primeiro indígena a concluir doutorado na UFRGS, Bruno Ferreira conta que o primeiro olhar recebido pelos indígenas na universidade é de negação. E isso que ele entrou na graduação numa época em que não havia o sistema de cotas, seguindo o rito comum da seleção, assim como na pós-graduação.
“A gente é aquela coisa negativa dentro da sala de aula, a gente é vítima de um sistema que criminaliza. Cansei de ouvir na sala de aula da faculdade: ‘Aqui não é lugar de índio’, ‘Tá ocupando o nosso lugar’”, recorda. O efeito, todavia, é contrário. O pesquisador afirma que a discriminação acaba por fortalecer os indígenas. Ferreira tem consciência de que a universidade não mudará sua estrutura, alicerçada sobre bases antigas, porém diz ser possível mudar o pensamento de alguns professores.
“Se começa a trocar conhecimento, mas essa troca não é simples, sempre há o olhar preconceituoso”, analisa. Com o passar do tempo, ele acredita, essa situação tende a mudar na medida em que mais indígenas entrem na graduação e na pós-graduação.
Ao entrar no ensino superior, o pesquisador kaingang diz que os indígenas passam a “quebrar” certas regras da universidade, como as regras da metodologia. Para ele, a metodologia utilizada no ambiente acadêmico branco é muito baseada na análise do objeto de pesquisa e os indígenas rompem com essa tradição ao trazerem outros elementos metodológicos à universidade. Um desses elementos é a oralidade como forma de construção de conhecimento.
“Minha pesquisa parte da ancestralidade indígena, do jeito que os indígenas construíram conhecimento. O título da minha tese pode ser trabalhado de diversas formas, eu uso para dizer quais são os caminhos da escola e também como metodologia. Na minha tese vou falar sobre os caminhos antigos da construção do conhecimento”, explica.
Ferreira reconhece que a proposta não é simples, afinal, ele precisa convencer professores de metodologia que passam a vida dando aula a partir de um mesmo modelo. “Se os indígenas não tivessem esse conhecimento, essa metodologia, não teriam estratégia para sobreviver até os dias de hoje”, acredita. Em sua tese, ele inclusive se utiliza de muitas palavras escritas na língua kaingang, cada uma com amplos significados, para incluí-las no mundo acadêmico e não indígena.
O primeiro doutor indígena da UFRGS pondera que a participação de seu povo na universidade também serve ao propósito de se apresentar à sociedade não indígena, e ainda colocar a serviço dessa sociedade os seus saberes. “Temos muito conhecimento que precisa ser compartilhado. Além de fortalecer nossa identidade, é também dizer que nosso conhecimento pode ser útil à humanidade.”
A universidade que aprende
Maria Aparecida Bergamaschi, professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Educação da UFRGS, é a orientadora de Bruno Ferreira. A docente elogia muito a atuação dele dentro da universidade, uma liderança nacional e um dos primeiros indígenas a entrar na universidade para cursar graduação nos anos de 1990. “O Bruno é um percursor, tem muito compromisso social e traz isso pra dentro da universidade. É muito importante a presença dele na Faculdade de Educação.”
Maria Aparecida atua há 20 anos com a temática indígena, fato que a faz brincar ser “suspeita” para falar do aprendizado que estudantes indígenas proporcionam à universidade e aos docentes. Ela enfatiza que os professores e colegas que entram em contato com alunos e a cultura indígena têm demonstrado cada vez mais interesse.
“A gente precisa buscar conhecimento, perceber que há outra língua, cultura e outra metodologia. Eles trazem muito firme esse conhecimento do seu povo. Todos que fizeram mestrado e fazem doutorado pesquisam temas importantes para a comunidade. Ter um título de mestre e de doutor da UFRGS também dá possibilidade de bancar a discussão com os gestores públicos”, afirma.
A professora destaca que a luta dos indígenas não é fácil, pois há uma força muito grande para manter a escola branca e homogênea. O descrédito, a desvalorização e o racismo institucional e estrutural em relação aos povos indígenas são enormes desafios a serem superados.
Como exemplo, ela diz que normalmente a cultura indígena é relacionada ao exotismo, sem considerar o conhecimento sobre a terra, a natureza, a educação das crianças, da construção e transmissão do conhecimento com metodologias próprias. “Tudo isso reverbera no programa de pós-graduação”, explica Maria Aparecida.
Entre tantos desafios, a evasão dos estudantes indígenas no ensino superior é um deles. Após ter o ingresso facilitado com a Lei de Cotas, manter o estudante até a conclusão do curso é o próximo passo. Maria Aparecida ressalta que o índice de evasão é grande entre todos os grupos, devido à alta exigência das universidades, ainda maior na pós-graduação. A professora da Faculdade de Educação avalia que a UFRGS até tem tido sucesso e titulado muitos estudantes indígenas na graduação. O problema maior, ela avalia, é a demora maior para concluir o curso.
Na pós-graduação a situação é diferente. Maria Aparecida explica que o aluno que entra num mestrado ou doutorado é mais maduro e recebe acompanhamento de perto do orientador. A dificuldade, nesses casos, acaba sendo o fato de morar na cidade, com pouco dinheiro, sem a melhor estrutura. “É uma agenda acadêmica muito puxada, com a obrigação de produzir e publicar, muito desgastante, além do racismo que se manifesta de muitas maneiras.”
A professora destaca que as dificuldades, muitas vezes, estão mais no lado dos docentes, formados num modo acadêmico eurocêntrico e que só sabe lidar com um tipo de conhecimento e de aluno. A orientadora de Bruno Ferreira é taxativa ao afirmar que a universidade precisa aprender a se abrir para outras formas de comunicação e expressão, linguagem, conhecimento e metodologia. “Quem mais ganha com isso, nesse momento, certamente é a universidade.”