Crônica: Outono triste em cárcere. Por Valter Hugo Mãe

Esgotam-se os ansiolíticos nas farmácias. “Vende-se” por toda a cidade. Netuno parece furioso — e envia outra tempestade. Na marginal, um grita: “sou todos os mortos da pandemia”. Tão perto da vacina, o inverno se aproxima — e encurtará futuros

No Outras Palavras

À noite, ouve-se no prédio um choro baixo, recorrente, longo. A respiração das casas-de-banho melhor propaga o som, e consigo entender certo soluço cansado, a voz feminina sem mais ninguém. Cresci neste prédio, ainda assim, sei mal quem são as pessoas, o que podem sentir, como são, não imagino sequer suas profissões e não prefiguro seus problemas. Nunca entrei em um só apartamento vizinho. Em 30 anos, eu nunca passei de alma porta que não fosse a minha. Conheço o nome de algumas mulheres e o de um homem. De resto, conheço as caras e cumprimento com a educação habituada de sempre. Seguem todos para os andares acima como se seguissem todos para uma indefinição comum que os generaliza. De qualquer modo, intriga-me a tristeza de alguém que me parece ao abandono, e junto isso ao disfórico deste outono que piora a passos largos.

Há dias, passava pela marginal um homem de braços estendidos no ar como os fantasmas. Dizia que era os mortos da pandemia. Não apenas um morto, mas os mortos todos, como uma representação simbólica das mais de um milhão e duzentas mil pessoas que sucumbiram no mundo inteiro. Quem passava na marginal ouvia aquela declaração louca e não sorria. Lembro o que comentava uma amiga psicóloga há umas semanas, que esgotou no mercado um calmante muito popular, o Victan, e que os níveis de ansiedade estão altíssimos, é possível que muita gente já vá descontrolada pela casa. Muita gente vai sair descontrolada à rua.

Netuno tem estado furioso. As ondas começaram a levantar assustadoramente. Vazaram os barcos do mar. Desapareceram suas luzes ao fundo e as noites sobem o barulho das marés. Bem digo ao meu cão para se despachar, mas ele funga nas esquinas como se estivesse a ler livros com detalhe. Antes de fazer chichi, o Crisóstomo estuda preocupadamente todos os lugares, todos os dias e levanta a pata com uma precisão importante. Há sempre alguém a espiar o mar, como a medir o perigo. Numa noite, até já chovendo miudinho, estava na meia-laranja um pescador a ver ao longe que me disse: aquilo é uma tromba de água. É gigante. Se vier para terra vai estragar carros e casas. Via-se no débil luar como havia um temporal por sobre as águas. Eu respondi que era melhor fugirmos embora. E ele agarrou-se novamente à amurada e inclinou para o horizonte a ver melhor o tamanho da tempestade e do medo. Quando entrei com o Crisóstomo em casa, abateu-se sobre as Caxinas uma chuva espessa, violenta, a lembrar o que diziam os pescadores no café dos meus pais quando eu era menino: vai chover até navegarem os barcos pelas ruas. Deus vai decidir que o mar inunde tudo até a morte.

Puseram um barco feito de cruzes na marginal, uma escultura de metal que representa os mortos, os náufragos, o medo. As pessoas das Caxinas, habituadas e cheias de temor, toleram a estética fúnebre de um jeito que me surpreende. Está aquele barco fantasmagórico a enferrujar. Chega a abrir buracos, apodrecido pelo salitre, pela umidade de estar tão diante da praia. Alguém ali prende flores, às vezes com escritos e preces, exatamente como fazem aos jazigos e aos monumentos pelos mortos. Ao lado do abrigo onde antes da pandemia os velhos jogavam cartas, o navio morto dos mortos é um pouco do cemitério das Caxinas encalhado na marginal. Acho tétrico. Tenho-lhe medo.

Um vendedor de uma Imobiliária desabafou comigo que em setembro venderam apenas dois imóveis contra 14 do mesmo mês em 2019. Foram embora os compradores estrangeiros, sobram os portugueses amedrontados e prudentes. O mercado vai rebentar mais à frente. Quem tem dinheiro vai esperar. Uma amiga arquiteta que recupera algumas casas para vender avisou: o que tem valor agora não é a casa, porque casas vão haver muitas para vender. O que tem valor é o dinheiro, porque quase ninguém vai ter dinheiro para comprar. Pelas janelas das Caxinas multiplicam-se os anúncios de venda. Em janeiro, lembro bem, era quase impossível encontrar um só apartamento disponível na nossa terra. Os amigos explicam que quem já está desesperado não conta com fugir para a Alemanha ou para França, como de costume. Os desesperados estão a vender tudo quanto possam encurralados pelo inimigo universal.

São duas da manhã. Ouço o choro do costume que a ventilação propaga. Parou agora de chover mas sopra um vento terrível. Caminhar para o inverno parece-me invariavelmente encurtar o futuro. Desta vez, mais ainda. Muito mais. Tão perto de haver vacinas, este será inevitavelmente o fim do mundo para tantas pessoas. Sobem os números. Não dobram os sinos. Já repararam? Este ano há boicote aos sinos para que ninguém se aperceba do que é morrer tanta gente.

‘O Grito’, de Edvard Munch. Recorte

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