Florestas e populações tradicionais seguem sendo ameaçadas com mais esse estímulo à invasão de terras públicas por criminosos e desmatadores
A embalagem está diferente, mas o presente de Natal para invasores de terras públicas oferecido pelo governo Bolsonaro não mudou do ano passado para agora. Neste dezembro de um ano que parece não ter fim, o governo lançou uma portaria que irá terceirizar para os municípios brasileiros o processo de regularização fundiária em terras da União, mais um claro estímulo ao crime e ao desmatamento.
Há um ano, em dezembro de 2019, o governo federal já havia publicado a MP da Grilagem (Medida Provisória 910/2019), que, graças à pressão da sociedade, acabou perdendo prazo para ser votada. Ainda assim, em meio à pandemia do novo coronavírus, os deputados transformaram a matéria no Projeto de Lei 2.633/2020 e, com isso, as florestas e populações tradicionais seguem sendo ameaçadas. Agora, enquanto o PL da Grilagem aguarda tramitação para votação na Câmara dos Deputados, o governo Bolsonaro atua em outra frente para beneficiar grileiros.
A portaria editada pelo Ministério da Agricultura (Mapa) e o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) cria o Programa Titula Brasil, cujo nome mais adequado seria Programa Invade Brasil. Quando o governo facilita a titulação de terras sem verificação e capacidade necessárias para identificar se foram ocupadas ilegalmente, a mensagem que se passa é de que o crime compensa, e grileiros se vêem estimulados a invadir e desmatar mais áreas públicas.
A nova medida, cujo detalhamento será publicado no prazo de 60 dias, deixa muitas dúvidas no ar, especialmente sobre aspectos socioambientais, de direitos de comunidades tradicionais, povos indígenas e quilombolas situados em áreas de disputa e em processo de demarcação. Outro ponto crítico é a falta de transparência na descentralização do processo de titulação para os municípios, onde a pressão política local pode influenciar quem vai receber os títulos, favorecendo interesses particulares e ferindo o interesse público.
“Num cenário desolador de desmatamento e avanço sobre florestas públicas, o governo deveria tomar medidas urgentes para evitar novas invasões. Mas essa portaria passa justamente uma sinalização favorável a quem ocupa essas terras de forma ilegal”, critica Mariana Mota, coordenadora de Políticas Públicas do Greenpeace Brasil.
De acordo com o vice-presidente Hamilton Mourão, os dados do Prodes de 2020 apontam que 30% do desmatamento ocorreram em áreas públicas de florestas, que ainda não foram destinadas para conservação ou uso privado e estão sob a tutela dos governos federal e estaduais. O desmatamento e colocação de gado nessas áreas acontece justamente como tentativa de comprovar que aquela terra está sendo usada, na expectativa de que será regularizada em seguida.
Um estudo recente do Greenpeace revelou indícios de grilagem em florestas públicas no Pará, incluindo grandes áreas desmatadas rapidamente e o uso de ferramentas públicas, como o Cadastro Ambiental Rural (CAR), para dar um ar de legalidade à grilagem.
Por uma regularização fundiária justa
A regularização fundiária é uma questão importante no Brasil, principalmente para pequenas propriedades e comunidades tradicionais e indígenas. No entanto, titulação sem justiça social e ambiental não funciona. Ao defender a facilitação na concessão de títulos, o governo Bolsonaro tenta maquiar a realidade, porque não está preocupado em dar o título de terra para quem realmente tem direito e em prol do interesse coletivo.
Para Mariana Mota, “a mera titulação, desvinculada de critérios claros de justiça social, desarticulada de outras políticas públicas de ordenamento do uso do solo e sem comando e controle ambiental, é ineficaz para a redução do desmatamento e das queimadas, e pode estimular esses crimes”. Ela afirma que, sem uma política planejada e bem conduzida, só resta o ‘ocupa que depois será regularizado’.