Grande Sertão Ameaçado: o monocultivo de eucalipto no norte de Minas Gerais

População tradicional geraizeira prova que há vida entre o cerrado e a caatinga e enfrenta as plantações de monocultura

Caroline Oliveira e Vanessa Nicolav, Brasil de Fato

Durante quase duas horas andando de carro, só se vê eucalipto. Eucalipto até o infinito, porque não se vê princípio e fim, fazendo gente grande parecer pequena. 

As plantações estão ali, em Vale das Cancelas, no Norte de Minas Gerais, desde meados da década de 1970, quando o governo federal utilizou programas de estímulo à monocultura no local, como e Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (Sudene) e a extinta Fundação Rural Mineira de Colonização e Desenvolvimento Agrário (Ruralminas). 

Como dizia João Cabral de Melo Neto, era terra demais que queria ver dividida. Ocorre que a região também é o território de 73 comunidades tradicionais geraizeiras que estão ali há pelos menos 150 anos, entre os municípios de Grão Mogol, Padre Carvalho e Josenópolis.

José Maria Gonçalves, de 54 anos, um dos cinco ainda vivos da matriarca Vicença Maria de Jesus, hoje com 100 anos, afirma que a mãe já “topou briga com todos que se diziam chefe daqui”. 

“Meu filho, quer saber de uma coisa? Pão, litro de refrigerante, vocês não vão me comprar. Eu vou morrer, por meu nariz nesse chão, essa terra aqui vocês não tomam de mim”, dizia Dona Vicença para quem quisesse lhe tirar o chão onde pisa desde que nasceu, na comunidade geraizeira de Buriti Pequeno. 

Gonçalves conta que antes da expansão do eucalipto pela região, a vida era melhor: tinha quati, preá, gambá, tatu, tamanduá, tucano, lobo-guará, seriema, pica-pau-do-campo, veado-mateiro.

“As fruteiras a gente tinha para comer à vontade, e os bichos também. Aí vem essa plantação de eucalipto que não sai nada de dentro dela, porque o próprio eucalipto mata as fruteiras, e a água que foi secando”, relata.

“A piaba que mãe ia ali no rio pegar para a ceia da semana santa, hoje você não acha uma piaba nesse córrego. Os eucalipto secou tudo. Aí daqui a pouco vem aquele correntão esbagaçando, matando perdizes, cotia, o que tinha de bicho no mato foi esbagaçando tudinho.”

Havia vizinhos em tudo quanto é canto. Quando chegava um fim de semana, todos se visitavam, criavam o gado juntos, na solta, um ajudando ao outro. 

“Era tudo solto, aquela convivência tão gostosa. Aí eu pegava o copo e espirrava o leite direto da vaca. Pensa em um leite gostoso. As frutas eram tão gostosas. Agora está meio enxavida” lamenta, José Maria Gonçalves, o filho mais novo de Dona Vicença. 

“A gente melhorava com esse remédio do mato, hoje é só com base da medicina da cidade. Hoje você está tirando um leite e está da cor do capim. O ruim daqui é que não tem liberdade mais, o pessoal foi morrendo ou foi indo para fora”, conta.

Mesmo com as dificuldades, seu maior orgulho é ter nascido e se criado nos Gerais, fazendo crescer a raiz de sua família que se formou ali, entre a caatinga e o cerrado, no norte de Minas. “Nascer e ficar aqui é a melhor coisa que eu já fiz na vida. Eu não gosto da cidade. Para mim é uma benção de Deus, mesmo sendo ferroado pelas empresas, mas a gente está vivendo no lugar da gente”, resume Gonçalves.

Chegada do eucalipto

Desde a década de 1970, por meio de contratos de arrendamentos, foram entregues mais de 500 mil hectares de terras devolutas a empresas, e tantos outros grilados. 

Por outro lado, a população tradicional dos Gerais, os geraizeiros, foram cada vez mais perdendo o direito à terra. 

“Todas essas empresas não respeitam o povo geraizeiro, os mortos, os cemitérios que têm no meio das nossas terras que eles invadiram”, afirma o geraizeiro Adair Pereira de Almeida, cuja história se confunde com a do eucalipto na região.

“Eles falam que a gente é invasor de terra. Nós não somos invasores de terra. Nós não somos invasores de propriedade de ninguém, porque esse é o nosso território”, enfatiza. 

A expansão do monocultivo de eucalipto e pinus expulsou sua família das chapadas, as regiões altas dos Gerais para as grotas, as partes baixas. 

“Meu pai ficou sem as terras de chapada, só ficou com a grota, onde ele soltava os animais dele, mesmo dentro dos eucaliptos. Aí os gados morriam, porque ficou sem espaço, comeu veneno e nisso a gente cresceu em meio aos eucaliptos”, resume. 

Em 2010, quando a mãe de Nenzão veio a falecer, ele e seus irmãos entraram na Justiça pelas terras de sua família. 

“O Newton Cardoso estava vendendo lotes dessas terras e plantando eucalipto no restante. Foi aí que um encarregado dele falou que a gente não sabia com quem estava mexendo”, conta Almeida. 

Sua resposta saiu pronta, já estava ali, na ponta da língua:

— Estou mexendo com um bandido, com um grileiro de terra, com um cara que roubou o estado de Minas inteiro, faliu o estado de Minas, gente da pior qualidade, é com esse cara que nós estamos brigando na Justiça.

“Aí começou a nossa luta”, lembra Almeida. Foi nesse momento que os geraizeiros começaram a ser organizar e se articular com outros movimentos sociais, como o Movimento dos Atingidos Por Barragens (MAB) e a Comissão Pastoral da Terra (CPT).

Entre pelo menos sete empresas de plantio de eucalipto e pinus que atuam na região, está Rio Rancho Agropecuária S/A, que pertence justamente a Newton Cardoso, a quem Almeida se referiu acima.

A empresa faz parte do Grupo Newton Cardoso, que se autointitula “um maiores grupos do Brasil, atuando desde reflorestamento até siderurgia, agropecuária, indústria e serviços”. 

O quadro de sócios do grupo é formado por pai e filho: o diretor Newton Cardoso Júnior, deputado federal pelo MDB, e o presidente Newton Cardoso, que foi governador de Minas Gerais entre 1987 e 1991, vice-governador do estado no governo de Itamar Franco e deputado federal por três mandatos pelo MDB, tendo finalizado o último em 2015.

Rio Rancho Agropecuária S/A

processo de Licenciamento de Operação Corretiva da Rio Rancho foi solicitado pela empresa à Secretaria Estadual de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável de Minas Gerais (Semad) em 2015, somente 15 anos depois de adquirir a unidade da Vale do Rio Doce, em 2000, por meio de leilão. 

Nesse tempo, sem Licenciamento de Operação Corretiva, a Rio Rancho continuou operando sobre a unidade que, desde a década de 70, foi palco de projetos de produção de carvão. 

Segundo o documento, parte do empreendimento está em cima de áreas classificadas como “especial para prioridade de conservação da biodiversidade”. 

Em uma das fiscalizações, também foram observadas situações precárias com relação à gestão de resíduos gerados em três serrarias terceirizadas operando nas dependências do empreendimento. 

Também foram encontradas oito áreas diretamentamente afetadas (ADAs), onde houve avanço das plantações sobre áreas protegidas, como topo de morro e nascentes. Em todas, a Semad solicitou o recuo das plantações, sendo o maior deles de 12,95 hectares, como uma das condicionantes para a manutenção da licença. 

A secretaria também desenhou um cronograma de três anos para a implementação do Programa de Educação Ambiental, que inclui, entre outros, o projeto de Projeto de Capacitação Socioambiental para Recuperação de Nascentes e Construção de Criatório de Peixes.

Conforme o responsável técnico da Rio Rancho, a implementação do programa está paralisada devido à pandemia de covid-19. 

Outras duas condicionantes são a elaboração de um “projeto para avaliar novas formas de manejo e conservação da fauna ameaçada”, bem como o “cumprimento da compensação ambiental”. Segundo os geraizeiros ouvidos pela reportagem, nada foi feito até o momento, 10 meses após sair o Licenciamento de Operação Corretiva, liberada em fevereiro deste ano.

Segundo o parecer técnico da Semad, a Rio Rancho possui 24 mil hectares, espalhados por sete fazendas, entre os municípios de Grão Mogol e Padre Carvalho: Batalha/São Francisco, Campinho, Cancela, Carinhanha, Curral de Varas, Lambedor e Ribeirãozinho. 

Juntando com as propriedades localizadas em Salinas, no entanto, segundo um levantamento da Comissão Pastoral da Terra (CPT), a quantidade de hectares sobe para 71 mil.

Em entrevista ao Brasil de Fato, o representante da Rio Rancho, João Baltazar afirmou que todas as acusações não correspondem à realidade e que parte das condicionantes ainda não foram implementadas devido à pandemia de covid-19. 

Baltazar também defendeu que a empresa mantém o diálogo aberto com as comunidades e afirmou que os moradores que apresentam denúncias contra o empreendimento são “aqueles líderes que estão sempre contra os investimentos mesmo que venha beneficiar o número grande de pessoas”.

Grupo Newton Cardoso

Os donos da Rio Rancho Agropecuária S/A são velhos conhecidos do agronegócio e do Poder Judiciário. Em 2016, entre os nomes citados nos documentos de um dos maiores vazamentos sobre corrupção da história, conhecido como Panama Papers, estão o de Newton Cardoso e Newton Cardoso Júnior, devido à compra um de helicóptero em 2007, por meio de uma empresa offshore nos Estados Unidos.

O vazamento gerou uma investigação no âmbito da Operação Lava-Jato. Em abril de 2018, a Polícia Federal cumpriu um mandado de busca e apreensão na sede da Rio Rancho a partir de uma investigação do Supremo Tribunal Federal (STF) que apura supostos crimes financeiros, como lavagem e ocultação de bens, sob o inquérito 3.069, de 2013, que corre sob sigilo. 

Mais recentemente, o ex-governador, conhecido como “Trator”, e seu filho são alvo de uma ação de improbidade administrativa do Ministério Público Federal (MPF) por suposto emprego de pessoas nomeadas para o serviço público em serviços particulares, ou seja, improbidade administrativa, com enriquecimento ilícito. 

Segundo o órgão, a prática teria gerado um desvio de R$ 2,9 milhões dos cofres públicos, desde 2011. A investigação aponta para cinco funcionários que “sempre exerceram, desde a primeira nomeação pelo então deputado federal Newton Cardoso e com continuidade após a nomeação pelo deputado federal Newton Cardoso Jr., funções domésticas e privadas”.

Mas não foram só os cinco funcionários que foram herdados por Júnior. O patrimônio do pai também está na conta de R$ 2,5 bilhões: além das empresas, 145 fazendas, uma praia na Bahia, uma ilha em Angra dos Reis, dois aviões, um helicóptero e um apartamento em Nova Iorque, como afirmou o próprio pai, em entrevista à Veja, em 2009. Além do patrimônio, o legado inclui a defesa do agronegócio na política. 

O Brasil de Fato entrou em contato com a assessoria do deputado Newton Cardoso Júnior solicitando um posicionamento sobre os fatos narrados. Até a publicação desta reportagem, no entanto, não houve uma resposta.

Norflor Empreendimentos Agrícolas S/A

Outra empresa de monocultivo de eucalipto e pinus que atua em Vale das Cancelas é a Norflor Empreendimentos Agrícolas. Segundo o estudo Recantilados, entre o direito e o rentismo: grilagem judicial e a formação da propriedade privada da terra no norte de Minas, de Sandra Helena Gonçalves Costa, professora do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Bahia, a empresa adquiriu as terras por meio da Bagatelle Imobiliária LTDA, que tem como um dos sócios Newton Cardoso.

De acordo com a Semad, as primeiras parcelas de terra foram compradas ainda em 2008, mas a primeira de cinco licenças só foi concedida em julho de 2018, dez anos depois de adquirir o terreno. Hoje, pertencem à Norflor 33.740,77 hectares espalhados entre os municípios de Grão Mogol, Padre Carvalho e Josenópolis.

O Brasil de Fato entrou em contato com a Norflor Empreendimentos Agrícolas. Em nota, a empresa afirmou que estabelece “diálogo muito próximo com as comunidades”.

“Monitoramos a percepção delas sobre a conduta da empresa por meio de consultas periódicas e pesquisa anual”, diz o texto. 

A reportagem também procurou Forest Stewardship Council (Conselho de Manejo Florestal), que possui um sistema de certificação internacional identificando as empresas que realizam um bom manejo florestal. No caso, a Norflor possui a certificação. Em nota, o conselho afirmou que, até o momento, não há ações definidas, pois as informações disponíveis estão sendo levantadas e averiguadas.

Mapa das empresas de eucalipto Norflor Empreendimentos Agrícolas e Rio Rancho Agropecuária sobre o território geraizeiro / Camila Pavanelli

Consulta livre, prévia e informada violada

Durante o processo de licenciamento da Rio Rancho – entre março de 2015 e fevereiro 2020 – os geraizeiros foram reconhecidos, em 2018, como comunidade tradicional, de acordo com a Lei estadual 21.147, que institui a Política Estadual para o Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais de Minas Gerais

Com o reconhecimento, foi possível dar início ao processo de regularização fundiária, conforme permite a legislação, dos três núcleos de comunidades geraizeiras de Vale das Cancelas: Lamarão, Josenópolis e Tingui, segundo a autodemarcação realizada três anos antes. Até o momento, no entanto, o processo não foi finalizado. 

Ainda em 2018, o território geraizeiro conquistou a Certidão de Autodefinição, emitida pela Comissão Estadual para o Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais de Minas Gerais (Cepct-MG). 

Com isso, assegurou-se aos geraizeiros o direito à consulta livre, prévia e informada acerca de empreendimentos que possam afetar seus bens e direitos, de acordo com a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), ratificada pelo Brasil. 

No entanto, durante o processo de Licenciamento de Operação Corretiva da Rio Rancho Agropecuária S/A, as comunidades geraizeiras não foram consultadas, e nem mesmo audiências públicas foram realizadas, como consta no próprio parecer técnico. 

Quanto à empresa Norflor Empreendimentos Agrícolas, a primeira licença foi dada em 2018, no mesmo ano da Certidão de Autodefinição dos geraizeiros. Nos licenciamentos seguintes, no entanto, não há indicação de que as comunidades geraizeiras foram consultadas nos termos da OIT, segundo os geraizeiros ouvidos pelo Brasil de Fato. A empresa, no entando, afirma que a Semad realizou as consultas, nas quais “não houve qualquer relato sobre irregularidades ou práticas indevidas por parte da Norflor”.

Pelo lado do governo estadual, o geraizeiro Adair Pereira de Almeida afirma que o governo Zema ignorou a lei 21.057 que é uma política de estado e pela qual o governo teria que dar a proteção para os geraizeiros e “não apoiar um projeto de ameaça”.

Almeida afirma que o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e a Semad, órgãos responsáveis pelo licenciamento do projeto “dão a licença sem fazer a consulta livre, prévia e informada”.

“Todos os órgãos ambientais não respeitam a identidade do povo geraizeiro, nos seus direitos constitucionais que têm nas leis, principalmente a lei 21.147 que visa a proteção dos direitos coletivos”, defende Almeida.

Grilagem de terra e grilagem judicial 

A expansão da monocultura já derrubou cerca de 50% da vegetação nativa do Cerrado, bioma que está presente em todas as regiões do Brasil, em 24% do território nacional, mas também o mais ameaçado desde a década de 1970, quando o governo federal estimulou a ocupação de empresas na área. 

Mas não foi só pelo arrendamento feito pelo Estado que o capital chegou nesses espaços. Um dos últimos redutos de terra devolutas, que são do Estado, é alvo fácil para a grilagem de terras e judicial, forma sobre a qual, segundo a geógrafa Sandra Helena Gonçalves Costa, autora da tese ‘Recantilados’, entre o direito e o rentismo: grilagem judicial e a formação da propriedade privada da terra no norte de Minas, as plantações de eucalipto se formaram na região.

A própria Rio Rancho Agropecuária S/A é investigada pelo Ministério Público Federal por grilagem de terras devolutas da União, e em 2017, Newton Cardoso Júnior votou a favor da Medida Provisória 759, conhecida como “MP da Grilagem”, que dava brechas para a legalização de áreas públicas invadidas. 

Conforme explica Costa, essa forma de se apropriar da terra é fundamental para compreender como se formou a estrutura fundiária brasileira. Na formação do país, houve a ocupação oficial: do governo, da Igreja e do Estado, mas também houve a ocupação dos povos originários, que estavam e ainda estão nesses territórios: os remanescentes dos povos originários.

E é aqui que se encontram os geraizeiros, assim como a população quilombola e indígena. Segundo Costa, no entanto, “a legislação fundiária brasileira não abarcou esses povos”.

Ela pontua que a Constituição de 1824 inaugurou dentro do território brasileiro a propriedade privada da terra, e, em 1850, foi autorizado comprar e vender terras no Brasil. “Quem tinha dinheiro podia comprar terras, mas houve uma população nos Gerais que não pôde adquirir terras, em nenhum contexto. Foi cerceado esse direito”, enfatiza.

Costa, que também é mestre em Geografia Humana, afirma que esse processo reflete quem são os autores das legislações, que, por suas posições na sociedade, são os que beneficiam das leis. 

“Houve uma articulação entre os proprietários de terra para se apropriar das terras devolutas, já que não estavam mais livres. Eles, então, criaram estratégias para grilar terras”.

Para Costa, esse é fundamento para entender o Brasil: a elite fundiária brasileira se confunde com o Estado. 

‘“Um bom exemplo é hoje a gente olhar para a bancada ruralista. Tem lá senadores e deputados federais que são a extensão dos oligarcas desde o século 19, e se ramificam pelo Estado, como juízes, desembargadores, prefeitos”, explica.

Neste exemplo, o diretor da Rio Rancho Agropecuária, Newton Cardoso Júnior, que é deputado federal pelo MDB, faz parte da bancada ruralista e da Frente Parlamentar Agropecuária, e é autor do Projeto de Lei 6.411, de 2016, que está em tramitação e prevê a dispensa de licenciamento ambiental para áreas consolidadas em reflorestamento, como a plantação de eucalipto.

Atualmente, segundo Costa, Minas Gerais tem 14 milhões de terras devolutas. Mas estima-se que o Estado conheça somente entre 20% e 30% dessa quantidade, que é a parte registrada no Cadastro Nacional de Imóveis Rurais. “O resto está roubado ou está aí como terra de ninguém.” 

Quanto às terras arrendadas às empresas, nem mesmo os órgãos responsáveis pela ocupação do solo sabem quais são as áreas.  “Sabem de algumas, mas não sabem que área. Praticamente autorizaram as empresas se instalarem e grilarem terras”, afirma Costa.

Para a geógrafa, por essa perspectiva, o Estado brasileiro é latifundiário, sendo impossível separar o processo de grilagem da legalidade. Por isso, o termo grilagem judicial, uma vez que esse modo de apropriar da terra tem espaço também dentro dos mecanismos legais estatais. 

Para a produção de seu doutorado, Costa foi até os registros paroquiais, onde foram cadastrados os hectares e seus respectivos posseiros antes de existir cartório no brasil, e encontrou a ligação entre a Fazenda Ribeirão das Piabanhas e o sobrenome Pacheco, da família de Vicença Maria de Jesus, geraizeira de 100 anos que ainda vive com os dois filhos em Vale das Cancelas, entre eles José Maria Gonçalves. 

Mas os próprios grileiros criavam lastros por cima dos antigos, quando esses existiam. Do terreno que chegou até a Norflor Empreendimentos Agrícolas, por exemplo, três propriedades estão ligadas à Fazenda Ribeirão das Piabanhas, segundo o próprio parecer técnico de licenciamento da Semad.

Promessas ao vento

Segundo Gonçalves, quando as empresas de eucalipto chegaram, as mesmas prometeram trazer escola e mercearias para perto dos geraizeiros, masaté hoje “só se vê destruição”. 

As promessas de progresso que embrulham a expansão do eucalipto desde a década de 1970 nunca se concretizaram. Na mesma linha do filho de Dona Vicença, Sandra Helena Gonçalves Costa afirma que o tão prometido desenvolvimento dos programas do governo federal, como a Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (Sudene), também previsto para o norte de MInas Gerais, apareceu em forma de “miséria, grilagem, esgotamento dos corpos hídricos, desmatamento,  redução da biodiversidade, doenças e contaminação de agrotóxicos”. 

Hoje, as principais fontes de renda das 73 comunidades são os benefícios da Previdência Social, como aposentadoria, auxílio emergencial e Benefício de Prestação Continuada (BPC), e os programas de transferência de renda, como o Bolsa Família. 

Para além disso, os trabalhos são geralmente de baixa remuneração, beirando entre um e dois salários mínimos. Um desses trabalhadores é Lindomar Siqueira Nunes, de 27 anos, que trabalha em um monocultivo de eucalipto plantando as mudas, de segunda-feira a sábado, durante oito horas por dia, por um salário mínimo:  R$ 1.045 por mês. Com os descontos, Nunes acaba ficando em média com R$ 980.

“A gente acaba encarando isso por falta de opção. É o que tem, então a gente tem que encarar a qualquer custo. Mas paga muito pouco, exige muito da gente, mas muito esforço mesmo. Inclusive hoje eu andei uma média de uns 15 quilômetros, à pé, plantando. Eu estou moído. Isso aqui [aponta para a perna] está todo quebrado.”

A maioria dos amigos de Nunes também trabalha nas plantações de eucalipto, no corte e nas serralheiras. Dentro das empresas, não têm para onde crescer.

“Não tem por onde, vai crescer como? Não tem cargo. É ajudante, encarregado e o dono, e vai crescer como? Aí você entra de ajudante e sai como ajudante.” 

Questionado se pensa em sair de Vale das Cancelas para municípios maiores a fim de encontrar empregos, o jovem afirma que “isso” não é para ele. 

“Eu gosto de roça, de estar na roça. Eu nunca saí do norte de Minas e nem saio porque não vale a pena. O lugar da gente é o melhor lugar do mundo”, diz Nunes. O jovem mora bem próximo de seu pai, José Francisco Nunes, de 63 anos, ambos na comunidade geraizeira Boa Vista, próximo às plantações da Norflor Empreendimentos Agrícolas. Ele, que também mora ali desde que nasceu, afirma que mesmo nas plantações não há tantos empregos como anos atrás, porque estão fazendo “o serviço tudo de máquina”. 

Com emprego, qualificação de mão de obra, terra e água em escassez, a vida nos Gerais que costumava ser boa tem se tornado cada vez mais difícil. Mas, sem este pouco que têm, e do qual conseguem produzir muito, a situação pode ficar ainda pior, como defende o geraizeiro Martim Inácio Ferreira, de 48 anos. 

“É daqui que eles querem tirar nós, mas não tem jeito. Se tirar daqui, eu vou viver de quê? Eles querem plantar eucalipto e eucalipto para nós não produz. Eles puxam água. O serviço que era de nós fazer, de cortar, as máquinas tudo faz. A máquina mesmo corta, junta, enche o forno.” 

Há quem diga que o território geraizeiro não é produtivo, e aqueles que o ocupam não são de trabalhar. Mas os geraizeiros Martim, Lindomar, José Francisco, José Maria e Adair têm as mãos ásperas, trabalhadas pela terra geraizeira. Os calos não deixam mentir, muito menos a roça. Em um espaço pequeno, esmagado por todos os lados pelo monocultivo, produzem manga, maracujá, laranja, urucum, amendoim, pimenta, erva doce, porco, galinha, peixe, pequi, mangaba, rufão, jatobá, abóbora, feijão, milho, melancia, abobrinha, maxixe e tudo quando o for possível, tendo água e espaço. Esse é o futuro não distante que todos eles esperançam.

*Esta reportagem especial foi produzida com o apoio da Fian Brasil

Edição: Leandro Melito

Imagem destacada: José Maria Gonçalves conta que antes da expansão do eucalipto pela região, a vida era melhor – Caroline Oliveira

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