História e razões por trás do desmonte da Saúde Mental

Política Nacional de Saúde Mental trouxe um novo olhar ao sofrimento psíquico: em vez de manicômios, autonomia e uma rede humanizada e interdisciplinar de atendimento. Bolsonaro ameaça liquidá-la. Como evitar esse retrocesso?

por Priscilla Vilella dos Santos e Marina Giuntini*, em Outras Palavras

A saúde mental pública sempre foi um campo de tensionamentos e disputas políticas importantes. A tramitação de doze anos no Senado para aprovar o Projeto de Lei de 1989, que veio a se tornar a Lei 10.216/2001, já revela isso. A Política Nacional de Saúde Mental (PNSM) instituída a partir deste marco legal, foi um dos produtos do processo da Reforma Psiquiátrica brasileira, que vinha se dando desde a década de 70, fruto de importantes mobilizações, lutas e movimentos sociais, que são decisivos na arena democrática.

A implementação dessa política permitiu um novo status quo para as pessoas em sofrimento psíquico, incluindo os de uso abusivo de substâncias psicoativas, ou pelo contexto de vulnerabilidade social. Essa política traz como modelo assistencial a atenção psicossocial, pautada no cuidado em liberdade, respeito, dignidade e autonomia das pessoas em sofrimento psíquico. Aposta numa rede de serviços de base comunitária e territorial (como os Centros de Atenção Psicossocial – CAPS – e as Residências Terapêuticas – RT), substitutivos aos hospitais psiquiátricos (manicômios/hospícios), e também investe em processos de trabalho interdisciplinares e articulações intersetoriais, que extrapolam o setor saúde e as redes formais de cuidado.

Diversas outras políticas foram sendo implementadas ao longo dos anos 2000, ampliando ainda mais as estratégias, ações e ferramentas clínicas da saúde mental e constituindo a chamada Rede de Atenção Psicossocial (RAPS).

Embora não tenha avançado no ritmo que o movimento da Reforma Psiquiátrica e da Luta Antimanicomial gostariam, a caminhada foi ininterrupta e os ganhos são inquestionáveis.

Desde 2016, entretanto, tem se observado um “processo acelerado de desmonte dos avanços alcançados pela Reforma”1. Como se não bastasse a Emenda Constitucional 95/2016, uma das primeiras canetadas do então Presidente da República, Michel Temer, que congela por vinte anos os investimentos na Seguridade Social, diversas normativas específicas para o campo da saúde mental, álcool e outras drogas têm sido publicadas desde então. Ou seja, na esteira do golpe jurídico-parlamentar em 2016, se promoveu a reorientação da PNSM, através da publicação de diversas portarias, resoluções, nota técnica e decreto presidencial.

Com o desfinanciamento do Sistema Único de Saúde (SUS), que em 2019 teve uma perda de R$ 20 bilhões, e na contramão dos avanços da Reforma, os efeitos nocivos dessas “novas políticas”, que representam o que há de mais conservador e atrasado no campo, já causam consequências práticas na RAPS, como a estagnação na implantação de serviços territoriais; o incentivo à internação psiquiátrica e às Comunidades Terapêuticas2,3.

Mais recentemente, nas últimas badaladas de 2020, o Ministério da Saúde (MS), por meio da Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde (SEGTS), instituiu um grupo de trabalho para revisão da RAPS, que apresentou a proposta da revisão em reunião organizada pelo Conselho Nacional de Secretários de Saúde (CONASS), no dia 03 de dezembro. A proposta está baseada no documento “Diretrizes para um modelo de atenção integral em saúde mental no Brasil”, elaborado pela Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) em parceria com outras entidades, majoritariamente médico-conservadoras (Associação Brasileira de Medicina, Conselho Federal de Medicina, Federação Nacional de Médicos, Associação Brasileira de Impulsividade e Patologia Dual, e a Sociedade Brasileira de Neuropsicologia).

O documento de 34 páginas, diverge das disposições conceituais e éticas do modelo de atenção psicossocial, concebidas pela Reforma e instituídas pela Lei 10.216, que completará 20 anos em abril de 2021.

Demonstra uma compreensão equivocada sobre a atenção psicossocial ao afirmar que o modelo adota como premissas a “desvalorização do saber psiquiátrico e a redução do papel do psiquiatra” (p.5). A atenção psicossocial propõe processos de trabalho de caráter interdisciplinar e coloca que a integração de diferentes categorias profissionais pode ser efetiva. Isso não significa a desvalorização de saberes e sim, um deslocamento e implicação de todas as categorias profissionais. Como parte do SUS, a saúde mental é fundamentalmente um campo de atuação multiprofissional. E para além da armadilha dos especialismos, deve-se valorizar o saber do próprio sujeito que sofre, de tal forma que ele seja protagonista do seu cuidado.

O documento também desqualifica a RAPS, que sem respaldo em evidências científica, afirma que há uma “desassistência generalizada” (p.5) promovida pela Coordenação Nacional de Saúde Mental (CNSM) do MS que, por anos investiu na desospitalização, mas sem investir nos equipamentos extra-hospitalares. Quanto a isso, é importante mencionar que, até 2015, a CNSM, realizava publicações trimestrais de relatório, com dados do próprio MS. Um dos temas que os relatórios abordavam era a atenção psicossocial estratégica, os CAPS. Na última publicação4, um dos dados mostra exatamente a evolução do investimento federal nos CAPS, ao passo que a proporção dos recursos destinados aos leitos em hospitais psiquiátricos se reduzia. Entre 2006 e 2014, o investimento de recursos havia sido maior aos serviços que compõem a atenção psicossocial, em detrimento ao investimento de recursos em leitos psiquiátricos.

Além disso, também sugere que os CAPS cumpram uma função de reabilitação social, e que as demandas por atendimentos psiquiátricos sejam encaminhados para ambulatórios especializados, que não operam na lógica do território e da integralidade. Outros serviços e programas também são afetados pelo documento: os Consultórios na Rua (CnaR) e as Unidades de Acolhimento (UA). Esses dispositivos de cuidado são essenciais para pessoas em situação de rua e/ou que fazem uso abusivo de álcool e outras drogas. As RT e o Programa de Volta Para Casa (PVC), fundamentai para o processo de desinstitucionalização, também são alteradas na proposta, a qual seria de jogar para a assistência social essas pautas. Sendo que a saúde pública e a assistência social já trabalham, e devem trabalhar, juntas, integrando uma rede de cuidado integral à população.

Em síntese, o governo Bolsonaro, articulado com entidades religiosas e médico-conservadoras, visa desmontar diversos programas e serviços da saúde mental e atenção psicossocial. O plano é um “revogaço” de cerca de 100 normativas do setor, editadas entre 1991 e 2014. A revogação dessas portarias coloca em risco a extinção das equipes e vai na contramão de um dos princípios do SUS, a universalidade do acesso. Esta decisão está prevista para ocorrer no próximo dia 17 de dezembro, em CIT (Comissão Intergestores Tripartite). Cabe mencionar, que será em meio ao recesso do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Congresso Nacional, o que poderia dificultar eventuais resistências. Além do contexto da pandemia de Covid-19, que pode tirar visibilidade do processo.

Diante de tamanho retrocesso, foi criada a Frente Ampliada em Defesa da Saúde Mental, da Reforma Psiquiátrica Brasileira e da Luta Antimanicomial. Uma articulação composta por usuários da RAPS, trabalhadoras(es) da saúde, pesquisadoras(es), docentes, estudantes, familiares, gestores e conselheiros de saúde, de Norte a Sul do país. O objetivo é de combater as propostas do MS e defender uma sociedade mais justa. A organização popular é uma importante ferramenta para barrar mais uma boiada que o governo federal quer passar.

No dia 07 de dezembro, a ABP publicou um posicionamento numa tentativa de recuo, porém apenas reforçou o apoio à “nova política” e ainda responsabilizou a mobilização de estar propagando fake news das suas ideias e propostas.

Para um bom entendedor, meia palavra basta. Não haverá recuo de nossa parte! A luta é política o tempo todo e só pode ocorrer em contexto democrático. Sigamos na luta por uma sociedade sem manicômios!


1 DELGADO, Pedro Gabriel Godinho. Reforma psiquiátrica: estratégias para resistir ao desmonte. Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v. 17, n. 2, 2019. DOI: https://doi.org/10.1590/1981-7746-sol00212.

2 CRUZ, Nelson Falcão; GONÇALVES, Renata Weber; DELGADO, Pedro Gabriel Godinho. Retrocesso da Reforma Psiquiátrica: o desmonte da política nacional de saúde mental brasileira de 2016 a 2019. Trabalho, Educação e Saúde, v. 18, n. 3, 2020. DOI: 10.1590/1981-7746-sol00285.

3 As CTs, embora integrem a RAPS, segundo a Portaria 3.088/11, não deveriam ser consideradas serviços de saúde, visto que não se faz obrigatório que haja profissionais da saúde, além terem ligações diretas com grupos religiosos, principalmente cristãos e evangélicos. Este tipo de dispositivo tem recebido grandes repasses do governo federal, seja por meio do FUNAD (Fundo Nacional Antidroga), do MJSP, ou de Emendas Parlamentares.

4 BRASIL. Ministério da Saúde. Saúde Mental em Dados – 12, ano 10, nº 12. Informativo eletrônico. Brasília: outubro de 2015 (disponível em: www.saude.gov.br e www.saude.gov.br/bvs/saudemental; acesso em 07/12/2020).

*Priscilla Paiva Gê Vilella dos Santos – Psicóloga e sanitarista. Mestranda no PPG em Saúde Pública da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca da Fundação Oswaldo Cruz (ENSP/FIOCRUZ). Membro da Frente Estamira de CAPS.

Marina Bistriche Giuntini – Terapeuta ocupacional e sanitarista. Mestranda no Mestrado Profissional em Atenção Psicossocial do Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IPUB/UFRJ). Trabalhadora de CAPS.

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