Justiça Federal da Bahia decide por mais uma reintegração, desta vez na TI Tupinambá de Olivença, e afronta STF

São 282 famílias impactadas de forma direta, mas toda Terra Indígena será privada de manguezal usado para subsistência e espiritualidade

Por Cimi

A Justiça Federal de Ilhéus (BA) determinou, no início deste mês, a reintegração de posse de uma área denominada Loteamento Canto das Águas. São 30 lotes sobrepostos à aldeia Cajueiro, Terra Indígena Tupinambá de Olivença, e explorados pela Ilhéus Empreendimentos S/A para o mercado imobiliário de luxo e turístico.

De acordo com os Tupinambá, 52,8% do loteamento está inserido em terras tradicionalmente ocupadas. A informação tem como base os estudos técnicos necessários à demarcação, que estão finalizados e aprovados pela Fundação Nacional do Índio (Funai) – aguardam apenas a publicação da portaria declaratória.

Caciques e lideranças Tupinambá divulgaram uma carta onde pedem a suspensão da reintegração de posse, detalharam a ocupação tradicional, que não teve início este ano, mas bem antes, e denunciam os abusos e violações de direitos que baseiam a decisão assinada pela juíza substituta Letícia Daniele Bossonario.

“Nossa ocupação vem desde 2013. A especulação imobiliária vem da área Norte fazendo loteamento na área de mangue. Nosso povo ocupa a parte do litoral, o lado Sul, a da praia, onde os mangues estão preservados. Não é verdade que chegamos aqui em agosto deste ano”, explica o cacique Val Tupinambá.

O mangue é utilizado por todas as aldeias da Terra Indígena, da mata ao litoral, enfatiza cacique Val. No caso específico da reintegração, o impacto é direto ainda sobre 70 famílias Tupinambá da aldeia Cajueiro. Outras 196 famílias da aldeia Acuípe de Baixo e 16 da aldeia Lagoa do Babaço também serão impactadas em caso de reintegração.

A liderança indígena explica que a área sobreposta à Terra Indígena está preservada, utilizada de forma sustentável por marisqueiras e pescadoras, impactando assim a subsistência e a territorialidade do povo, além de rituais específicos, como o da lua cheia. “É uma área de sustento, de manutenção da vida”, diz.

A decisão pelo despejo contraria o Supremo Tribunal Federal (STF), que suspendeu quaisquer ações de reintegração de posse enquanto durar a pandemia. A decisão do ministro Edson Fachin foi proferida no dia 6 de maio como apêndice do processo de Recurso Extraordinário 1.017.365/SC.

São 282 famílias impactadas de forma direta por uma possível reintegração e aldeias de toda Terra Indígena que serão privadas do mangue, que representa subsistência e espiritualidade

“Mais uma vez a gente vê um descumprimento do Judiciário da Bahia. Essa determinação é de suspensão nacional dos processos judiciais que tramitam no judiciário, principalmente ações possessórias, que possam ocasionar reintegrações de posse e retiradas de indígenas de suas terras nesse período de pandemia”, afirma a assessora jurídica e representante judicial da comunidade, Samara Pataxó.

Samara é assessora jurídica da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Espírito Santos e Minas Gerais (Apoinme) e do Movimento Unido dos Povos e Organizações Indígenas da Bahia (Mupoiba).

Esta já é a quinta reintegração de posse deferida pela Justiça Federal da Bahia após a  determinação da Suprema Corte. Além desta contra os Tupinambá, houve três contra os Pataxó (uma na aldeia Novos Guerreiros, TI Ponta Grande, e duas na TI Comexatiba) e uma outra contra os Tuxá de Rodelas.

“A situação do Tupinambá, portanto, não é um caso isolado. Esse ano tivemos outras situações parecidas de reintegrações de posse sendo determinadas contra comunidades indígenas mesmo diante da decisão do ministro Fachin que está em sua plena eficácia e aplicabilidade”, diz Samara.

Ela explica que o grupo interessado nas terras tradicionais Tupinambá são, basicamente, de empresários ligados ao ramo imobiliário que vê nelas amplo potencial turístico, pois estão próximas de uma rodovia federal, praias e Mata Atlântica, e também para moradias de alto padrão com a construção de condomínios de luxo.

“Há fazendeiros e empresas de mineração, como se verifica em outras aldeias da Terra Indígena. Mas cito a Vila Galé (de um grupo português), que queria construir um hotel no território“, lembra Samara. O caso envolveu o presidente da Embratur que pediu o encerramento da demarcação da Terra Indígena Tupinambá para facilitar o estabelecimento do empreendimento.

Funai age contra

Mais uma vez, agora neste caso Tupinambá, a Funai de Ilhéus se posicionou contra os direitos indígenas. A postura se adeque à direção do órgão em Brasília que tenta tornar mais sugestiva a posse dos bens públicos, de usufruto exclusivo dos povos indígenas, por fazendeiros, grileiros, mineradoras, empreendimentos imobiliários.

Em informação técnica juntada ao processo, a Funai de Ilhéus, coordenada pelo ex-delegado da Polícia Federal Josafá Batista Reis, afirmou que a Instrução Normativa nº 9 permite a certificação privada em áreas com procedimentos não finalizados.

O órgão já havia atuado de modo a acomodar interesses privados sobre territórios indígenas no final de agosto deste ano, quando uma reintegração de posse havia sido imposta à aldeia Novos Guerreiros, Terra Indígena Ponta Grande, em Porto Seguro, mas acabou derrotada. Na ocasião, Reis tentou induzir os indígenas a saírem da aldeia como parte de um acordo que nem mesmo os Pataxó fizeram parte.

A advogada Samara Pataxó explica que a primeira medida foi ingressar no processo para fazer a defesa da comunidade indígena. “Hoje, infelizmente, não contamos mais com a defesa da Funai. A Procuradoria (destinada pela AGU para atender judicialmente o órgão) tem se recusado a atuar em determinados processos, sobretudo aqueles em que as terras não estão com os procedimentos finalizados”.

O fato de o território Tupinambá estar sendo invadido é o que coloca os indígenas em perigo de contágio pelo novo coronavírus

O Conselho Indigenista Missionário (Cimi), por sua vez, ingressou com uma Reclamação Constitucional na Suprema Corte. O processo está sob a relatoria do ministro Ricardo Lewandowski.

“Nessa reclamação ao STF argumentamos que uma decisão da Corte foi descumprida por uma juíza de primeiro grau. A decisão do ministro Fachin é obrigatória de ser cumprida pelos juízes de primeiro grau, tribunais regionais, STJ (Superior Tribunal de Justiça). Não se pode ter ou tramitar reintegração de posse durante a pandemia”, argumenta a assessora jurídica do Cimi, Lethicia Reis de Guimarães.

Para Lethicia, o fato de o território Tupinambá estar sendo invadido é o que coloca os indígenas em perigo de contágio pelo novo coronavírus. O caso Vila Galé demonstra o assédio local. Ao passo que a juíza tenta justificar que a área não é de moradia, portanto não haveria risco à comunidade.

A assessora jurídica lembra que a área é de subsistência e de rituais: “se começar um loteamento nessa área, como é a intenção, com empreendimentos imobiliários e turismo, os Tupinambá estarão ainda mais vulneráveis ao novo coronavírus”.

O autor da reintegração de posse, atesta a assessora Lethicia, não comprovou a posse dos lotes reivindicados e não os especificou. “Necessitaria de uma justificativa, de uma dilação probatória que não é possível ser feita em liminar, não era possível de determinar a posse quando a posse é incerta”.

Desde 2008, a área deste litígio é reconhecida como indígena pelo Estado e são várias as decisões favoráveis aos indígenas quanto a isso, sendo a mais recente no STJ.

“Embora a juíza justifique que a “invasão” dos indígenas tenha sido fotografada em agosto de 2020, se trata de uma área reconhecida como Tupinambá desde 2008 pela Funai. Não há moradias porque é uma área de restinga e mangue, uma área de preservação ambiental e os Tupinambá decidiram que não gerarão impactos àquela vegetação nativa”, conclui.

Entraves jurídicos e administrativos

Samara lembra que os Tupinambá colecionam entraves jurídicos e administrativos em relação à conclusão do procedimento demarcatório.

Durante os últimos anos de Dilma Rousseff na Presidência, a Terra Indígena chegou a entrar numa lista daquelas que teriam a Portaria Declaratória publicada em um curto espaço de tempo. No entanto, o ministro da Justiça à época, José Eduardo Cardozo, recuou e a manteve engavetada.

Apesar de haver um parecer da assessoria jurídica do Ministério da Justiça de que não há impedimento para a assinatura da Portaria Declaratória, mesmo assim o processo foi enviado de volta para a Funai.

O retorno ao órgão indigenista foi um despacho do então ministro Sérgio Moro, ainda no primeiro ano do governo Bolsonaro. Moro não deu nenhuma justificativa para a retirada do procedimento do MJ. O fez, possivelmente, atendendo à ordem de alguém porque nem mesmo a Funai o interessava como subordinada à sua pasta.

“Então, no âmbito judicial, percebemos que os grupos que querem se apossar do território Tupinambá usam este argumento da demarcação não concluída para justificar pedidos de despejos e invasões”, diz a assessora jurídica Samara Pataxó

“No caso da Terra Indígena Tupinambá, houve o regresso do procedimento administrativo do Ministério da Justiça para a Funai. Se falou que foi para adequá-lo à Portaria 001/2017, hoje suspensa pelo ministro Edson Fachin, mas não houve essa explicação oficial. Aliás, não houve explicação alguma”, explica Samara.

A Portaria 001 foi publicada pela Advocacia-Geral da União (AGU) vinculando a tese restritiva do marco temporal a todo ato administrativo do Poder Executivo de demarcação de terras indígenas. Esta portaria está suspensa, por determinação do ministro Fachin, até o julgamento de mérito no âmbito do Recurso Extraordinário com repercussão geral em tramitação no STF.

De qualquer forma, o processo demarcatório da Terra Indígena está de acordo até mesmo com os argumentos incabíveis da portaria. “Então, no âmbito judicial, percebemos que os grupos que querem se apossar do território Tupinambá usam este argumento da demarcação não concluída para justificar pedidos de despejos e invasões”.

A conclusão de Samara se soma à maneira como a Funai vem desmontando a política indigenista de modo a inviabilizar demarcações, não defender povos em apuros com as reintegrações e permitindo o registro de propriedades privadas sobre estes territórios tradicionais reivindicados e habitados pelos indígenas.

Crédito da foto: Renato Santana/Cimi

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