Como o povo Ashaninka não pegou Covid-19 até agora

Habitantes do Acre, indígenas adotaram uma rígida estratégia de isolamento e resgataram conhecimentos ancestrais

Por Fabio Pontes, na Amazônia Real

Acima, cena de gravação do episódio ‘A morada de Hãkwo’, dirigido por Vincent Carelli e Wewito Pyãko, da série “Nokun Txai – Nossos Txais”, dirigida por Sérgio de Carvalho. Foto: Talita Oliveira

Rio Branco (AC) – O povo Ashaninka chega ao fim de 2020 sem registro de casos de Covid-19 nas aldeias da Terra Indígena Kampa do Rio Amônia, no Acre. É um feito e tanto diante do fato de que o vírus alcançou comunidades quase isoladas, cujo tempo de viagem pode levar dias. Com o rio em boas condições de navegabilidade, chega-se ao território Ashaninka em uma viagem de até oito horas a partir do município de Marechal Thaumaturgo, no Vale do Juruá.

Os Ashaninka seguem um criterioso isolamento social. Pessoas das aldeias não podem sair e quem está nas cidades não pode entrar, mesmo que isso paralise uma de suas principais atividades econômicas: o turismo. Rodeados por uma densa floresta que lhes garante fartura de carne de caça e mais o pescado no rio, eles não têm muita necessidade de ir até Marechal Thaumaturgo, município que concentra a maior parte dos Ashaninka do Acre. Com roçados em sistema agroflorestal, obtém farta e diversa produção de frutas e legumes. A macaxeira é a base da dieta alimentar do povo.

Para ter acesso a mantimentos como o sal, café, óleo, açúcar, uma comitiva de indígenas é encarregada de ir até a cidade fazer as compras. Os pedidos são feitos de forma prévia a um comerciante. Antes de serem embarcadas nas canoas para o retorno ao território Kampa, toda a compra é higienizada com álcool em gel para evitar que o vírus viaje junto.

Mas é a preservação da cultura e do modo de vida dos antepassados que tem livrado os Ashaninka de um contágio pelo novo coronavírus. Na tradição Ashenĩka, cada família tem uma casa isolada dentro da floresta, afastada daquelas localizadas às margens dos rios. Caso algum indígena venha a apresentar sintomas suspeitos, o doente fica longe do convívio com os saudáveis, evitando o contágio.

De acordo com a liderança Francisco Piyãko, essa era uma estratégia já seguida pelos antepassados quando das primeiras epidemias que dizimaram dezenas de populações indígenas da América do Sul, durante a invasão europeia do continente. Quando não eram mortos por confrontos de investidas militares contra seus territórios, os sobreviventes desenvolviam doenças que seus organismos não estavam adaptados, causando mortandade. As casas isoladas ajudaram a preservar os Ashaninka.

As aldeias Apiwtxa e Igarapé Arara somam 838 pessoas. Na Terra Indígena Kampa do Rio Amônia está a maior concentração Ashaninka do Acre. Ainda há aldeias pelas bacias dos rios Envira e Tarauacá, mas a maior população está no Peru, de onde vieram aqueles que hoje habitam o lado brasileiro da fronteira.

“O povo Ashaninka do rio Amônia tem uma organização social consolidada, e que representa muito bem o interesse coletivo do povo. São várias lideranças importantes; homens, lideranças mulheres. A nossa associação é orientada por esse grupo de lideranças, e isso faz com que a base, as famílias, sigam as orientações”, explica Francisco.

Esse tipo de organização serve de guia para todas as questões que orientam os interesses coletivos do povo Ashaninka. “Quando se fala da proteção do território tem uma estratégia, da segurança alimentar tem outra. Quando fala dos valores, dos rituais, dos conhecimentos, da educação, da saúde”, enumera Francisco.

O mesmo aconteceu diante da pandemia do novo coronavírus. Os protocolos de entrada e saída da terra indígena, quais as agendas seriam mantidas, assim como o que fazer com os projetos e programas em andamento, tudo passou por discussões coletivas. Uma vez acordado, mais que respeito, houve uma grande compreensão da comunidade diante da gravidade da situação.

Esse isolamento social que já dura 10 meses ocorre apenas com o mundo exterior, e não entre os Ashaninka dentro das aldeias. “O isolamento é para fora. Internamente a gente manteve uma vida normal, e começamos a trabalhar para que aumentasse a nossa produção. Construímos uma agenda que pudesse contribuir para, caso a pandemia durasse mais tempo, a gente estivesse seguro aqui, sem a necessidade de estar em contato com o mundo lá fora”, diz Francisco Piyãko. 

Benki Piyãko em foto da série “Nokun, Nossos Txais”. Foto: Talita Oliveira

A ameaça que veio de fora

O clã Piyãko representa a principal liderança política e social dos Ashaninka nas aldeias Apiwtxa e Igarapé Arara. O patriarca, Antônio Piyãko, é casado com dona Piti, uma ex-seringueira com quem teve sete filhos – sendo cinco homens e duas mulheres. O trabalho de direção da comunidade é encabeçado por Francisco Piyãko, Benki Piyãko e Isaac Piyãko. Este último foi reeleito, em novembro, prefeito de Marechal Thaumaturgo pelo PSD.

E foi justamente o período de campanha eleitoral que representou o de maior risco. Francisco Piyãko foi o primeiro e único Ashaninka do Rio Amônia a se contaminar. O contágio ocorreu na última semana do primeiro turno das eleições, quando ajudava na campanha de reeleição do irmão. Ele afirma que voltou à aldeia, mas mantendo todos os cuidados de distanciamento. Até aquele momento o vírus ainda não tinha se manifestado. Após fazer alguns encaminhamentos com a comunidade, retornou à cidade, onde começou a sentir os sintomas da Covid-19, testando positivo.

“Ninguém na aldeia pegou [a doença], não pegou ninguém da nossa família. Ficou só em mim mesmo. Já estou recuperado, fiz todos os exames, não fiquei com sequelas. Apenas perdi muito peso”, relata Francisco. Os protocolos e os cuidados foram redobrados. O caso dele apenas reforçou a necessidade de manter a vigilância. Conforme a Amazônia Real apurou junto ao Distrito Sanitário Especial Indígena (Dsei) Alto Rio Juruá e à Coordenação Regional Alto Juruá, da Funai, a TI Kampa do Rio Amônia, de fato, continua sendo a única no Acre a não ter casos da Covid-19.

A saúde indígena do Acre está dividida em dois distritos sanitários: Alto Rio Juruá e Alto Rio Purus. Este último também atende aldeias no sul do Amazonas e noroeste de Rondônia, povoado pelos Kaxarari. Segundo o boletim epidemiológico da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), o Dsei Alto Juruá registra, desde o início da pandemia, 829 casos positivos da Covid-19, com 10 mortes. Já no Alto Rio Purus são 575 infectados e 5 mortes. É sob a jurisdição do Dsei Alto Juruá que está a grande maioria dos indígenas acreanos: 18 mil dos 24 mil. 

Os dados da Sesai contam apenas os casos ocorridos dentro das aldeias, não contabilizando os de indígenas nas cidades. De acordo com levantamento da Comissão Pró-Índio (CPI-Acre), que leva em consideração os registros fora das aldeias, a quantidade de contaminados pelo coronavírus no Acre é de 2.375 pessoas, com 27 óbitos. Dos 16 povos indígenas do estado, em 13 a pandemia causou impactos.

Em algumas aldeias localizadas em regiões de difícil acesso, o novo coronavírus não só infectou os indígenas como causou mortes. Na Aldeia Vigilante, na Terra Indígena Kaxinawá do Rio Humaitá, município de Feijó, 26 Huni Kuin foram diagnosticados, em julho, com Covid-19. Um idoso de 83 anos morreu por suspeita da doença, apesar de a causa da morte ter sido oficialmente apresentada como parada cardíaca. O caso acendeu o alerta porque o rio Humaitá, já perto da fronteira com o Peru, é uma área com presença de grupos isolados.

A hipótese é a de que a doença chegou à aldeia por meio de um Huni Kuin que foi até a cidade, e por lá se infectou, transportando o vírus sem saber. Essa foi a forma mais comum da Covid-19 ter se espalhado pelas aldeias de toda a Amazônia, mas não a única. Os próprios funcionários dos Dseis espalharam a doença ao fazer atendimento de campo sem passar por quarentena e entrarem contaminados nas comunidades.

Onde estão localizados os Ashaninka

Os Ashaninka também são conhecidos como Kampa e autodenominados Ashenĩka. Seu tronco linguístico é o Aruak. O que mais caracteriza esse povo são as vestes formadas pela kushma (uma espécie de túnica, vestido, usados por homens e mulheres) composto pelo amatherentsi, que é o chapéu feito com palha de palmeira adornado com penas de arara. Estudos antropológicos apontam uma possível relação ancestral dos Ashaninka da Amazônia com o Império Inca da Cordilheira dos Andes.

Em Marechal Thaumaturgo, além da TI Kampa do Rio Amônia, suas aldeias são encontradas na TI Kaxinawá e Ashaninka do Rio Breu. Os Ashaninka do Acre também se espalham por aldeias na Bacia do Tarauacá/Envira. No município de Tarauacá, eles estão na Terra Indígena Kampa do Igarapé Primavera. De acordo com a Funai, eles formam uma comunidade de 42 pessoas.

Já em Feijó há uma quantidade maior. Na TI Kulina do Envira, há três aldeias Ashaninka com 520 pessoas. Eles dividem o território demarcado com os Kulina (Madijá). Em Feijó, ainda se espalham por aldeias das TIs Riozinho do Envira, Jaminawa/Envira e Kampa e Isolados do Rio Envira. Foi nesta última que, em junho de 2014, houve o histórico registro do contato entre os Ashaninka e os chamados isolados do Xinane.

Até hoje os 35 indígenas de recente contato, identificados como Sapanawa, dividem a TI com os Ashaninka, morando numa área da base da Frente Etnoambiental do Rio Envira, da Funai. A região – localizada na fronteira com o Peru – é uma das que registram grande quantidade de povos em isolamento voluntário na Amazônia.

A presença dos Ashaninka nas áreas mais próximas da fronteira entre Brasil e Peru, tanto no Juruá quanto no Envira, não é uma coincidência. Eles são originários das terras que hoje formam o território peruano. Relatos históricos apontam que a vinda para o lado brasileiro ocorreu nas últimas décadas do século 19, durante as “correrias” (caça a índios) promovidas pelos grandes exploradores de caucho no Peru.

Do lado de cá da fronteira, as “correrias” eram promovidas pelos donos de seringais – os seringalistas. A presença de índios era vista como um “atraso” para o desenvolvimento da atividade de extração do látex da seringueira e do caucho. Até o início do século 20, as terras que hoje formam o Acre pertenciam ao Peru e à Bolívia. Por não ser uma região abundante em seringueiras nem em caucho, o rio Amônia se tornou um local seguro para ser habitado pelos Ashaninka.

Se há escassez de látex, as margens do manancial são abundantes em madeira nobre, com alto valor comercial. O Amônia já foi chamado de o “rio da madeira”. Isso fez com que, por muitos anos, a terra dos Ashaninka fosse cobiçada e invadida por madeireiros peruanos e brasileiros. Deste lado da fronteira os grandes exploradores de madeira eram empresários de Cruzeiro do Sul, a principal cidade acreana do Vale do Juruá.

Entre os madeireiros estava Orleir Messias Cameli, dono da Marmud Cameli Ltda. Orleir Cameli foi governador do Acre entre 1995 e 1998, e tio do atual governador Gladson Cameli (Progressistas). Orleir morreu em 2013 vítima de câncer. Em abril deste ano, após o processo se arrastar por quase três décadas, a Funai, o Ministério Público Federal, advogados da Marmud Cameli Ltda e dos Ashaninka assinaram um termo de conciliação para o pagamento de indenização no valor de R$ 20 milhões pelos danos ambientais causados pela empresa da família Cameli na TI Kampa do Rio Amônia. Do montante, R$ 6 milhões vão para o Fundo de Defesa de Direitos Difusos e o restante para o povo Ashaninka. A Marmud Cameli vem pagando a indenização em parcelas. 

A extração predatória de madeira durante as décadas de 1970 e 1980 provocou sérios problemas sociais aos Ashaninka, como a introdução de bebidas alcoólicas levadas pelos trabalhadores braçais das madeireiras. A invasão do território afetou ainda o seu modo de vida cultural, levando muitos deles a deixarem de usar suas vestes tradicionais, a kushma. Foi neste período conturbado que os Ashaninka passaram a se organizar política e socialmente como forma de resistência por meio de uma associação e uma cooperativa.

Os resultados desta organização estão visíveis até hoje. No Acre, os Ashaninka são conhecidos por seu ativismo que os faz serem conhecidos em todo o mundo, atraindo investimentos internacionais para seus projetos de segurança alimentar e gestão territorial.

A cura que vem da floresta

Além do rigoroso isolamento social, os Ashaninka também recorreram aos seus saberes tradicionais da medicina da floresta como prevenção à Covid-19. A produção de chás e outras bebidas a partir de folhas e raízes foi recorrida por quase todos os povos indígenas da Amazônia. O uso destes remédios naturais está associado à espiritualidade dos povos, que buscam nos elementos da floresta sua relação com o sagrado, o divino, encontrando neles a cura para as enfermidades.

Em 2003, os Ashaninka compraram uma área de 100 hectares localizada bem de frente à sede urbana da pequena cidade de Marechal Thaumaturgo, situada no encontro dos rios Juruá e Amônia. Sede de uma antiga fazenda e com o solo degradado, ela foi reflorestada a partir da produção de alimentos em sistema agroflorestal, caracterizada pelo plantio de legumes, verduras e hortaliças, consorciado com plantas nativas da floresta como o açaí e o buriti.

A área foi transformada no Centro Yorenka Ãtame, que une o trabalho de conscientização ambiental dos jovens moradores de Marechal Thaumaturgo com os tratamentos espirituais desenvolvidos pelos Ashaninka a partir da prática de orações, cantos, banhos e a ingestão do chá sagrado, o ayahuasca.

“A gente conseguiu curar centenas de pessoas aqui da cidade com as nossas medicinas naturais. Isso pode até ser desconhecido pelo governo, pelos cientistas, pelos doutores, mas aqui a gente tem a segurança porque bebemos e levantamos centenas de pessoas adoecidas pela Covid”, destaca Benki Piyãko, responsável pelo fortalecimento desta espiritualidade medicinal entre os moradores das aldeias, da cidade e de pessoas de todo o mundo que vão até o Centro Yorenka Ãtame em busca de tratamentos.

De acordo com ele, foi graças ao uso destes remédios naturais que os Ashaninka sobreviveram às epidemias do passado, como sarampo, caxumba e gripe. Segundo Benki Piyãko, a ingestão desses remédios produzidos a partir de folhas e raízes atua para melhorar a imunidade do organismo, tornando-o mais resistente.

Enquanto a situação dentro das aldeias Apiwtxa e Igarapé Arara é de segurança alimentar, muitas outras comunidades indígenas e ribeirinhas do Alto Rio Juruá já enfrentam dificuldades econômicas causadas pelo prolongamento da pandemia. Conscientes dessas dificuldades, os Ashaninka do Amônia decidiram realizar uma campanha de arrecadação de fundos para a compra de alimentos e utensílios de primeira necessidade, incluindo linhas de pesca, terçados, enxadas e isqueiros. Entre os gêneros alimentícios estão arroz, feijão, óleo, sal e outros. Os kits também contêm álcool em gel e sabão.  

A campanha foi lançada no dia 2 de julho por meio de uma live transmitida direto do Centro Yorenka Ãtame – com tradução simultânea para inglês – e intermediada pelo ator Marcos Palmeira. A meta é arrecadar R$ 1 milhão para apoiar 1.800 famílias. Até agora a campanha Ashaninka pelos Povos da Floresta já arrecadou R$ 539 mil. A primeira entrega dos kits saiu de Marechal Thaumaturgo no começo de agosto, tendo como destino as cabeceiras do rio Breu num deslocamento de dois dias subindo o manancial.

A viagem se tornou ainda mais desafiadora por conta do baixo nível dos rios nesta época do ano. O destino era a comunidade Foz do Breu, já bem na fronteira com o Peru.  O transporte dos 235 kits (nove toneladas) foi feito em sete canoas. Os kits foram distribuídos entre as famílias da Foz do Breu e as aldeias Ashaninka e Kaxinawá do rio Breu.

Já no dia 26 de agosto foi a vez de canoas e batelões partirem rumo às comunidades do rio Bagé. Foram 90 kits doados para quatro aldeias dos Jaminawa-arara e quatro comunidades não-indígenas de ribeirinhos. Em 6 de setembro, houve o embarque da maior doação já feita: 320 kits (11 toneladas) com destino às comunidades que habitam às margens do rio Tejo, na Reserva Extrativista Alto Juruá. Foram 15 comunidades beneficiadas entre ribeirinhos e aldeias Kuntanawa. 


Esta reportagem é apoiada pela Open Society Foundations dentro do projeto “Marcas da Covid-19 na Amazônia”

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 Fabio Pontes – é jornalista acreano há mais de 10 anos produzindo reportagens que vão da questão ambiental-amazônica, indígena, humanitárias (imigração), mudanças climáticas (enchentes e secas severas) até a política regional. Entre os veículos para os quais já escreveu estão Folha de São Paulo, Valor Econômico, Veja e BBC Brasil. Atualmente escrevo com mais frequência para a Agência Amazônia Real e a revista piauí, além de manter o blog (fabiopontes.net).

Cena de gravação do episódio ‘A morada de Hãkwo’, dirigido por Vincent Carelli e Wewito Pyãko, da série “Nokun Txai – Nossos Txais”, dirigida por Sérgio de Carvalho. Foto: Talita Oliveira

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