‘Tivemos que entrar porque esse território estava sendo privatizado’: Xokleng ocupam área e ICMBio pede reintegração

Por Luís Eduardo Gomes, no Sul21

Dez famílias, incluindo 14 crianças, da etnia indígena Xokleng aguardam nesta segunda-feira (28) uma decisão do Supremo Tribunal Federal para evitar o despejo da ação de retomada de um território que alegam ter sido ocupado por seus ancestrais na Floresta Nacional (Flona) de São Francisco de Paula, na região da Serra Gaúcha. Provocada pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), órgão federal que faz a gestão de unidades de conservação no País, a Justiça Federal concedeu, às vésperas do Natal, uma decisão ordenando a reintegração de posse até esta segunda. O Ministério Público Federal (MPF) e a Defensoria Pública Federal tentam reverter a decisão.

Liderança na retomada da Floresta Nacional de São Francisco de Paula, Woie Kriri Sobrinho Patté explica que os Xokleng entraram com um pedido junto à Fundação Nacional do Índio (Funai) para reconhecimento da área como território da etnia em 2011. Contudo, diz que o movimento de concessão para a iniciativa privada da exploração de serviços na Flona motivou os indígenas a ocuparem o território.

“A gente vinha esperando esse dia [reconhecimento pela Funai] e nunca chegava, então tivemos que iniciar a nossa retomada de corpo presente em 11 de dezembro, buscando o nosso direito e reconhecimento do território Xokleng”, diz. “Nós estamos num território Xokleng, dos nossos ancestrais. Sempre soubemos que era um nosso território, mas tivemos que entrar porque esse território estava sendo privatizado e nós não tínhamos tempo para esperar”, complementa.

De acordo com o ICMBio, o processo de concessão repassa para a iniciativa privada os serviços de segurança e manutenção do local, em troca da exploração comercial da área, como a cobrança de ingresso à área de reserva, lojas de souvenires, lanchonetes, transporte interno de passageiros, passeios de navegação fluvial, voos panorâmicos de helicóptero, administração de centros de visitantes, trilhas, campings e mirantes. Atualmente, o órgão mantém contratos de concessões de serviços de uso público nos parques nacionais da Tijuca (RJ), do Iguaçu (PR), da Serra dos Órgãos (RJ), de Itatiaia (RJ), de Fernando de Noronha (PE), da Chapada dos Veadeiros (GO) e do Pau Brasil (Bahia).

Íris Guedes, advogada que tem atuado em favor dos Xokleng, diz que contatou o Ministério Público Federal e a Defensoria Pública da União após a ação de retomada dos indígenas para buscar a promoção do diálogo sobre a situação. Ela explica que, no dia 18, o Ministério Público Federal promoveu uma reunião com os Xokleng, com o ICMBio e com movimentos de apoio a comunidades indígenas, em que foi tirada a posição de que deveria ser estabelecido um canal de mediação. Contudo, foi surpreendida com a decisão do ICMBio de, no dia 22, ingressar com ação de reintegração de posse.

Tiago Vieira Silva, defensor público federal que está atuando no caso, explica que a reintegração de posse foi pedida pelo ICMBio na Justiça Federal de Caxias do Sul, que expediu mandado favorável no dia 23 de dezembro. Ele diz que o Ministério Público Federal entrou com agravo de instrumento para tentar suspender a decisão, mas este foi indeferido pelo plantão do TRF4.

A DPU então ingressou com uma petição de reclamação aludindo à decisão do ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal, de que não deveriam ser realizadas ações de reintegração de posse de territórios indígenas durante a pandemia de covid-19 para evitar o deslocamento de pessoas e o risco de propagação do coronavírus.

Na reclamação, assinada por Tiago, a DPU pede a suspensão da reintegração de posse com o argumento de que a remoção compulsória é desnecessária por que a ocupação é composta por um pequeno grupo de indígenas que “pacificamente ocupam terra que há muito reivindicam, sem oferecer qualquer risco”, destacando ainda que não há histórico de vandalismo ou violência por parte dos indígenas, o que foram motivos alegados pelo ICMBio para pedir a reintegração de posse.

“Por outro lado, perpetrar a remoção compulsória, além de acarretar em risco de conflito social, ainda representa risco à saúde pública uma vez que vai gerar deslocamento de grupo vulnerável que com baixas condições sanitárias fica mais exposto ao vírus que assola o planeta, sendo consequência indissociável o agravamento da pandemia de COVID na região”, diz o documento.

Segundo o defensor, a expectativa era de que o STF julgasse nesta segunda-feira o recurso que pedia a suspensão da reintegração de posse, uma vez que o prazo para a saída das famílias do local vence nesta data. Contudo, até a tarde desta segunda, a matéria ainda não havia sido autuada pela corte.

Em manifestação sobre o caso do dia 24 de dezembro, o Conselho Estadual de Direitos Humanos (CEDH) recomendou a suspensão da reintegração de posse e o encaminhamento de uma solução negociada, também, pontuando que não haveria urgência ou riscos que justificassem a retirada das famílias do local.

No dia 26, a Polícia Federal de Caxias do Sul pediu à Justiça o adiamento da reintegração de posse por causa da pandemia, segundo informou  GaúchaZH. “No local estão acampados cerca de trinta indígenas, dentre os quais, aproximadamente quatorze crianças. A retirada dos indígenas encontra grandes dificuldades em razão das medidas de proteção contra o covid-19, bem como o meio de transporte para os referidos índios, haja vista que a simples retirada dos mesmos do interior da unidade de conservação não resolveria o problema”, disse a PF em ofício.

Território ancestral

Woie diz que, originalmente, os Xokleng ocupavam territórios que iam desde Mato Grosso até Porto Alegre, mas acabaram sendo expulsos do Rio Grande do Sul com a estratégia de ocupação territorial do Estado. “A nossa saída foi forçada do Rio Grande do Sul através de bugreiros que eram contratados para exterminar com o povo indígena. O nosso povo Xokleng foi expulso e, para sobreviver, tivemos que nos refugiar em outros lugares”, afirma.

Um desses territórios em que buscaram refúgio foi na região do Alto Vale, em Santa Catarina, onde moravam as famílias que participam da retomada. “O território Xokleng deve ser reconhecido e deve ser devolvido, porque é nosso de direito. Nós não estamos ocupando terra de ninguém, estamos voltando para casa, porque fomos expulsos da nossa terra”, diz.

Segundo Woie, as famílias estão acampadas em barracas de lona próximo à entrada da Floresta Nacional. O líder das famílias diz que a coordenação do ICMBio ofereceu um ônibus para realocar as famílias, o que foi considerado como uma provocação. “Desligaram a energia que a gente estava usando para recarregar os celulares e cortaram a água que nós estávamos bebendo”, complementa.

Woie diz ainda que a coordenação local do ICMBio alega que os indígenas estariam dificultando o trabalho do órgão e ameaçando os funcionários. “Falaram que a gente invadiu museu e a sede da Flona, mas isso é tudo mentira. A Polícia Federal fez a investigação e concluiu que nada disso é verdade. Nós não queremos que toquem na gente, mas também não vamos dificultar o trabalho do ICMBio. Mas, foi o contrário, foi só a Justiça entrar em recesso que foi feito o pedido de reintegração de posse”, pontua.

O defensor Tiago Vieira Silva explica que a DPU vem acompanhando há anos o movimento dos Xokleng para reconhecimento territorial nos estados de Santa Catarina e Paraná. “O povo Xokleng reivindica também o seu vínculo com a terra aqui no Rio Grande do Sul. É uma etnia minoritária que acabou encolhendo cada vez mais, ficando como inquilinos em reservas de outras etnias, o que acaba gerando algum risco de conflitos para eles”, diz.

Segundo ele, existem indícios em sítios arqueológicos de habitação Xokleng em São Francisco de Paula e o próprio ICMBio reconheceria a existência de ocas Xokleng na reserva, mas o processo está parado na Funai desde 2015. Tiago afirma que um inquérito civil aberto pelo MPF de Caxias do Sul foi dado por encerrado porque a Funai havia se comprometido a fazer a conclusão do estudo antropológico sobre o povo Xokleng e a sua vinculação com territórios no Rio Grande do Sul e que o DPU vai seguir trabalhando para que o processo tenha andamento nas esferas administrativas.

Roberto Liebgott, do Conselho Indigenista Missionário, diz que a entidade está acompanhando o caso e aguardando o desfecho das demandas jurídicas contra a reintegração de posse. “Até o momento, a PF não foi ao local e, ao contrário, solicitou adiamento do cumprimento da ordem. O STF ainda não se manifestou acerca da reclamação apresentada pela DPU no sentido de suspender a reintegração de posse. Articulamos com os parceiros de outras instituições para estarem no local da retomada durante o dia de hoje com os objetivos de acompanhar, fiscalizar e denunciar possíveis arbitrariedades e violências”, afirma.

A reportagem tentou o contato com o ICMBio, mas, até o fechamento desta matéria, não obteve resposta.

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