Considero inegável que a espiral de violência e morte que avassala o povo brasileiro é causada pela superexploração do sistema capitalista, máquina cruel de moer vidas, que funciona dia e noite, sob direção da classe dominante que vive no luxo, mas com sangue nas mãos. A elite, por sua vez, goza o luxo e as benesses do poder econômico e político à custa de muito sangue da classe trabalhadora e do apunhalamento das entranhas da mãe Terra gerando extermínio de fontes de água e desertificação de territórios. O mito do progresso e do desenvolvimento econômico só para a classe dominante, que extermina diariamente as condições de vida no planeta Terra, nossa única Casa Comum, gerou a pandemia do novo coronavírus. A ideologia dominante, a crise dos partidos políticos e os falsos religiosos impuseram no Executivo Federal um desgoverno fascista que só sabe matar, tem sede de sangue. Os fascistas continuam no poder pela conivência do Supremo Tribunal Federal e do Congresso Nacional acovardados que, diante de dezenas de crimes de responsabilidades cometidos por Jair Bolsonaro, seguem não apenas omissos, mas cúmplices da escalada de morte no nosso país, propondo apenas medidas paliativas que disfarçam a crueldade dos mil jeitos de matar em curso e, pior, fazem politicagem diante das lágrimas do povo em desespero. Cegado e anestesiado, até quando o povo aceitará morrer aos poucos sem se rebelar massivamente?
A pandemia do novo coronavírus no Brasil iniciou-se com uma onda que cresceu rapidamente, se prolonga por nove meses e, pior, de novembro de 2020 para cá está crescendo muito. O número de mortos pela covid-19 já ultrapassa 240 mil, se incluirmos 20% de mortos subnotificados. É notório o cansaço do povo diante da pandemia do novo coronavírus. É certo que o povo anseia pela superação da pandemia, mas foi chocante e estarrecedor ver um elevado número de aglomerações suicidas e assassinas durante os festejos de natal e na virada de ano. Recordei-me de uma das muitas cenas eloquentes do filme documentário “A carne é fraca”, do Instituto Nina Rosa: cena mostrando que, no desfiladeiro do matadouro, ao pressentirem que à sua frente estão morrendo vacas ou bois com uma cacetada na nuca, as vacas e os bois são tomados por um estresse muito grande, o que injeta adrenalina em todo o corpo. O instinto de vida do gado grita alto diante da iminência da morte, no corredor da morte do matadouro. Nas aglomerações das últimas semanas, gritaram alto o egoísmo e a ignorância de muita gente. Desgovernado por fascistas, o Brasil marcha para se tornar uma ameaça sanitária mundial. Em 2021, daremos conta de enterrar nossos mortos por política de morte – genocida – e pela irresponsabilidade dos cúmplices?
Cabe lembrar que, mesclado com o ódio de classe que a elite tem do povo pobre, “quando a ignorância impera, o amor se cala, se aniquila e os sonhos se desfazem, porque insuportável é a arrogância de quem só conhece suas verdades falsificadas”, alerta Helenice Augusta da Cunha. “A ignorância é a maior enfermidade do ser humano”, dizia Cícero, grande lutador republicano, “pedra no sapato” de imperadores romanos. Ele foi morto e proscrito a mando do imperador Júlio César em 43 antes de Cristo. “Na falta de argumentos a ignorância usufrui da agressividade e da ofensa como modo de ataque”, diz Agni Shathi. “A ignorância é a mãe de todos os males”, diz François Rabelais. “A ignorância mata e quando regada com fé e política, causa o genocídio”, diz Israel Lopes prenunciando o que acontece no Brasil no início de uma nova década. “Aquele que não conhece a verdade é simplesmente um ignorante, mas aquele que a conhece e diz que é mentira, este é um criminoso”, assevera Bertolt Brecht. Dalai Lama diz que “o egoísmo gera a ignorância que origina grandes problemas no mundo”. “Cuidado com o falso conhecimento; ele é mais perigoso do que a ignorância”, diz George Bernard Shaw.
Diante dos alertas repetidos à exaustão pela Organização Mundial da Saúde (OMS), por infectologistas e epidemiologistas de que é preciso manter o distanciamento corporal e social, e usar máscaras para superarmos a pandemia do novo coronavírus, assistimos às aglomerações estarrecedoras nos dias de Natal e de virada de ano. Aglomerações promovidas por “celebridades” medíocres e ignorantes, por turistas que esqueceram a responsabilidade social, ou por pessoas em geral cansadas de quarentena, além de motivadas pelo próprio comportamento negacionista, genocida e debochado do presidente Bolsonaro em relação à gravidade da pandemia. Neste contexto, temos que perguntar: é ético ou imoral promover aglomerações, participar delas ou se omitir da fiscalização delas? Em tempos de pandemia, além de imoral, é atitude criminosa promover e/ou participar de aglomerações. Da mesma forma, é crime quando quem tem o dever de fiscalizar as aglomerações não fiscaliza.
No Código Penal, muitas ações ou omissões são tipificadas como crime, por exemplo, quando se coloca em risco a vida de uma pessoa. A Constituição Federal, em seu Artigo 5º, protege a inviolabilidade do direito à vida considerando-o o mais importante de todos os direitos, pois a vida é o bem jurídico mais valioso que temos. Com a ocorrência da pandemia de Covid-19 e a edição de inúmeros decretos, seja por Estados e por Municípios, obrigando o uso de máscaras em locais públicos, o não cumprimento do estatuído nesses decretos, ou seja, o não uso da máscara, pode muito bem ensejar crime de homicídio, já que está devidamente esclarecido pelos médicos infectologistas e virologistas que a transmissão do contágio pode levar à morte, especialmente no caso de pessoas com doenças preexistentes ou acima de 60 anos. Em vários países, quem é surpreendido pela polícia em aglomerações está sendo multado.
O artigo 121 do Código Penal, que é formado por apenas duas palavras – “matar alguém” -, estaria sendo infringido, caso ocorra morte, conseguindo-se demonstrar a pessoa de onde partiu a contaminação. O fundamento para chegar a tal punição é que hoje a ciência demonstra a letalidade da covid-19, o que tem sido divulgado à exaustão pela imprensa ecoando os alertas fundamentados na ciência feitos por infectologistas e epidemiologistas.
A partir da obviedade que a doença covid-19 mata e não tem cura e nem o povo foi vacinado ainda, o não uso da máscara e a promoção e/ou participação em aglomerações e os funcionários públicos que não fiscalizam, deveriam ter consequências sérias para estas pessoas que não se sentem tocadas por uma questão de humanidade, pela obrigação de ajudar a não contaminar outrem. Propomos que estas pessoas recalcitrantes em cumprir o determinado pelas autoridades sanitárias sejam levadas a responderem na seara criminal. Enquanto durar a pandemia, aglomerar-se e violar as regras sanitárias se tornou uma questão de saúde e segurança públicas. Nesse caso, o interesse da coletividade – respeito à dignidade da pessoa humana – está acima dos pretensos direitos individuais de pessoas que não são apenas egoístas e irresponsáveis, mas agem de forma criminosa.
Na Bíblia, no quarto capítulo do livro do profeta Oseias, diante da realidade de um povo sendo triturado de mil maneiras, há uma veemente crítica aos “sacerdotes” – líderes religiosos da época -, já que eles representavam o Estado monárquico super-opressor e sanguinário. “Sangue derramado se ajunta a sangue derramado. Por isso, a Terra geme e seu povo está sendo matado” (Os 4,2-3), denuncia Oseias. Destemido, o profeta Oseias aponta os líderes religiosos como causadores da violência: “Eu levanto acusação contra você, sacerdote! Você tropeça de dia, o profeta tropeça com você de noite e você mata a sua própria mãe. O meu povo está morrendo por falta de conhecimento” (Os 4,4-6). Os religiosos do contexto de Oseias rejeitavam o verdadeiro conhecimento (Os 4,6), se agarravam à ignorância, à hipocrisia e a posturas moralistas, como atualmente ocorre com muitas lideranças religiosas. A idolatria alimentada pelos líderes religiosos justificava religiosamente as estruturas e relações sociais de opressão e exploração. Em Oseias 4,1-19, temos uma profecia que denuncia a macro-opressão realizada pelos “sacerdotes”, e outra que põe o dedo na ferida da micro-opressão que acontece nas relações interpessoais, particularmente entre homem e mulher, entre adultos e crianças. O miúdo da vida (o cotidiano) e o macro da vida são as duas pernas presentes de forma entrelaçada na profecia de Oseias. A profecia de Oseias revela para as pessoas o que significa viver sob políticas de morte e alianças com o Império (cf. Os 5,13; 7,11; 8,9), em um ir e vir sem rumo que foi corroendo as forças da nação até chegar ao seu final (cf. Os 5,12; 7,9; 8,8). Isso sem falar da violência que rasgou ventres de mulheres grávidas (cf. Os 14,1) e tirou a vida de crianças de peito (cf. Os 9,11-14).
Enfim, a profecia de Oseias continua atualíssima, quando ele diz: “O meu povo está sendo matado por falta de conhecimento” (Os 4,6). O coronavírus mata, mas a ignorância mata mais. A ignorância gera o caos, a sabedoria não. Os fascistas no poder matariam menos se não encontrassem no meio do povo pequenos fascistas ignorantes, egoístas, estúpidos, irresponsáveis e, em última instância, criminosos também.[2]
Notas:
[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente da CPT, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH e de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte, MG.
[2] Gratidão à Carmem Imaculada de Brito, que fez a revisão deste texto. Carmem é Doutora em Sociologia Política pela UENF.
—
Imagem: Charge do Zé Dassilva.