No Taqui Pra Ti
Quase todos os jornalistas da editoria de internacional, nos anos 1930-40, exibiam suas próprias fotos nas colunas portando um indefectível cachimbo na boca ou um charuto, o que lhes dava ar de especialista no assunto. Numa polêmica com um deles, Leon Trotsky ironizou:
– Esse cara, só porque fuma cachimbo, crê que pode explicar o que acontece no mundo.
Não fumo cachimbo, nem charuto. Não sou, portanto, capaz de avaliar a invasão do Congresso dos EUA nesta quarta-feira (6) por uma horda de neofacistas e supremacistas brancos insuflados por Donald Trump. Tentativa de golpe? Terrorismo doméstico? Insurreição? Sei lá. O que sei se limita às contraditórias versões do noticiário televisivo. Confesso que para mim política internacional é como química inorgânica: não entendo bulhufas.
No entanto, por via das dúvidas, pego o meu petynguá guarani, dou uma baforada e assim me qualifico para tentar entender, pelo menos, por que Trump, sempre tão truculento e arrogante, afinou o bico de quarta para quinta-feira e ficou tão submisso e comedido. Só isso. E não precisa ser comentarista internacional para tal sondagem. Basta recorrer à experiência de vida no bairro de Aparecida, em Manaus, que já viveu tudo o que acontece ou ainda vai acontecer no mundo, como comprova a briga de vizinhos e a mudança súbita do velho Luís Tracajá em processo similar ao de Trump.
Mister Tracajá
Deixa-me te apresentar o mister Luís. Alguém deu-lhe o apelido de Tracajá, por causa da cabeça totalmente careca cheia de manchas amarelas idênticas às existentes na carapaça convexa e ovalada do quelônio irmão da tartaruga amazônica – o tracajá – que dá um sarapatel supimpa com sua carne saborosa.
O nosso Luís Tracajá morava na rua Gustavo Sampaio. O quintal do seu vizinho João Barbosa era um pouco mais elevado e quando chovia a água escorria para lá e daí vazava muito devagar para o vizinho do outro lado, o Nardo Treme-Treme, escoando em seguida para o quintal da Leonor e depois para a rua.
Inconformado com o tempo lento de escoamento, Tracajá aproveitou a missa do sétimo dia de morte do velho Barbosa, quando não ficara ninguém na casa vizinha, e convocou o exército que comandava formado por seus filhos Pé-de-pincha, Boca-livre, Pororoca e Pretinho. Ordenou que invadissem o quintal vizinho e bloqueassem com cimento a passagem da água. Na primeira chuva, o lago não drenado adentrou a casa da dona Elisa, que diante da inundação, pegou um cano e abriu furos no muro para facilitar a drenagem.
Armou-se um tremendo bafafá. Tracajá a ameaçou com uma nova obstrução. Ela, valente, contestou:
– Eu quebro o seu casco se o senhor tapar outra vez – dizia, brandindo o cano de ferro.
– Seu marido era um cachaceiro vagabundo – xingou Tracajá, conhecido por ser supersticioso e por temer as almas do outro mundo, em cuja presença acreditava piamente.
Foi aí que o filho da dona Elisa, de 14 anos, deu o xeque-mate:
– Seu Tracajá, a alma do papai vai vir para infernizar sua vida.
Encagaçado e tremebundo, ele recuou:
– Retiro o que disse, vizinho. Retiro o que disse.
Eis o que eu queria dizer: a frase que circula até hoje na família pode explicar o recuo de Trump.
Retiro o que disse
O inquilino da Casa Branca tachou as eleições que o derrotaram de fraudulentas, sem qualquer prova, e empenhou-se em desmoralizar o sistema eleitoral americano, o mesmo que o elegera há quatro anos. Com retórica hostil e falaciosa, usou as redes sociais para açular um bando de delinquentes armados a invadirem o Capitólio, com o objetivo de impedir a certificação da vitória de Biden, numa operação que resultou em cinco mortes, mais de 50 feridos e quebra-quebra generalizado, além de roubo de computadores dos congressistas e apreensão de armas.
No discurso que fez em frente à Casa Branca para uma turba exaltada e armada, além de uma declaração de amor ‘We love you’, buscou cumplicidade com os manifestantes, vaticinando que “nunca concederiam a vitória a Biden”, dando sentido à ação dos depredadores. Entre eles, havia militantes supremacistas brancos armados do grupo Proud Boys e outros vestidos com camisas “Nós somos Qanon”, uma apologia à organização de extrema-direita para quem Trump é o comandante de uma delirante “luta contra uma rede de pedófilos adoradores de Satanás infiltrados na imprensa e no próprio governo”.
A insensatez criminosa de Trump foi condenada unanimemente por representantes de diferentes instituições, nacionais e internacionais e até por membros do seu próprio partido, além das redes sociais que bloquearam suas contas. A possibilidade de ser chutado pra fora do poder sem concluir o mandato que se esgota em pouco mais de uma semana, a chance de ser incriminado e processado, inclusive corresponsabilizado por 5 mortes, fizeram com que Trump, com o fiofó na mão, afinasse a sua voz. Depois da merda feita, aconselhado por seus advogados, ele mudou seu discurso radicalmente e abandonou seus apoiadores à própria sorte:
– Aos que se engajaram em atos de violência e de destruição, eu digo que vocês não representam o nosso país. Para aqueles que desrespeitaram a lei, vocês irão pagar.
É o caso dele, que desrespeitou a lei. Que pague!
Cadê aquele Trump todo poderoso, agressivo e racista, homofóbico e mentiroso? Foi um prazer inenarrável ver aquela petulância derreter.
Trumpinho de igarapé
A atitude de Trump é o sonho de consumo de Jair, o Trumpinho de igarapé que sempre demonstrou submissão incondicional e vergonhosa ao seu ídolo americano. Por enquanto, ainda rosna aquela retórica falaciosa, jura que a eleição de 2018 na qual foi vitorioso foi fraudada: “Tenho provas em minhas mãos que vou mostrar brevemente” – ele disse num evento em novembro de 2019 em… Miami. Foi o único dirigente de um país que não condenou a invasão ao Capitólio e ainda fez ameaças: “Se o Brasil não voltar ao voto impresso, enfrentará problema pior que nos Estados Unidos”.
Seu ministro de Relações Exteriores, Ernesto Araújo, permaneceu mudo e só muito depois dos acontecimentos, não em nota oficial, mas no twitter, assumiu parcialmente o “retiro o que disse, vizinho”. Declarou que “há que se lamentar e condenar” as manifestações de seus comparsas de extrema direita nos Estados Unidos, mas orientou o FBI a “investigar se houve participação de elementos infiltrados na invasão”. Vai ver, petistas se infiltraram e promoveram o quebra-quebra para culpabilizar Trump.
Bolsonaro e Ernesto Araújo expõem o Brasil ao ridículo no cenário internacional ao seguir caninamente essa eloquência fajuta, fazendo pronunciamentos em nome próprio, que estão muito longe de uma postura republicana.
Que ninguém se impressione com o discurso do Trumpinho de igarapé. O Brasil, que já ultrapassou 200 mil óbitos, é o segundo país do mundo em número de mortos por Covid: Brasil acima de tudo! Perde apenas para os Estados Unidos – America First – com 370.000 vítimas. As almas de mais de 570 mil mortos irão infernizar a vida dos dois. Todo Trump – ouviu Jair? – tem seu dia de Tracajá.
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O entreguista: entregando a camisa do Brasil / O capachildo: jogando com a camisa dos EUA. Ilustração: Taqui Pra Ti