por Maíra Mathias e Raquel Torres, em Outra Saúde
O COMEÇO DO FIM?
O novo ano chegou com notícias muito aguardadas sobre a vacinação contra a covid-19 no Brasil. Na sexta, a Fiocruz e o Instituto Butantan finalmente enviaram para a Anvisa documentos para análise e aprovação do uso emergencial de suas vacinas. A partir disso, a agência tem dez dias para analisar o material e decidir se autoriza ou não os imunizantes.
Mas não há céu de brigadeiro. No caso da vacina de Oxford/AstraZeneca, que será produzida no país pela Fiocruz, os dados completos já foram publicados em revista científica, mas há incertezas relacionadas a eles. Apesar de a taxa geral de eficácia ter ficado em cerca 70%, falta, por exemplo, saber essa taxa em idosos, o que é bem importante para planejar a vacinação (falamos muito sobre todas essas dúvidas no ano passado, como aqui e aqui). Reino Unido, México e Índia já aprovaram o uso emergencial desse imunizante, mas nos Estados Unidos os dados foram considerados insuficientes. A Agência Europeia de Medicamentos (equivalente à Anvisa na União Europeia) prevê concluir sua análise no fim deste mês.
Por aqui, o pedido da Fiocruz se refere ao uso de apenas duas milhões de doses, compradas prontas do fabricante indiano Serum Institute e que serviriam para antecipar o calendário de vacinação para janeiro – sem elas, a previsão seria ter as primeiras doses em 8 de fevereiro, depois de a Fiocruz receber os insumos farmacẽuticos necessários à produção de 100 milhões de doses. E, é claro, bem depois do prazo anunciado por João Doria (PSDB) para o começo da distribuição da CoronaVac, o que pesa um bocado para o governo federal. Caso a Anvisa dê sinal verde para o uso dessas duas milhões de doses, o Ministério da Saúde vai correr para tentar iniciar a imunização em 20 de janeiro, cinco dias antes da data prevista pelo governo de São Paulo. Mas, com a vacina de Oxford, isso só vai acontecer se o Serum Institute antecipar o envio das doses, que por enquanto estão previstas para sair da Índia no próprio dia 20. Jair Bolsonaro até deixou de lado seu papel de incendiador antivacina e escreveu uma carta ao primeiro-ministro da Índia, Narendra Modi, pedindo urgência no fornecimento do imunizante…
O QUE FALTA NA CORONAVAC
Quanto à CoronaVac, as notícias são ao mesmo tempo boas e confusas. Boas porque o pedido de autorização do Butantan veio logo depois da coletiva de imprensa em que o instituto divulgou – após sucessivos adiamentos – uma eficácia de 78% da vacina contra casos leves que precisaram de intervenção médica, e 100% na prevenção de casos graves, moderados ou que precisaram de internação. Mas confusas porque, em seguida, especialistas começaram a apontar problemas. Em geral, as empresas têm divulgado primeiro seus dados via comunicados à imprensa. No caso da CoronaVac, nem isso: as informações foram divulgadas apenas em um pronunciamento encabeçado por Dimas Covas, diretor do Butantan.
Mas o mais complicado é que os números anunciados se referem somente a um recorte do estudo, como explica a ótima reportagem de Fabiana Cambricoli, no Estadão. Segundo o protocolo do ensaio, o desfecho primário (ou seja, o resultado principal a ser observado) era a taxa de eficácia geral, calculada a partir de todos os casos sintomáticos de covid-19 registrados entre os participantes. Mas esse número não foi divulgado. Os 78% e 100% mencionados por Dimas Covas se referem a desfechos secundários (não incluíram todos casos sintomáticos, mas apenas os com características específicas). Como medem coisas diferentes, não podem ser comparados por exemplo aos 95% da Pfizer ou aos 70% de Oxford/AstraZeneca.
O infectologista Esper Kallas, professor da Faculdade de Medicina da USP e coordenador do centro da pesquisa da CoronaVac no Hospital das Clínicas, diz que a eficácia geral dessa vacina deve ser menor que 78%. Dá para ter uma ideia do valor a partir de números ditos ‘de cabeça’ por Covas na coletiva de imprensa. Segundo ele, foram registrados 218 casos da doença, sendo cerca de 60 no grupo que recebeu a vacina. Se for isso mesmo, a eficácia deve ser em torno de 63%. O que não é ruim, especialmente considerando a facilidade de distribução desse imunizante. Mas é importante saber. O secretário de Saúde de SP, Jean Gorinchteyn, disse que os dados completos só vão ser publicizados depois da análise da Anvisa.
E outras questões apareceram depois da submissão do pedido à agência. É que, após concluir a triagem inicial dos documentos, o órgão disse no sábado que estava tudo certo com os da Fiocruz, mas não com os do Butantan. Diante da velha pressão de Jair Bolsonaro contra a ‘vacina do Doria’, o movimento poderia ser visto com alguma desconfiança, como se projetado especialmente para empacar a aprovação. Foi o que o governador de São Paulo deu a entender, ontem, quando em redes sociais pediu “senso de urgência” à Anvisa. Mas ex-presidentes da agência entrevistados pelo Estadão disseram que os documentos faltantes são mesmo básicos. Entre eles: as características da população do estudo (como idade, sexo, raça, peso, comorbidades) e a contabilidade clara de todos os participantes que entraram no estudo e que completaram cada fase. O Butantan já começou o envio dos dados.
TUDO AO MESMO TEMPO
Apesar do esforço do governo federal para correr com a distribuição da vacina de Oxford, a da CoronaVac está mais engatilhada, já que a produção no Brasil teve início em dezembro. Talvez esteja nela a única chance de começar a vacinação no dia 20 de janeiro, como quer o Ministério da Saúde. E a pasta está fazendo o possível para garantir que ela aconteça ao mesmo tempo em todo o país – e não primeiro em São Paulo, nem de forma independente em outros estados. No sábado, o Ministério anunciou a compra de todas as doses produzidas pelo Butantan e um acordo de exclusividade de distribuição da CoronaVac pelo SUS. Com isso, deve centralizar a compra e a distribuição, impedindo a compra direta pelos estados. Segundo comunicado da pasta, todas as vacinas adquiridas ou em negociação que tenham aval da Anvisa seguirão o mesmo caminho.
Mas as coisas ainda estão um pouco nebulosas. Apesar do acordo, o secretário de Saúde de SP, Jean Gorinchteyn, disse que o estado não vai adiar o início da vacinação caso o plano nacional não comece antes do dia 25. Na sexta (antes do anúncio do acordo entre o Ministério e o Butantan), o partido Rede Sustentabilidade pediu ao ministro do STF Ricardo Lewandowski aval para que estados e municípios possam iniciar a imunização por conta própria. Uma decisão deve acontecer até hoje, segundo o Estadão.
A NOVELA DAS SERINGAS
Depois do naufrágio do pregão eletrônico destinado à compra de 331 milhões de seringas – em que só houve lances válidos para 7,9 milhões –, o Ministério da Saúde decidiu requisitar à indústria seus estoques de agulhas e seringas, inclusive de produtos já vendidos a estados e municípios. Mas na sexta o ministro Ricardo Lewandowski, do STF, concedeu uma liminar impedindo que sejam requisitados insumos já adquiridos pelo governo de São Paulo. Aí o governo federal voltou atrás. No mesmo dia, o Ministério informou que a requisição não vai atingir produtos que já estavam negociados com os entes federados.
UMA OU DUAS
Os ensaios com a vacina de Oxford/AstraZeneca não foram desenhados para avaliar a eficácia dela com uma dose única, e sim com um intervalo estabelecido entre duas doses. Mas os dados mostraram uma eficácia relativamente alta (de cerca de 70%) antes de os voluntários receberem a dose de reforço e, com isso, representantes do Ministério da Saúde e da Fiocruz começam a pensar em, ao menos nos próximos meses, vacinar as pessoas com uma dose só. Seria uma forma de alcançar um público maior com menos vacina. Quando mais doses estivessem disponíveis, as pessoas tomariam o reforço. Aliás, a ideia também já foi aventada pelo governo de São Paulo em relação à CoronaVac, mesmo que até o momento não exista nenhum dado sobre essa possível eficácia.
Essa é uma discussão que está em curso em vários países, devido à falta de vacinas suficientes. Não há nenhum consenso. Alguns especialistas consideram que a estratégia poderia valer a pena, sobretudo depois da descoberta da nova variante do coronavírus no Reino Unido, mais transmissível. Nesse caso, a incerteza sobre o grau de proteção dessas pessoas seria compensado pelo fato de que haveria o dobro delas com ao menos alguma proteção. Mas há riscos. “O resultado será ter um número muito grande de pessoas com imunidade parcial, e imunidade parcial é uma ótima maneira de o vírus aprender como escapar de qualquer defesa que estamos tentando criar quando ele encontra alguém que foi vacinado”, exemplifica William Haseltine, ex-professor de Harvard e atual presidente do centro de estudos sobre saúde global Access. Os testes não avaliaram esse tipo de resultado, portanto não se sabe, para cada vacina, os efeitos de períodos muito longos entre uma dose e outra.
LONGO CAMINHO
O início da vacinação em pelo menos 42 países – sendo que 36 deles são desenvolvidos – mostra na prática algo que já sabíamos na teoria: que ele não é nenhuma panaceia. O Reino Unido, primeiro país do ocidente a começar a imunização, é o que vacinou mais gente na Europa até agora (são cerca de 200 mil pessoas por dia). Mas está batendo recorde atrás de recorde de novos casos e mortes, com os hospitais abarrotados e em risco de colapso.
Tudo é lento. Nos Estados Unidos, 21,4 milhões de doses foram enviadas a hospitais e departamentos de saúde no último mês, mas só 5,9 milhões foram aplicadas por conta de dificuldades na distribuição. “O governo federal diz que a responsabilidade de distribuir a vacina é de cada Estado, mas autoridades estaduais e locais reclamam que precisam de mais apoio e não têm estrutura, mão de obra ou recursos financeiros para desempenhar a tarefa, especialmente quando já estão sobrecarregadas com casos e hospitalizações por covid-19″, explica a matéria da BBC. Em alguns lugares, doses estão sendo oferecidas a pessoas aleatórias, fora dos grupos prioritários, para evitar que as vacinas acabem no lixo. Na semana passada, o país registrou mais de quatro mil mortes em um único dia.
Segundo a OMS, não houve ainda nenhum impacto na curva do avanço da doença pelo mundo e, mesmo se tudo der certo, os resultados mais profundos devem demorar pelo menos seis meses para aparecer. No Brasil, o diretor do Instituto Butantan Dimas Covas estima que a queda nos casos e mortes seja sentida a partir de abril, se a vacinação se iniciar agora em janeiro.
AQUI E AGORA
Seguindo uma tendência que já vinha se desenhando de forma muito clara nos últimos meses, a situação brasileira é crítica. Ontem chegamos a uma média móvel de 1.016 mortes diárias (a média dos sete dias anteriores), e um número tão alto não era alcançado desde o dia 10 de agosto. Ao todo, são mais de 203 mil óbitos conhecidos.
Os municípios pequenos tiveram uma explosão de casos e mortes ao longo do segundo semestre de 2020: segundo um levantamento da Folha, enquanto os óbitos no país como um todo cresceram 22%, nas cidades com menos de 20 mil habitantes o aumento médio foi de 503%. Nas menores, com até cinco mil habitantes, a média foi de nada menos que 850%.
No Amazonas, estado que nos forneceu algumas das piores imagens da pandemia no Brasil durante o primeiro semestre, a história parece prestes a se repetir. No sábado havia mais de 400 pacientes com covid-19 na fila de espera por leitos nas redes pública e privada. Em Manaus, o sistema de saúde entrou em colapso novamente e, na sexta-feira, a prefeitura teve que arrumar às pressas mais espaço para enterrar as vítimas. A matéria do UOL diz que, antes da pandemia, a média de enterros na cidade era de 33 por dia; neste sábado, foram 130. Entre abril e maio foram 3,6 mil enterros e, ao longo de dezembro, 1,6 mil. As coisas estão piorando rapidamente: nos nove primeiros dias do ano houve 1,5 mil novas internações por covid-19, e isso é mais do que as 1,3 mil de todo o mês de dezembro.
Justo Manaus, que fez tantos pesquisadores se questionarem sobre uma possível imunidade coletiva em meados de agosto, quando os casos e os óbitos caíam drasticamente apesar do retorno de todas as atividades. Em dezembro, um estudo de cientistas da USP estimou que 76% dos manauaras já tinham tido a doença. O que pode ter acontecido? Para Ester Sabino, que coordenou esse estudo, a imunidade coletiva não significa o fim da doença, mas sim que ela não avança na mesma velocidade de antes. De acordo com ela, outra possibilidade é “as pessoas já tenham perdido a imunidade e os casos de reinfecção sejam muito mais comuns do que se imagina”. Como é muito difícil comprovar uma reinfecção, essa possibilidade não deve ser descartada. Aliás, um entrevistado pelo UOL que tinha acabado de perder a esposa diz: “Em julho, eu e ela passamos rapidinho [pela doença]. Oramos. Mas, desta vez, foi muito rápido. A gente pega dentro de casa, na igreja, na rua. Espalha pelo ar. Chegou a hora, Deus recolhe”.
Mas, segundo o infectologista Júlio Croda, a soroprevalência de 76% é que foi superestimada. Com base nos dados da Fundação de Medicina Tropical Doutor Heitor Vieira Dourado (AM), ele afirma que quase todos os novos casos na cidade são de pessoas infectadas pela primeira vez.
VÁRIAS NOVIDADES
O Brasil já registrou infecções pela variante do SARS-CoV-2 identificada inicialmente no Reino Unido. Depois, cientistas confirmaram o primeiro caso de reinfecção por uma outra variante, que foi registrada primeiro na África do Sul. E Ministério de Saúde do Japão anunciou ontem que detectou, em quatro viajantes brasileiros, mais uma variante distinta. Os quatro são do estado do Amazonas. Não há nenhuma informação sobre se ela seria mais transmissível ou provocaria doenças mais graves.
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foto: Francois Lo Presti/AFP