Paralisada pelo ódio

Por Karina Buhr, na Revista Continente

A florista está apavorada. Acorda e dorme todos os dias com o estalo da cabeça estourando depois de dobrar de tamanho, juízo fervendo no óleo quente das soluções possíveis a curto prazo, decepcionada com os rumos do povoado. O rei matou uns trezentos mil, dando o remédio errado e proibindo o certo, tem uma anotação de tracinhos marcando os números, feito pelo jornaleiro que recolhe a contagem nos hospitais e cemitérios e fica coberta com uma cortina, aberta todo dia às oito da noite. Estão mandando prender nas torres mais altas os quem foram descobertos pelo que acontecia dentro das próprias cabeças, nas costuras dos pensamentos, nas linhas que escreveram pra comunicar o que não cabe dentro do que se aceita, tudo do rei está fora da redoma onde fica o que se tem como certo mas é um mistério, ele segue intacto por cima dos cadáveres.

O círculo mais alto do poder tem o sistema Cristal, batizado por usar as esferas desse material, o mesmo das ciganas, mas as ciganas aqui não têm nada ver com isso, os artefatos foram roubados delas e manipulados, como é costume por essa terra. Pelo cristal os fiscais leem os pensamentos, tudo é catalogado, vai que presta pra usar um dia, as raivas por defesa, que guardam o fogo da convulsão e o espasmo precioso pra sobrevivência em meio mórbido.

A florista está agoniada. Paralisada no ódio e com medo, precisa passar longe de toda bola de cristal, vai saber qual serve a quem. O medo engessa igual a esse ódio, ideal é não sentir um nem outro e pra isso o único jeito é tomar o remédio miúdo do esquecimento, que tem na venda mais antiga. Esquecendo, ela fica como quem não sente, dá um passo e tem que estocar apagamento de memórias, vai deletando as novas sensações, largando empoeiradas em cada prateleira, nada indica que ela vai melhorar e o perigo se aproxima não pela primeira vez, detectores por todos os lados. Todos dão suas cordas pro inimigo poderoso guardar e usar quando quiser, materiais e motivos pra forjar prisões nas torres. Lembrar de não contar pra nenhuma pessoa viva, tentar ajudar sem abrir a caixa dos entendimentos, uma amiga já disse que isso tem um nome, coisa boa não é.

Ódio mortal, ela foi buscar nos livros, achou definição, é uma raiva figadal poderosa, nem do tipo que precisa reluzir no cristal pra ser notada, solta um cheiro forte, os fiscais de muito longe percebem. O rei mata e tortura nos porões e nas vielas e ruas longe da praça central e ruas de castelos. É ele que mata, mas quem tem que procurar as pílulas de disfarce é ela, que de morte só tem a sensação vinda de fora, partindo dela é munição invisível, não de revólver, essa daí é a do rei.

Ela só estava dando um jeito de não explodir a raiva pra dentro amargando tudo de vez, a bile apodrecendo também o que resta de bom, fantasiar pra poder seguir enquanto ele não fosse deposto. Ela não acredita que ele seria, só se fosse por traição de um dos seus, talvez nunca saísse, passasse para quem fosse ele estaria sempre lá, o estrago perpetuado.

O tamanho do rombo é de fôrmas de gigantes esculpidos na violência, todos enterrados em valas coletivas, muitos em pé, já não cabe em terreno algum, em câmaras frias, já não há terra, faz tempo que foi saqueada.

Haja arrodeio, nada indica que vá melhorar, ficou tão cansada que esqueceu de ir atrás dos comprimidos. Pode ser que seja só um pesadelo, está durando porque o sono é pesado e a gente perde as contas quando dorme. Foi espairecer e acabou ainda mais estragada. Recebeu conselhos, arrumou jeito de viver em tempos mais sombrios que outros, mas faz tempo que não se importava muito se não encontrasse. Não quer reinventar nada, o jeito de vender flores, muito menos a si mesma, muito menos empreender, muito mais tristeza e falta de esperança.

E quando as floristas perdem as esperanças é sinal de que as coisas vão demorar muito de melhorar.

Ilustração: Karina Buhr

Enviada para Combate Racismo Ambiental por Regina Moreira.

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