por Raquel Torres, em Outra Saúde
O COLAPSO SE CONFIRMA
Faz pelo menos um mês que uma grande tragédia em Manaus – e mesmo no Amazonas como um todo – se anuncia. Desde setembro e outubro, especialistas já observavam uma tendência de crescimento nos casos e internações e pediam medidas preventivas. Em meados de dezembro, o Hospital Delphina Aziz, referência para covid-19 na capital, já atingira quase 100% da ocupação de seus leitos de UTI. Na rede privada a situação era a mesma. No dia 26 de dezembro – portanto, logo após aquele que costuma ser um dos períodos de maior movimento nas cidades –, um decreto estadual proibiu o funcionamento de atividades não-essenciais por 15 dias, e foi seguido pelos protestos de uma multidão no centro de Manaus. O governo do estado cedeu: shoppings, bares e o comércio em geral reabriram no dia 28.
Naquele mesmo momento, não só os hospitais estavam lotados, como também os cemitérios. Em vez de tomar as rédeas da situação e garantir que os casos não aumentassem, o governo do estado começou a instalar contêineres com câmaras frias para abrigar os cadáveres recolhidos nos hospitais de referência. A prefeitura de Manaus começou a abrir novas covas.
Na última edição da news,alertamos que conseguir um leito de UTI em Manaus já não era garantia de atendimento, pois faltava oxigênio em várias unidades. Na semana passsada, o governo do Amazonas já tinha começado a usar o apoio da FAB para levar cilindros do gás. Mas ontem o problema se agravou e começou a mobilizar a atenção em todo o país (e também da imprensa estrangeira). Talvez a primeira manchete a ilustrar com dureza o que está acontecendo em Manaus tenha sido a da colunista Monica Bergamo, na Folha: “‘Oxigênio acabou e hospitais de Manaus viraram câmara de asfixia‘, diz pesquisador da Fiocruz”.
O governador Wilson Lima, que não teve capacidade para evitar o caos, afirmou que ontem foi o dia mais difícil de sua vida. Disse que o estado fez sua “lição de casa” durante a primeira onda (quando, não nos esqueçamos, o vírus correu solto no estado), mas que agora a situação é “fora do comum“.
A REALIDADE AGORA
“Pensa no pior cenário possível. A situação aqui está dez vezes pior“, disse à BBC, ainda no dia 12, o médico Daniel Fonseca. Ele dirige o grupo Samel, que controla cinco hospitais e centros médicos particulares de Manaus. No El País, um médico do Hospital Universitário Getúlio Vargas (HUGV) diz que os pacientes estavam recebendo uma fração mais baixa de oxigênio do que o necessário, porque os estoques só cobririam algumas horas.
A unidade ficou sem o insumo durante quatro horas ontem. “Colegas perderam pacientes na UTI por causa da falta de oxigênio. Eles ainda tentaram ambuzar (ventilar manualmente), mas foi só para tentar até o último recurso mesmo, porque é inviável manter isso por muito tempo. Cansa muito, tem que revezar os profissionais. Chamaram residentes para ajudar na ventilação manual. A vontade que dá é de chorar o tempo inteiro. Você vê o paciente morrendo na sua frente e não pode fazer nada. É como se ver numa guerra e não ter armas para lutar”, disse outra médica do HUGV, no Estadão.
Os médicos começaram a fazer pedidos na internet para que quem tivesse cilindros em casa doasse aos hospitais. Pode soar estranho, mas há algum tempo pessoas começaram a tentar estocar esses cilindros em seus domicílios, já que os doentes são recusados nos hospitais por falta de leitos.
No mesmo jornal há um relato mais longo de uma dessas médicas residentes, também do HUGV, que não trabalha diretamente com pacientes com covid-19 mas se voluntariou para ajudar na ventilação manual. “Um deles [dos pacientes], de 50 anos, morreu na minha frente. Quando a gente vê que não tem mais jeito, iniciamos a morfina, para dar algum conforto. Tivemos que fazer isso com ele. Demos morfina e midazolam (sedativo). A gente já chorou e não sabe mais o que fazer. Só no Getúlio Vargas, foram pelo menos cinco óbitos pela falta de oxigênio”.
Mais de 700 pacientes devem ser transferidos a outros estados. De início, 235 pessoas serão enviadas a hospitais do Maranhão, Piauí, Rio Grande do Norte, Goiás e Distrito Federal. O problema é que, embora Manaus seja o caso mais crítico no momento, a pandemia recrudesce no país inteiro ao mesmo tempo. Vários estados estão com ocupação de UTIs acima de 70% e até de 80%, e ainda assim não parecem dispostos a reduzir o contágio. Nesse ritmo, talvez não seja tão simples realocar tanta gente.
CORRENDO ATRÁS
O MPF e outros quatro órgãos públicos decidiram pedir na Justiça Federal que a União apresente um plano de abastecimento, promova a transferência de pacientes para outros estados e requisite cilindros, tanto da indústria nacional quanto de outros estados. O documento ainda pede que o governo federal reative usinas localizadas no Amazonas para produzir oxigênio e apoie o estado nas medidas de contenção da covid-19. “A gente tem oxigênio pelo país, a gente não tem uma logística estabelecida porque tem um vácuo no governo federal. As pessoas são tiradas do oxigênio, elas sufocam e morrem. Elas são colocadas em máscaras e essas máscaras duram pouquíssimo tempo. Basicamente é isso”, diz o procurador Igor da Silva Spindola, no Estadão, ressaltando que cabe à União coordenar a entrega do insumo.
Para apagar esse incêndio, a corrida agora é pelo envio de mais cilindros. O transporte é complicado: como há risco de explosão, não é qualquer avião que pode fazê-lo. E, segundo a Procuradoria da República no Amazonas, o fim do oxigênio ontem aconteceu devido a problemas na aeronave que levaria o insumo, identificados pela manhã.
O ministro da Saúde, Eduardo Pazuello,disse que seis aeronaves da FAB vão ser usadas nesse transporte, mas há que se confirmar se isso vai mesmo acontecer. Segundo o Estadão, há menos aviões disponíveis do que deveria, por pura falta de manutenção. “Dos 12 aviões cargueiros Hércules C-130 que a FAB tem, uma média de apenas três ou quatro estão voando. No momento, um está efetivamente em operação e o segundo, saindo da fase de manutenção, possivelmente ainda esta noite, para também fazer o transporte de cilindros de oxigênio de São Paulo para Manaus”, diz a reportagem. No fim da noite, o G1 informou a decolagem desses dois aviões. Ao todo, eles vão transportar 386 cilindros.
A White Martins, que produz oxigênio hospitalar em Manaus, já está com sua produção no limite e mesmo assim só consegue metade da quantidade necessária para atender à cidade hoje. Disse, aliás, que já havia comunicado formalmente a situação tanto ao governo do estado como ao governo federal, solicitando apoio. Segundo a empresa, a demanda cresceu cinco vezes em apenas duas semanas. O volume necessário hoje é de 75 mil metros cúbicos por dia – mais que o dobro dos picos de abril e maio, quando nos chocamos com o colapso na cidade pela primeira vez. E ainda há uma demanda diária de outros 15 mil metros cúbicos no resto do estado.
A empresa afirmou que buscaria o estoque de suas operações na Venezuela. Sim, a Venezuela de Nicolás Maduro. O presidente orientou que sua diplomacia atendesse ao pedido. A remessa está confirmada, mas ainda não sabemos que volume de oxigênio será conseguido nela. Além disso, o governo do Amazonas requisitou o estoque de outras 11 empresas, via notificação extrajudicial. E o governo federal pediu que um avião dos Estados Unidos ajude no transporte.
Os cilindros extras que estão chegando podem ajudar a segurar a situação por alguns dias, mas, como o número de pessoas necessitando de internação não para de aumentar, já existe a preocupação com o que vai acontecer quando essas novas remessas acabarem também.
Verdade seja dita, a falta de oxigênio só confirma o que se sabe desde o começo da pandemia: quando a circulação do coronavírus é muito alta, não há sistema de saúde que dê conta – muito menos em locais onde os serviços já eram precários. Para estancar os novos casos, o governador Wilson Lima finalmente emitiu um novo decreto restringindo a circulação de pessoas e permitindo apenas as atividades essencias nos próximos dias. Será que agora vai vingar?
RESPOSTA-PADRÃO
Eduardo Pazuello tem algumas explicações para o que anda acontecendo em Manaus, e avaliou a situação em transmissão ao vivo com o presidente Jair Bolsonaro. Falou sobre algumas obviedades, como a precariedade na infraestrutura hospitalar, mas também culpou as chuvas. E, é claro: a falta de “tratamento precoce”… Porque tudo poderia ter sido evitado com um fajuto kit-covid. Já o presidente gastou pouca saliva falando do problema na cidade, restringindo-se à defesa da cloroquina.
Pois é. Na mesma live, Pazuello disse que a ciência não comprovou a eficácia do uso de máscaras e do isolamento social. E arrematou, cravando que sol, felicidade, boa alimentação e esporte ajudam a combater a doença.
Em tempo: o Ministério lançou um aplicativo para orientar profissionais de saúde no manejo dos casos. Poderia ser bom, mas é só mais um estímulo à prescrição de remédios sem eficácia comprovada: hidroxicloroquina, cloroquina, ivermectina, azitromicina e doxiciclina.
A prefeitura de Manaus e o governo do Amazonas se renderam. Segundo o Estadão, recomendaram ontem, pela primeira vez, o tal “tratamento precoce”.
O PAPEL DA NOVA VARIANTE
N’O Globo, o médico intensivista Thales Stein chama a atenção para outro fator: uma mudança no perfil das vítimas. “A covid-19 mudou, está evoluindo mais rápido. Estamos vendo um altíssimo número de óbitos em pessoas de 40 e 50 anos, isso não acontecia antes. Só havia complicações entre pessoas com doenças pré-existentes. O número de jovens internados também cresceu bastante”. A diferença é notada por outros profissionais, em outras reportagens. “A gente recebe agora famílias inteiras com comprometimento pulmonar que necessitam de internação de uma só vez. Há também um alto número de pacientes jovens acometidos“, diz a médica Uildeia Galvão.
Sabendo que uma nova variante foi identificada em pacientes do Amazonas, a tentação é a de atribuir logo uma relação direta entre as duas coisas. Ao menos por enquanto, não é possível fazê-lo – não há nada indicando que a variante leve a uma piora dos quadros em qualquer idade. Mas há, sim, algumas indicações de que ela tenha maior potencial de transmissão e de reinfecção. A matéria de Júlio Bernardes, no Jornal da USP, explica o trabalho recente que fez essa descoberta. Se isso se confirmar, é uma preocupação não só para o Amazonas mas para todo o país.
A Fiocruz Amazônia encontrou o primeiro caso confirmado de reinfecção com essa nova variante (e sabemos que o estado faz poucos testes PCR, de modo que não deve ser fácil fazer os sequenciamentos genéticos que confirmem as reinfecções).
NADA DISSO
Se você leu a news de ontem, viu que estranhamos uma discrepância entre o número de seringas que o Ministério da Saúde disse haver nos estados, e o número que as próprias secretarias de Saúde haviam informado anteriormente ao Estadão. Pois durante o dia os governos estaduais reclamaram: de acordo com eles, Eduardo Pazuello enviou dados errados ao STF.
Agora o ministro Ricardo Lewandovski, do STF, determinou que os estados e o Distrito Federal têm cinco dias para fornecer as informações corretas.
NO LAÇO
A Anvisa prometeu discutir no domingo a aprovação da vacinas de Oxford/AstraZeneca e a da CoronaVac. Porém, segundo a agência, ainda falta receber documentos sobre os dois imunizantes. Como se sabe, depois que um fabricante entra com o pedido de uso emergencial há um prazo de dez dias para que o órgão responda. Mas esse prazo é interrompido quando a agência faz exigências – e, se os papéis não forem entregues, há o risco de as autorizações afinal não sairem no domingo.
A propósito: a viagem do avião que irá buscar as doses prontas da vacina de Oxford/Fiocruz na Índia foi adiada mais uma vez. Ia ser na quarta-feira, depois passou para ontem e agora ficou para hoje à noite. Não foi informado o porquê. Coincidentemente, o jornal The Times of India indica que o governo indiano pode ter dado para trás na decisão de exportar essas duas milhões de doses para o Brasil. Segundo a matéria, o porta-voz do Ministério das Relações Exteriores Anurag Srivastava disse ser “cedo demais” para garantir que a Índia vá conseguir disponibilizar esse imunizante a outros países…
PARA LER COM CALMA
Se você acha que o uso de agrotóxicos está restrito ao campo e que, nas cidades, só chegam os resíduos por meio de alimentos, está enganado. Na reportagem d’O Joio e o Trigo, nossa editora Maíra Mathias investiga o uso doméstico de herbicidas como o glifosato. O problema remonta aos anos 1990, quando o Ministério da Saúde passou a aceitar esses venenos como “produtos para jardinagem amadora”. Hoje, um mesmo produto (o glifosato, por exemplo) é considerado pela Anvisa como agrotóxico quando para uso rural, e como “saneante domissanitário” na jardinagem amadora – no mesmo balaio de cosméticos, perfumes e produtos de higiene.
Nas cidades, qualquer pessoa pode comprar esses venenos sem ter que apresentar nenhum documento. Os produtos são vendidos até pela internet, em sites de jardinagem e supermercados. “Tenho uma clientela firme. Hoje em dia todo o mundo está preguiçoso, o serviço aumentou”, comenta um entrevistado que há 28 anos trabalha como “mata mato”, ou seja, fazendo a capina química de quintais e terrenos urbanos. Ele não usa proteção alguma.
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Cova coletiva sendo aberta em cemitério em Manaus, em 21/04/2020. Imagem capturada de vídeo.