Empresário bolsonarista foi beneficiado por transações mediadas por embaixador brasileiro em Nova Delhi, na Índia
Daniel Giovanaz, Brasil de Fato
Correspondências diplomáticas entre representantes do Brasil e da Índia no primeiro semestre de 2020 mostram que o Itamaraty intermediou a negociação para importação de hidroxicloroquina no início da pandemia de covid-19. Essa substância é comprovadamente ineficaz contra o coronavírus, embora Jair Bolsonaro (sem partido) continue incentivando seu uso no enfrentamento à doença que já matou mais de 212 mil brasileiros.
As correspondências foram obtidas via Lei de Acesso à Informação (LAI) pela agência de dados independente Fiquem Sabendo.
O Brasil de Fato consultou especialistas no assunto para entender se os limites de atuação do Itamaraty foram violados nesse caso.
Depois de analisarem o conjunto de correspondências, as juristas ouvidas pela reportagem demonstraram preocupação com a ausência de elementos que justifiquem tamanho esforço para importação de um medicamento ineficaz contra a covid-19. Também não está justificada, segundo as entrevistadas, a menção a determinadas empresas brasileiras e não a outras, que também poderiam estar interessadas no insumo.
A troca de mensagens obtida pela agência Fiquem Sabendo revela, por exemplo, um pedido de 100 quilos de sulfato de hidroxicloroquina por US$ 155 mil, o equivalente a R$ 821,5 mil. Nas correspondências entre autoridades indianas e o embaixador brasileiro em Nova Delhi, Elias Luna Santos, aparece como compradora a Apsen Farmacêutica, empresa de Renato Spallicci, apoiador fervoroso de Jair Bolsonaro (sem partido).
Em redes sociais como Facebook e Instagram, Spallicci fazia postagens apaixonadas em defesa do capitão reformado e contra o Partido dos Trabalhadores (PT). As publicações sobre temas políticos foram suspensas e apagadas assim que vieram à tona as negociações de insumos com a Índia.
Em uma das mensagens, o embaixador em Nova Delhi cita diretamente o relacionamento da Apsen com o laboratório indiano IPCA Laboratories e busca exceções para um dos pedidos, já que naquele momento havia barreiras para a exportação da cloroquina pelo país asiático.
“Seguindo nossa conversa por telefone, o governo do Brasil pede para o governo da Índia para que garanta ao nosso país uma exceção à proibição corrente na exportação de hidroxicloroquina da Índia. Existe a possibilidade de mudança nas regras que permitam uma exceção. Estamos cientes de que vocês têm uma importante relação de negócios com a empresa brasileira Apsen, que busca concluir o envio dos grandes pedidos negociados com a IPCA Laboratories e continuar a importar a substância de vocês. Entendemos que existia um pedido de 1,330 kg que estava pronta para embarque além de outros pedidos totalizando 25,355 kg”, diz o texto.
Em abril, a empresa triplicou a produção de Reuquinol, medicamento à base de hidroxicloroquina.
Bolsonaro fez propaganda do Reuquinol em transmissões ao vivo pelas redes sociais, apresentou o medicamento na cúpula do G-20 em março, e foi flagrado “oferecendo” uma caixa do remédio de seu apoiador para uma ema nos jardins do Palácio da Alvorada.
Interesse nacional?
Professora de Direito Internacional da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e membro da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD), Larissa Ramina pondera que uma intermediação ou autorização especial do governo brasileiro para aquela transação pode ter sido imposta pelo próprio governo indiano em razão da existência de restrições para a exportação daquela substância. No entanto, o interesse nacional precisaria ser justificado.
“O governo não justifica as razões pelas quais está interferindo na compra de uma substância – ineficaz no combate à covid – em nome de determinadas empresas e não de outras. E não explica por que a compra não seria governamental, caso o foco fosse o combate à pandemia”, ressalta.
“Espera-se sempre que o governo zele pelo interesse de suas empresas, no que diz respeito às relações comerciais internacionais. No caso da Índia, não há justificativa para a intermediação do governo na compra de uma substância que não se sabe para que serve, e em que essa intermediação estaria ajudando nos interesses nacionais”, completa a professora da UFPR.
Mais político que sanitário
Nathalia França, mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP) e pesquisadora do Núcleo de Estudos em Tribunais Internacionais da Universidade de São Paulo (NETI-USP), lembra que o Itamaraty não pode demonstrar favoritismo de qualquer natureza por empresas nacionais ou estrangeiras enquanto exerce suas funções.
“As conversas demonstram um desespero para obtenção de um medicamento mais político do que de tratamento sanitário”, analisa. “Os excertos de maior atenção são aqueles nos quais o embaixador Elias Luna Santos menciona diretamente laboratórios e empresas brasileiras como compradoras da substância desejada, sem ter demonstrado se o MRE contatou ou foi contatado por todas as empresas dispostas a adquirir o produto.”
Desinformação
França lembra que a CoronaVirusFacts Alliance, da International Fact-Checking Network, iniciativa conjunta de mais de 70 agências de checagem de fatos em todo o mundo, aponta Brasil e Índia como os dois países que mais contribuíram para uma “pandemia de desinformação” no mundo.
“Sobre a menção direta a empresas brasileiras, inclusive uma cujo dono é apoiador aberto dos ideais do presidente, a presunção é pela correta atuação político-jurídica do Embaixador Elias Luna Santos”, analisa. “Os e-mails demonstram negociações –- em parte, confusas e infrutíferas – facilitadoras da comunicação entre empresas brasileiras e indianas, em nome dos interesses governamentais em produzir o medicamento, bem como a preocupação de resolução de um assunto típico da diplomacia: a exportação e a burocracia aduaneira”.
A emergência sanitária reforçou a necessidade do diálogo e diplomacia para o enfrentamento conjunto da pandemia. Nesse contexto, o Itamaraty tem colecionado derrotas – a mais recente delas na relação com a própria Índia, que atrasou as exportações da vacina Oxford/AstraZeneca para o Brasil.
A pesquisadora do NETI-USP também chama atenção para o interesse nacional não justificado.
“A grande questão aqui é o por que a hidroxicloroquina, medicamento sem comprovação científica de eficácia preventiva ou repressiva contra a doença causada pelo novo coronavírus, sem recomendação da Organização Mundial da Saúde [OMS] e dos demais órgãos nacionais e multilaterais de saúde, era (e ainda é) um interesse brasileiro, mesmo após demonstrados os riscos de morte e nefastos efeitos colaterais do uso do medicamento”, reforça.
Ao analisar o conjunto de mensagens, a especialista diz não acreditar que seja intenção pessoal do embaixador em Nova Delhi exercer qualquer tipo de atuação que extrapole suas funções diplomáticas.
“Se restarem comprovados elementos que denotem uma preferência sem motivo plausível, por empresas brasileiras específicas, seria natural uma investigação por parte do MRE, além dos órgãos internos de apuração de infrações administrativas e penais, para esclarecer tal preferência ilegal”, acrescenta França. “Contudo, apenas pelas comunicações obtidas com base na LAI, não é possível afirmar esse desvio.”
O Brasil de Fato apresentou os questionamentos ao Itamaraty, que não respondeu até o fechamento desta matéria.
Edição: Rogério Jordão
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Imagem: Bolsonaro e a cloroquina, em 19/07/2020. Reprodução redes sociais.