Mutações inglesa, sul-africana e brasileira ampliam poder de infecção e provocaram explosão de mortes no Reino Unido e Manaus. Mas ainda não se sabe se podem driblar vacinação. E mais: fracasso na pandemia amplia onda por impeachment
por Raquel Torres, em Outra Saúde
VARIANTES DE ALTO RISCO
O Centro Europeu de Prevenção e Controle de Doenças publicou ontem um relatório sobre o risco das três variantes mais célebres do SARS-CoV-2 encontradas até agora: as que foram identificadas no Reino Unido (B.1.1.7), na África do Sul (501Y.V2) e no Brasil (P.1). O documento afirma que, segundo as informações disponíveis até agora, a circulação delas leva a um risco elevado do aumento do número de infecções na Europa e, como consequência, das internações e mortes. A diretora do Centro, Andrea Ammon, disse que todos os membros da União Europeia devem preparar seus sistemas de saúde para o crescimento da demanda; que devem ser evitadas viagens não-essenciais; e que os governos precisam acelerar o ritmo de vacinação.
O que está acontecendo? Sabemos que os vírus sofrem mutações o tempo inteiro. Na maior parte das vezes, essas mutações não vão representar nenhuma vantagem evolutiva, então não são preocupantes. Mas quando uma mutação torna o vírus ‘melhor’ – fazendo com que fique mais transmissível, por exemplo – , então isso se torna um problema para nós. A matéria do STAT explica que, no começo da pandemia, por toda parte havia muita gente suscetível a pegar o SARS-CoV-2, então ele tinha sempre boas chances de se dar bem. Por isso, nessa época as mutações não faziam muita diferença. Mas quando o número de pessoas com alguma resposta imunológica a esse vírus vai aumentando (seja porque se infectaram, seja porque foram vacinadas), isso dá às variantes mais transmissíveis uma vantagem muito importante para que o vírus continue se espalhando.
As três variantes que estão preocupando mais os cientistas têm semelhanças entre si, e um ponto importante é que, apesar de terem surgido independentemente uma da outra, elas compartilham algumas das mesmas mutações, o que sugere que essas mutações devem oferecer vantagens evolutivas.
IMPACTOS NA VACINAÇÃO
Novas variantes podem ter três impactos: na taxa de transmissão do vírus, na gravidade da doença provocada e na capacidade de resposta do nosso sistema imune. Nenhuma dessas principais variantes parece gerar qualquer mudança na gravidade da covid-19, mas já há evidências de que as três podem ser mais transmissíveis. E, embora isso não seja muito intuitivo, para nós é pior ter um vírus mais transmissível do que mais mortal. Sabemos que o crescimento desse coronavírus é exponencial; mesmo com uma letalidade baixa, se ele se espalhar ainda mais rapidamente do que já estamos acostumados há grandes riscos de termos hospitais abarrotados e muitas mortes. “Na verdade, mesmo uma variante 30% mais transmissível pode ser muito pior do que uma variante 30% mais mortal”, deduz Christian Yates, professor da University of Bath, no site The Conversation.
A principal pergunta agora é: o quanto essas variantes podem prejudicar a nossa resposta imunológica? É preciso saber, porque isso pode aumentar as reinfecções – jogando por terra, de uma vez por todas, a ideia de obter imunidade coletiva via infecções naturais – e, pior ainda, pode prejudicar a vacinação. Ainda não há uma resposta robusta, mas as pesquisas recentes sugerem que poderemos ter problemas. Dois novos estudos conduzidos na África do Sul e publicados online ontem (veja aqui e aqui) mostraram que mutações como a E484K (presente também na variante brasileira) fizeram com [que] vários dos anticorpos de quem já tinha tido covid-19 antes não reconhecessem ou neutralizassem o vírus. Foram estudos feitos em laboratório, e não observando a propagação do vírus no mundo real, mas ainda assim as descobertas preocupam. Lembramos que, recentemente, uma pesquisa do Cadde (Centro Brasil-Reino Unido de Descoberta, Diagnóstico, Genômica e Epidemiologia de Arbovírus) sobre a variante brasileira também apontou que poderia haver maior potencial de reinfecção, e essa pode até ser uma das explicações para a nova alta nos casos em Manaus.
Não está claro se isso terá impacto nas vacinas conhecidas. Um estudo publicado nesta terça mostrou que as mutações ligadas à variante da África do Sul causaram apenas uma queda “modesta” na potência dos anticorpos gerados pelas vacinas de RNA – da Pfizer ou da Moderna. Como essas duas vacinas têm uma eficácia geral muito alta, talvez na prática o prejuízo não seja tão grande. Também há que se levar em conta que a resposta imunológica não é feita exclusivamente pelos anticorpos. Já falamos bastante por aqui sobre as células T, essenciais para a prevenção de novas infecções, e nenhum dos estudos até agora deu conta de entender como a resposta dessas células é afetada pelas variantes. Ou seja: é urgente seguir investigando.
DE GRÃO EM GRÃO
O governo indiano finalmente autorizou a exportação de vacinas contra a covid-19, possibilitando que duas milhões de doses do imunizante de Oxford/AtraZeneca venham para o Brasil. Elas devem chegar hoje à tarde e seguirão para a Fiocruz, onde passarão pelo controle de qualidade e etiquetagem. A Índia segurou as remessas até começar a imunizar sua própria população, o que aconteceu na semana passada.
Apesar de a notícia ser boa, essa quantidade de doses é muito pequena; mais importante mesmo é a remessa da matéria-prima necessária para o Instituto Butantan e a Fiocruz produzirem as vacinas aqui. Como se sabe, esse ingrediente ativo está na China. E, quanto a isso, a embaixada do país no Brasil informou que fará “máximos esforços” para avançar no envio. A ver.
O chanceler brasileiro, Ernesto Araújo, está sem conversar com a embaixada chinesa desde o ano passado… E, segundo a Folha, Jair Bolsonaro só soube disso ontem. O diálogo foi suspenso ainda em março de 2020, depois que Eduardo Bolsonaro fez tuítes raivosos sobre o embaixador Yang Wanming, foi respondido na mesma medida e Araújo tomou suas dores. “Segundo assessores, apesar da posição ideológica, o presidente considerou que o Ministério das Relações Exteriores não poderia ter rompido o diálogo”, diz a reportagem, afirmando que, embora em público o presidente defenda seu ministro, já indicou a seus assessores que não pretende mantê-lo por muito tempo.
Já o ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, finge que não há problema algum. De acordo com ele, os países estão em negociação diplomática e a embaixada “vai ver onde está o entrave e ajudar a destravar”. Mostrando-se despreocupado, ele afirmou ontem que nas próximas semanas vai haver uma “avalanche” de laboratórios apresentando suas propostas para vender vacinas ao Brasil. “Temos que ter atenção e muito cuidado para colocar todas elas disponíveis o mais rápido possível dentro da segurança e eficácia, e na nossa capacidade de colocar no lugar certo e na hora certa”.
Ninguém sabe de que avalanche ele está falando, mas a União Química continua empenhada em conseguir a aprovação da Sputnik V no país. É complicado porque não foram feitos testes de fase 3 para esse imunizante no país (condição necessária, segundo as regras da Anvisa, para que a autorização emergencial seja concedida); no entanto, o presidente da empresa espera convencer a agência com o argumento de que países como a Argentina e o Paraguai já aprovaram o uso emergencial do imunizante. Hoje ele deve se reunir com representantes do órgão regulador.
Das vacinas que ainda não tiveram seus resultados anunciados, pelo menos uma chama a atenção: a da Janssen, divisão farmacêutica da Johnson & Johnson, que tem ensaios de fase 3 no país e deve anunciar seus dados nas próximas semanas. O interessante dela é que está sendo testada em dose única e pode ser acondicionada em geladeira comum. Até onde sabemos, o Brasil não tem nenhum acordo com a empresa, mas Pazuello declarou no início do mês que o governo faria uma compra. Porém, segundo ele, só poderiam ser oferecidas três milhões de doses a partir de abril ou maio.
O INCÊNDIO
As doses que chegarão ao Brasil vindas da Índia foram produzidas pelo Instituto Serum, maior produtor de imunizantes do mundo. Ontem um incêndio atingiu parte da fábrica e matou ao menos cinco pessoas. As vacinas, porém, não foram afetadas.
EFICIENTE EM DESTRUIR
O Conselho Federal da OAB denunciou o governo Jair Bolsonaro à Comissão de Direitos Humanos da OEA pela má condução da pandemia no país. O documento pede que a Comissão investigue as ações realizadas e reconheça a violação de direitos humanos. A OAB ainda pede a imposição de uma série de medidas que o governo federal deveria cumprir com urgência, como a elaboração de um plano eficaz para a gestão do sistema de saúde.
E a bancada do PCdoB na Câmara vai protocolar uma notícia-crime no STF pedindo que Bolsonaro e Pazuello sejam investigados pela prática dos crimes de prevaricação e de expor a vida de outras pessoas a risco. O documento faz referência à crise dos cilindros de oxigênio no Amazonas e à recomendação de “tratamento precoce” contra a covid-19.
Não faltam argumentos que justifiquem um processo de impeachment contra o presidente Bolsonaro. A lista só fez crescer nos últimos dias, com a morte de pacientes por falta de oxigênio e com as trapalhadas do governo federal quanto ao planejamento da compra e distribuição de vacinas. A Folha elencou 23 situações em que as atitudes de Bolsonaro podem ser consideradas crimes de responsabilidade. “Quando a gente olha uma atuação deliberada, reiterada, coordenada, uma ação ‘pró-pandemia’, temos claramente um crime de responsabilidade, uma vez que o governo está agindo completamente, e não eventualmente, fora do esquadro constitucional”, diz Eloísa Machado, professora de direito na FGV-SP.
O termo que ela escolheu usar – “pró-pandemia” – não é nem um pouco despropositado. Reportagem do El País resume uma pesquisa da USP e da ONG Conectas Direitos Humanos mostrando que as ações do governo constituíram exatamente isso: uma “estratégia institucional de propagação do vírus“. Os pesquisadores analisaram mais de três mil normas federais produzidas no ano passado e concluíram: “Os resultados afastam a persistente interpretação de que haveria incompetência e negligência de parte do governo federal na gestão da pandemia. Bem ao contrário, a sistematização de dados, ainda que incompletos em razão da falta de espaço na publicação para tantos eventos, revela o empenho e a eficiência da atuação da União em prol da ampla disseminação do vírus no território nacional, declaradamente com o objetivo de retomar a atividade econômica o mais rápido possível e a qualquer custo”.
Em tempo: a proteção do procurador-geral da República Augusto Aras a Pazuello e Jair Bolsonaro gerou mal estar no STF, diz o Estadão. Aras afirmou que caberia ao Legislativo analisar “eventuais ilícitos que importem em responsabilidade de agentes políticos da cúpula dos Poderes da República” e, segundo a apuração do jornalista Breno Pires, os ministros da Corte consideraram essa manifestação “um desastre”. “Não se pode lavar as mãos, não é? O que nós esperamos dele (Aras) é que ele realmente atue e atue com desassombro, já que tem um mandato e só pode ser destituído, inclusive, pelo Legislativo”, declarou o ministro Marco Aurélio Mello. Ontem Pazuello apresentou esclarecimentos à PGR sobre sua atuação na crise de Manaus; agora, é ver o que Aras vai fazer com isso.
TIROU DO AR
Depois de tantas críticas recebidas, o Ministério da Saúde tirou do ar o aplicativo TrateCov, que orientava a prescrição de kit-covid para praticamente todo mundo. O melhor é a justificativa da pasta para o funcionamento bizarro do app: em nota, afirmou que ele havia sido “invadido e ativado indevidamente”: “Informamos que a plataforma TrateCOV foi lançada como um projeto-piloto e não estava funcionando oficialmente, apenas como um simulador”. Eduardo Pazuello havia lançado o aplicativo em Manaus no dia 14, ao mesmo tempo em que o Ministério o divulgou em seu site e em todas as suas redes sociais.
NOVIDADES NA COVAX
Ontem comentamos que, com a posse de Joe Biden, os Estados Unidos provavelmente entrariam na Covax Facility, o consórcio internacional que tenta viabilizar uma melhor distribuição das vacinas no mundo. De fato, o novo governo anunciou sua adesão à iniciativa, o que foi comemorado com boa dose de alívio. “[A participação dos EUA] dará à Covax grande injeção positiva de dinheiro e acesso ao estoque existente de vacinas. E, através do uso de autoridade governamental para obrigar a produção e a transferência de tecnologia, será possível fazer grandes avanços para aumentar o estoque de vacinas para o mundo”, espera Suerie Moon, co-diretora do centro de saúde global do Graduate Institute, em Genebra.
Ainda sobre a Covax: a Pfizer e a BioNTech concordaram em fornecer sua vacina, segundo fontes ouvidas pela Reuters. Não sabemos o preço a ser cobrado nem a quantidade de doses disponibilizada, mas um acordo deve ser anunciado hoje.
MAIS ISOLADOS
O governo Joe Biden também anunciou seu rompimento com a cruzada anti-aborto promovida por Donald Trump. Os Estados Unidos vão deixar de vetar termos como ‘direitos sexuais’ nas resoluções internacionais, apoiando ações em educação, saúde e direitos reprodutivos. Vão ainda voltar a financiar organizações que trabalham com esses temas. A guinada indica que o país vai deixar a aliança internacional contra o aborto – aquela que tem a participação entusiástica do Brasil e cerca de 30 países, como Iraque, Polônia e Arábia Saudita (no UOL, o jornalista Jamil Chade recupera a trágica memória dessa construção). O governo brasileiro ficará, portanto, mais isolado nessa ofensiva.