Jesem Orellana: ‘Quem opta pelo controle da epidemia dentro do hospital opta pela morte, e não por salvar vidas’

A crise que explodiu na semana passada na cidade de Manaus por conta da falta de oxigênio medicinal para manter vivos os pacientes internados com covid-19 colocou em evidência problemas que se arrastam desde muito antes de a pandemia do novo coronavírus chegar ao país, bem como os equívocos relacionados à gestão dessa crise em vários níveis. É o que diz o epidemiologista Jesem Orellana, do Instituto Leônidas e Maria Deane, a Fiocruz Amazônia, que vinha alertando para a iminência do colapso do sistema de saúde em meio ao que ele considera ser uma segunda onda de casos do novo coronavírus no estado do Amazonas já há algum tempo. Questões relacionadas ao acesso desigual a serviços de saúde e à desigualdade social em Manaus, ao fraco controle social no SUS, à corrupção, à baixa adesão da população às medidas de isolamento social – muito por influência de um discurso negacionista sobre a gravidade do problema, inclusive no âmbito científico -, e uma “nítida e indiscutível ineficácia na gestão” da crise, somaram-se para compor um cenário trágico, que para ele não pode ser explicado apenas pela falta de oxigênio medicinal

Por André Antunes, EPSJV/Fiocruz

Como a crise a que assistimos no Amazonas poderia ter sido evitada?

O que acontece para a gente observar esse cenário que termina com essa crise do oxigênio medicinal? É importante ter atenção para essa palavra “termina”, porque vamos pensar numa cascata de acontecimentos sequencialmente ordenados, e que se iniciam, inclusive, antes da epidemia. Nós estamos falando de determinantes sociais e de acesso a serviços de saúde que são anteriores à epidemia. Estamos falando de um processo complexo de corrupção na área da saúde, corrupção recente, inclusive, que tem investigações da Polícia Federal e do Ministério Público Federal, como a Operação Sangria, em curso, que nasceram dentro da epidemia. E também de um fraquíssimo controle social. Nós temos esses elementos pré-epidemia que tornam o cenário de Manaus amplamente favorável não só a qualquer crise causada por doença infecciosa, mas a vários problemas de saúde pública. Deveríamos ter uma participação, por exemplo, do Conselho Municipal, do Conselho Estadual de Saúde, do Conselho de secretários municipais e estaduais de saúde ajudando a fazer o Sistema Único de Saúde e a dar uma resposta mais adequada em termos de saúde pública. Mas isso não acontece. Temos o problema de acesso desigual a serviços de saúde e a grande desigualdade social, marcada pelos 53% da população de Manaus que vivem em condições de moradia precária, que o IBGE chama de aglomerados subnormais, as palafitas, favelas, invasões, etc. Então, você pega esses elementos pré-epidemia e junta a eles uma nítida e indiscutível ineficácia na gestão, a baixa adesão da população às medidas necessárias à mitigação do novo coronavírus, fortemente influenciadas pelo discurso negacionista da gravidade da epidemia, inclusive em âmbito científico. Há um conjunto de elementos que ajuda a explicar por que Manaus conseguiu chocar a humanidade por duas vezes consecutivas com picos de mortalidade, levando milhares de pessoas a óbito.

A gente precisa fazer uma leitura da epidemia de acordo com o sistema e a forma de gestão vigente no Brasil, que não começou em 2020, mas com a implantação do Sistema Único de Saúde, cuja gestão é tripartite, ou seja, a responsabilidade sempre vai ser compartilhada por governo federal, governo estadual e governos municipais. Portanto,é desonesto, é anacrônico você assumir que a culpa é somente da prefeitura ou do governo estadual ou do governo federal. Por exemplo, você ouvir o presidente e o vice-presidente da República dizerem que não sabiam dos acontecimentos em Manaus, que esses acontecimentos foram surpreendentemente raros e causaram uma surpresa inesperada na população manauara e, de certa forma, na humanidade, é algo completamente descabível. Porque a gente sabe que, por exemplo, toda internação hospitalar é chancelada pelo estado e pelo município, e quem paga essa conta, geralmente, é a União. Então, não tem como você dizer que a União não sabia que o número de hospitalizações vinha aumentando galopantemente desde o final de setembro em Manaus. Como você não imagina que a demanda de oxigênio vai aumentar se você está declarando repetidas vezes, desde novembro, que você está mudando as fases do plano de contingência do estado, que a demanda hospitalar está cada vez maior e que, a qualquer momento, você não vai ter simplesmente como acolher esses pacientes? E é o que acontece em meados de dezembro. Não estamos falando de janeiro de 2021. Em meados de dezembro o governo do Amazonas começa a improvisar leitos. Sabe como? Eles pegam os almoxarifados, transferem para contêineres fora do hospital e improvisam macas e leitos de internação. Fecham leitos clínicos de outras especialidades para abrir leitos clínicos das especialidades de pneumologia, de doenças respiratórias. Ou seja, você cria dois problemas: primeiro, que não vai ter recursos humanos suficientes para lidar com esse tipo de paciente. Você não pode pegar um obstetra e colocar para tratar de doença infecciosa. Ele é médico? Precisa saber? Precisa, mas a especialidade dele não é essa. É igual você assumir que um mecânico pode consertar, ao mesmo tempo, injeção eletrônica e ar-condicionado de um carro. Não é assim que funciona. Então, você dizer que não sabia dessa situação é algo que está cada vez mais claro que não é verdade. Inclusive, a Procuradoria Geral da República começa a envolver diretamente o Ministério da Saúde nessa questão.

Em que medida a nova variante do vírus Sars-Cov 2, causador da covid-19, identificada em turistas japoneses que voltavam da Amazônia pode ter contribuído para esse quadro?

Esse é um ponto importante. Essa cepa foi identificada pelo Ministério da Saúde do Japão. O que significa isso em termos de vigilância genômica laboratorial? É a contraprova da falência da nossa estratégia de vigilância laboratorial e genômica no Amazonas. É como alguém chegar na sua casa e falar assim: “Eu sei que você mora aqui há 20 anos, mas eu vou te dar uma dica: sua casa vai cair sobre a tua cabeça”. Foi quase isso que o Ministério da Saúde do Japão fez. Inclusive, o primeiro caso de reinfecção pelo novo coronavírus relatado na literatura, em um artigo assinado pelo Felipe Naveca como autor principal, se dá com duas cepas diferentes. Você começa a encontrar pistas de que a reinfecção, provavelmente, deve ser maior do que a gente imaginava.

Por quê?

Se você parar para pegar o número de reinfecções documentadas, é um número irrisório: 0,0001% em relação ao que você poderia encontrar. Qual o motivo disso? Os critérios da Organização Mundial da Saúde, apesar de serem bastante confiáveis, ao mesmo tempo, se tornam operacionalmente inviáveis em governos como o nosso. Porque eles pedem que, para fazer uma confirmação de reinfecção, você tenha uma análise filogenética na primeira amostra de PCR, que aguarde uma janela de tempo grande, para depois fazer outro PCR que mostre um resultado não detectável para o RNA viral do novo coronavírus. Depois, mais outra janela temporária, pede outra análise filogenética para comprovar que se tratam de cepas diferentes e não uma continuidade de uma mesma infecção, uma mesma experiência de adoecimento pela covid-19. Se você parar para pensar na situação de Manaus e do Amazonas, em julho de 2020, acredite se quiser, se fez menos de 3,8 mil exames PCR numa população de quase 5 milhões de habitantes. É um número patético, irrisório, que mostra para a Organização Mundial da Saúde que é impossível usar os critérios que ela propõe para confirmar reinfecção em contextos tão precários, de tão fraca que é a vigilância genômica. O que estou dizendo com tudo isso? Que a reinfecção deve ser muito maior do que a gente imagina. Quantos por cento? Não sei, mas, com certeza, não é esse 0,0001%. Ela tem um papel junto com essa nova variante para tornar o quadro mais grave, com certeza; também não sabemos ainda qual a porcentagem de contribuição disso, precisamos estudar, fazer coortes prospectivas para termos um pouco mais de certeza em relação a isso. Mas que ela tem influência, tem.

Já há indícios de que esses casos de reinfecção estejam se espraiando para outros estados a partir do Amazonas?

No momento não temos nenhuma confirmação laboratorial. O que nós temos é uma grande preocupação sobre isso. Eu dei várias entrevistas falando sobre mais um erro do governo federal, em conjunto com o governo estadual do Amazonas: transferir literalmente o problema da epidemia para outros estados. Quando você transfere pacientes excedentes de Manaus para outras unidades da federação do país, você está criando pelo menos três tipos de problemas. O primeiro é que você pode perder a vida desse paciente durante o trajeto Manaus-cidade destino. O segundo é que você pode, eventualmente, perder a estatística desse indivíduo caso ele vá a óbito – já tem casos de óbito de pessoas que saíram de Manaus e morreram em outras cidades. E o terceiro, e talvez mais dramático, é que você pode estar levando a nova cepa para lugares que ainda não tinham contato com ela. E, aparentemente ela tem maior infectividade do que as cepas até então documentadas no estado do Amazonas. Isso é algo sobre o que a gente precisa refletir bastante. O nosso principal problema, além da falta de oxigênio, é a falta de anestésico, falta de antibiótico, falta de analgésico para controlar a dor de gente que não consegue respirar sem oxigênio; nosso problema é falta de profissionais de saúde qualificados. O nosso problema principal não é dentro do hospital, está fora do hospital, sempre esteve. E não é só em Manaus, é no mundo todo. A epidemia não pode ser controlada dentro do hospital. Quem foca no hospital está assumindo a política de contar mortos e não de salvar vidas.

Quando você dá entrada numa UTI e é entubado com covid-19, sua chance de sobrevivência é menor do que um terço. Se você não implica a gestão municipal e a gestão estadual a implementarem medidas de controle da epidemia na comunidade, nós vamos continuar enchendo os hospitais de gente, vamos continuar tendo falta de oxigênio, vamos continuar vendo centenas de pessoas serem sepultadas por dia. Aliás, o número de sepultamentos em Manaus hoje (20), ontem (19) e antes de ontem (18) ficou quase cinco vezes maior do que série histórica nos mostra nesse período. Ninguém fala nisso. Sabe por quê? Está todo mundo achando que o problema de Manaus é oxigênio. A Venezuela já mandou oxigênio, os artistas já mandaram oxigênio, a China já mandou oxigênio, o governo federal já mandou oxigênio, pronto, está resolvido. Não está, isso é só uma cortina de fumaça.

Como está a situação atualmente em Manaus em relação à semana passada?

A mesma coisa. Nós continuamos tendo problemas de superlotação nos hospitais, muita gente morrendo em casa. Nesse momento nós estamos com uma média de 27 óbitos em domicílio ao dia, ou seja, por desassistência, muita gente morrendo sufocada em casa. Esse é outro ponto que as pessoas não querem enxergar. Quando a gente noticiou um caso em que seis pessoas morreram simultaneamente dentro do Hospital Universitário Getúlio Vargas, asfixiadas, as pessoas ficaram horrorizadas. Eu fiquei assim: vocês estão horrorizados com o quê? Naquela época era uma média de 12 a 15 óbitos em domicílio. Agora, essa média dobrou praticamente, está em 27. E as pessoas não estão nem aí. Eu não consigo entender. As pessoas se impressionam com seis pessoas que morreram sem oxigênio no HUGV, mas não estão nem aí para as dezenas que morreram só nos últimos cinco dias asfixiadas em casa, sem assistência médica. Isso não está restrito pra nós, em Manaus: ontem (19) nós denunciamos para a imprensa nacional a morte de sete pacientes por asfixia no Hospital Regional de Coari, no interior do Amazonas. A razão: mais um erro do governo estadual no envio de cilindros de oxigênio para a cidade. Teve oxigênio até às 6 horas da manhã, acabou o oxigênio, as pessoas morreram sufocadas.

E quanto a medidas de isolamento social, estão sendo implementadas em meio a essa crise?

Você teria que pegar as imagens de Manaus a você mesmo concluir. Não tem nada de diferente, as pessoas continuam circulando. Tem um decreto com toque de recolher das 7 horas da noite às 6 horas da manhã. Só que esse vírus não é igual um vírus de computador, que é programado para se infiltrar na rede tal, para atacar o e-mail. O vírus corre livremente. Pode até diminuir a circulação dele entre 7 da noite e 6 horas da manhã. E depois? Você acha que ele vai ficar descansando? Ele não para, é incansável. E vou dizer mais: aquelas pessoas que deixaram de ir ao supermercado, que deixaram de fazer compras, que deixaram de fazer uma série de coisas entre 7 da noite e 6 da manhã, não vão deixar de comprar, vão se aglomerar nas padarias, nas farmácias, nos supermercados, nas feiras, no comércio, que ainda funciona. Então, é um tiro no pé. A única solução que nós teremos para Manaus de curto prazo é um lockdown rigoroso, de pelo menos 21 dias, porque aí você consegue reorganizar não só a resposta frente ao controle da epidemia na comunidade, como também do próprio Plano Municipal de Vacinação. Mas ninguém quer fazer isso, ninguém está interessado. A política de contar mortes prevalece, ninguém está preocupado em salvar vidas.

Se esse lockdown tivesse sido feito lá em setembro e, a partir daí, você tivesse outros desdobramentos para dar continuidade à contenção viral, provavelmente nem estaríamos ouvindo falar em tragédia sanitária em Manaus, em nova cepa.

O lockdown é hoje a única alternativa para conter essa crise, na sua opinião?

Não tem outra. O nosso problema não é a questão do oxigênio, o nosso problema é a produção de casos novos de infecção pelo novo coronavirus com essa nova variante na população, que não para de crescer. A pessoa se infecta hoje, daqui a 20 dias ela vai precisar de oxigênio. Não adianta abrir leito, não adianta mandar gente para fora, não adianta trazer oxigênio se você não interrompe a transmissão comunitária. Então, não tem expectativa no curto prazo. A única expectativa que a gente tem é um lockdown rigoroso, que pode começar a ter efeito daqui a duas, três semanas. A gente continua no precipício. Por acaso a gente viu diminuir a demanda hospitalar em Manaus? Não. Você, por acaso, viu diminuir a quantidade de mortos em Manaus? Não. Você, por acaso, viu interromper a contaminação comunitária? Não. Então o problema continua. Só que está todo mundo cego, achando que o problema de Manaus é oxigênio.

O único apelo que eu faço é a gente tentar tirar uma lição dessa experiência de Manaus, não só no Brasil, mas também na humanidade. As pessoas precisam entender, os tomadores de decisão, a sociedade, a ciência, inclusive, ter cada vez mais claro isso na sua narrativa, a gente já tem isso muito claro na nossa prática acadêmica de que epidemia só pode ser controlada fora do hospital e não dentro do hospital. Quem opta pelo controle da epidemia dentro do hospital, opta pela morte e não por salvar vidas. Isso é o mais importante.

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