As dores do mundo no bairro de Aparecida. Por José Ribamar Bessa Freire

No Taqui Pra Ti

“Versos… não. Poesia… não. Um modo diferente de contar velhas histórias”. (Cora Coralina. Poemas dos Becos de Goiás. 1965).

No mundo são mais de 2 milhões de mortos pelo Covid-19. Entre eles, pelo menos 35 moradores do bairro de Aparecida que “está sendo devastado” nas palavras da antenada Edna Morrissey, 80 anos, que lá viveu antes de se radicar em Miami.

No Brasil foram registrados mais de 222 mil óbitos, incluindo aqueles ocorridos nas quinze ruas e treze becos do antigo bairro dos Tocos.

No Amazonas, cujo sistema de saúde entrou em colapso, já são quase 8 mil mortos, alguns asfixiados por falta de oxigênio, no meio deles o músico Arnaldo Marques, morador da rua Alexandre Amorim.

Em Manaus, segundo o gen. Ridauto Fernandes, assessor do Ministério da Saúde, 320 pacientes já foram transferidos para outros estados, mas 612 aguardam na fila e podem “morrer na rua”. Quantos deles nas ruas e becos do bairro de Aparecida?

– “A única solução é a transferência de 1.500 pacientes das unidades de saúde do estado para outros estados. […] Não vou montar 1.500 leitos de UTI nunca em Manaus” – declarou o titular do Ministério da Saúde, gen. Eduardo Pazzuelo, o sargento Pincel, que não consegue justificar sua omissão e quando abre a boca só fala bobagens cloroquinadas.

Quem são os responsáveis pela ausência de uma política de saúde que poderia ter evitado tantas mortes? Em um país sério, os consumidores de leite condensado, de alfafa e de chiclete que custaram milhões aos cofres públicos em plena pandemia, seriam responsabilizados e punidos. Presidente da República, ministro, governador do Amazonas e prefeito de Manaus mesmo que façam um cambalacho e se aliem com o lado podre e corrupto do país para evitar o impeachment, não poderão fugir do julgamento da História.

Os números assustadores de óbitos no mundo e no Brasil não dão conta de tanto sofrimento. As estatísticas são frias.  É possível, no entanto, avaliar a dor planetária, nacional e local através daquelas mortes mais próximas de familiares, amigos, colegas de trabalho, alunos, vizinhos e conhecidos. A vacina conquistada depois do embate com os negacionistas e terraplanistas, é um fiapo de esperança. Cerca de 31 mil pessoas já foram imunizadas no Amazonas e no bairro, entre outros, Glória Nogueira, 90 anos, Damiana, a Dadá, de 85 anos e Mundica, moradoras do Beco da Indústria. Ufa!

E é para lá que vamos, abrindo as gavetas de lembranças dobradas e amassadas, sempre em busca da infância sustentando a memória, que nos dá força para resistir. Um dos mortos levado há poucas semanas pelo Covid é Francisco Abner, o Lê, filho da dona Teresa e do seu João. Sua prima Astrid Lima, que há muitos anos vive na Itália, mas deixou o coração no bairro de Aparecida, encontrou entre seus papéis um texto antigo que escreveu e que acaba de me enviar. Reproduzo aqui a costura poética feita por ela das recordações que permanecem vivas: lugares, gente, acontecimentos, situações.

Uma loucura

 “As ruas de pedra crua, o joelho sempre ferido, o primeiro beijo, o seu Ceguinho, a Carmem Doida, o padre Marcos, o português Fernando que nós tínhamos certeza não se afastava nunca do seu bar, o medo do Cônego Azevedo antes da reforma do Grupo Escolar onde, era voz corrente, havia um esqueleto além dos seus muros escuros (muralhas, para nós crianças).

“As corridas com os cachorros nos nossos calcanhares, os banhos de chuva embaixo das calhas – cachoeiras de detritos – o último andar do colégio Aparecida, que – se dizia – havia sido permanentemente fechado depois que o elevador despencara matando dois estudantes (poucos ousaram ultrapassar as portas trancadas, desafiando as escadas em ruínas que davam na antiga biblioteca), os papagaios enrolados nos fios, a goiabeira de galhos lisos atrás de casa.

“As famílias do bairro, as brigas memoráveis, os pequenos empurrões entre amigas, o rio, as corridas até a boia no meio da água, os arraiais na Igreja, a primeira comunhão e o medo de cometer pecado entre a primeira confissão e a hóstia consagrada no dia seguinte, a total e absoluta ausência de roubos, a quadra esportiva, as passagens secretas até a Luiz Antony, as velhas casas estreitas, minúsculas, da Bandeira Branca, as enchentes que lambiam as cozinhas com os quintais de rios na Gustavo Sampaio, o seu Aury, que consertava tudo, a dona Pequena fumando cachimbo na cadeira de balanço. Ah, as cadeiras de balanço! Todas as cores: amarelas, verdes, azuis, enfeitando as portas; o seu Osmar e a sua ternura africana.

Não sei o que existe naquele lugar que nos torna ligados a ele desse modo indissolúvel, não sei o que é capaz de marcar a memória com esse fogo perene, não tenho um nome para explicar o que, desse bairro — pedaço de terra, quase lama de rio — permanece em silêncio no lugar mais remoto da nossa alma e que retorna toda vez que perdemos a estrada, que erramos o caminho, que nos sentimos solitários e vencidos. Retorna, nos sussurra um nome, nos recorda um aniversário.

“Aparecida. Aquele lugar nos forja em continuação. Vamos morrer pela mesma causa e, espero, com um meio sorriso nos lábios lembrando do Rubem Rôla nos dando uma piscadinha cúmplice. A Aparecida não é uma doença, é a nossa loucura”.

Morrer de Aparecida

O texto de Astrid dialoga com Morrer de Aparecida, que escrevi aqui no Diário do Amazonas, em 2008. Lá situávamos esse pequeno bairro tradicional de Manaus, próximo ao centro, derramando charme por suas quinze ruas e treze becos. Suas fronteiras estão bem delimitadas. No Sul, o igarapé de São Vicente, o famoso bosteiro, que desagua na baía do rio Negro. Ao Norte, a Matinha, refúgio dos nossos adorados “rivais”. O Oeste, na verdade o faroeste, é território “inimigo” dos bucheiros de São Raimundo. A porta para a modernidade e para o mundo é o Leste: Teatro Amazonas, Av.  Eduardo Ribeiro, Mercadão.

Os becos, de nomes sugestivos como Chora-Vintém, Pau-Não-Cessa, Saco-do-Alferes onde o antigo bairro dos Tocos se escondia, foram cantados no romanceiro suburbano pelo nosso poeta maior Luiz Bacellar, tocando sua frauta de barro:

 “Há tanta angústia antiga em cada prédio! Em cada pedra – nua e gasta”.

Bacellar, doente crônico de Aparecida, só não morreu dessa enfermidade, porque se vacinou de poesia e virou imortal. O olhar amoroso do poeta percorre as casas velhas do bairro, os buracos nos soalhos, os beirais rebentados, as calhas entulhadas pelas folhas fermentadas das mangueiras, os alpendres corroídos, as cumeeiras caídas, as goteiras nos telhados, as fisionomias alquebradas e recolheu para nós “as rugas tristonhas das janelas dolorosas, dos batentes desbeiçados, das velhas portas cambadas de gonzos desengonçados!”.

Os becos do bairro – em alguns dos quais não entram carros – são sobras, restos do espaço urbano, transformado em lugar de residências, cujas fachadas receberam uma injeção de botox. Seus nomes mudaram, porque as funções pós modernas são outras.

Poesia nos becos

Nos “Poemas dos Becos de Goiás e Estórias Mais”, Cora Coralina faz uma declaração de amor à paisagem triste, ausente e cheia de fragmentos dos becos suspeitos de Goiás. Lá, como aqui, eles são espaços de lazer, de festa, de fofoca, de briga, do jogo de dominó e das histórias de mil e um becos:

– “Versos… não. Poesia… não. Um modo diferente de contar velhas histórias”.

São essas velhas histórias que nos matam de Aparecida e, como uma urdidura, nos prendem em sua teia para sempre. Elas nos dão a dimensão da perda sofrida pelo planeta, porque imaginamos que detrás de cada uma delas, no mundo e no Brasil, existem bairros, onde pulsa a vida e residem pessoas queridas, cujas partidas – muitas delas – poderiam ter sido evitadas.

Essa dor que nos aniquila é tema de Dores do Mundo, de Schopenhauer, que li aos 17 anos, emprestado pelo tio Dantas, com uma advertência: “É muito bom, mas pessimista demais”. Escrito no final do séc. XIX, em linguagem clara, o autor interpela o amor, a morte, a arte, a moral, a religião, a política, o homem e a sociedade. A dor – ele escreve – é a regra da vida num mundo que é lugar de penitência. Mas Schopenhauer abre uma janela de esperança: embora a vida não seja nada encantadora, a representação dela, através da arte, especialmente da música, nos ilumina e nos redime. Ainda bem. A arte é a vacina da vida. Nunca pensei que a leitura de um filósofo alemão do séc. XIX feita num beco de Aparecida, pudesse dar sentidos à tragédia que vivemos no séc, XXI.

P.S. – Agradecemos à Regina Cabral Freire e Wander dos Reis, presidente da Associação do Bairro de Aparecida, o envio da lista daqueles que nos deram adeus: Maronilson Ribeiro, Jorge de Lima Pereira, Raimundo Nonato (Moni), Francisco Abner (Lê), André Vital de Moura Buriti, Nancy Teixeira, Rossini Carvalho Tavares, Raimunda Mesquita de Souza, Palmira Ferreira Pinto, Valcira Maria Ibanês (mãe do Raul), Agenor Lima, Carlos Fabricio Teixeira, Raimunda Andrelina da Conceição Matos, Mario Oscar Serrão, Maria Aparecida Colares Barbosa (esposa do Mazito), Sandra Silva Felipe (prima da Sandra Mangabeira), Padre Walter (redentorista), Luis Carlos Bandeira (Gandhi), Amazonilda Gama, João Gama, Maria Margarida Holanda Lemos, Cleomar Tavares, Raimundo da Paes Matos, Arnoldo Batalha, Maria Lindernira Lopes Carneiro, Ivanete Monteiro da Silva (Casinha da Saúde); Rui das Graças Craveiro Pinto; Itiel Batista Rodrigues; João Sidney de Castro, Jair Ferreira Rodrigues (marido da finada Glorinha Angelim), Marcio Tenório (Baco), Ana Milério, Arnaldo Marques,  José do Nascimento.

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