No Taqui Pra Ti
Isaías Baniwa, 53 anos, líder indígena de projeção nacional, nascido lá em Ucuqui Cachoeira, berço da humanidade e “umbigo do mundo”.
Valdomiro Arara, outro líder indígena Baniwa, guardião da floresta, saboreava sempre o mingau de farinha (kamokaa) e de tapioca (mitti).
Valeriano Baré, 78 anos, sábio performático nascido no Rio Preto – Santa Isabel, gostava de contar histórias para seu neto Fidelis Baniwa.
Quintina Tuyuka, 74 anos, dona de mãos mágicas que temperavam como ninguém a quinhapira, o “prato nacional” do Rio Negro.
Nesta semana, nenhum deles pôde dar o seu último adeus. Os três homens estão entre os 953 indígenas mortos no Brasil por Covid-19, com 47.937 casos de infectados pertencentes a 161 povos, segundo a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB). Já ela, sequer faz parte das estatísticas, porque testou negativo para o Covid-19.
A chave para entender essas mortes talvez se encontre no discurso idealizado de Braz França, da nação Baré, um dos fundadores da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn):
– Os nossos antepassados há 500 anos viviam livres e sadios. Se eles vissem a situação em que hoje estamos e a gente pudesse perguntar qual o segredo do bem-estar e da liberdade que gozavam, certamente nos responderiam: Nós não éramos índios.
Desta forma, Braz representa o processo colonial. Não que tudo fosse antes um paraíso, mas não era o inferno em que se transformou. “Índio”, efetivamente, é uma categoria inventada pelo colonizador que invadiu aldeias, escravizou seus habitantes, usurpou suas terras e trouxe epidemias responsáveis pela “maior catástrofe demográfica da história da humanidade”, na avaliação dos pesquisadores da Escola de Berkeley que estudaram o período colonial. Foi aí que mais de mil nações falantes de diferentes línguas foram denominadas de “índios”, numa tentativa de banalizar e apagar as singularidade de cada uma.
O povo do rio
São cinco séculos de resistência – comentou Isaías Pereira Fontes, da nação Baniwa, durante lançamento do livro “Baré: Povo do Rio” no SESC Pompeia (SP), em 2015, após a fala de Eduardo Viveiros de Castro na mesa da qual fazíamos parte. Foi a última vez que ouvi a voz dele que, na segunda-feira (1), faleceu em Manaus, sufocado, lutando contra a Covid-19. Acompanhei sua agonia diária através das mensagens enviadas por Marivelton Baré, atual presidente da FOIRN, que participou também daquela roda de conversa no SESC. Ambos eram tão amigos que costumavam, brincando, assumir a identidade Bareniwa, uma mistura de Baré com Baniwa.
Isaías apresentou os primeiros sintomas em São Gabriel da Cachoeira, foi internado na Unidade de Atendimento Primário (UAPI) do Distrito Sanitário Indígena do Alto Rio Negro e depois transferido para o Hospital de Guarnição. Quando seu estado se agravou, foi removido de avião para Manaus, cujo sistema hospitalar entrou em colapso. Marivelton recorreu ao Poder Judiciário para interná-lo no Hospital Delphina Aziz. Ali morreu o líder que teve papel decisivo na criação de associações indígenas e foi dirigente da NADZOERI – Organização Baniwa e Koripako.
O movimento indígena perde um combatente corajoso e lúcido. A mulher, os dois filhos e um neto perdem o chefe da família. Muitos parentes, que perderam seu líder, esperaram no Cemitério Parque da Saudade para se despedir do grande guerreiro, seguindo o ritual da cultura Baniwa, mas foram impedidos pelos guardas municipais.
– Tá difícil aqui no Rio Negro, todos que são intubados não resistem, são mortes atrás de mortes – escreve Marivelton, que compartilhava com Isaías a diretoria da FOIRN. Essa avaliação ocorreu dois dias antes da morte de Valdomiro Firmino Luciano Arara, também do povo Baniwa.
A quinhapira
O mesmo destino teve na quarta (3) o sábio Valeriano de Jesus Baré no hospital de Santa Isabel do Rio Negro, pranteado por suas duas filhas, por 3 tataranetos, 46 bisnetos e 15 netos, entre os quais Fidelis Baniwa, que herdou do avô o dom de contar histórias. A protagonista de uma delas, que explica o envelhecimento rápido, aparece grávida de um encantado e no seu útero crescia uma cobra que achava que aquela era sua casa. É uma história longa entre tantas outras, uma das quais ajuda a combater o pânico:
– Hoje nos despedimos do vovô que uma vez me disse: o medo é você quem faz, do tamanho que você quiser. Daí em diante busquei vencer meus próprios limites. Somos de alguma forma a sua continuidade. Vovô Vale como era chamado, mestre na contação de causos, vive através de nós, sobrinhos, netos, bisnetos. Que a Luz lhe guie na Paz amigo e avô. Aproveito para dizer a todos que se cuidem, essa doença não é uma gripezinha como falaram os energúmenos.
Esses negacionistas também não sabem e nem querem saber do falecimento, no domingo (31), da Tuyuka Quintina Ramos Marques, esposa do líder Graciliano Marques, Tukano da Comunidade de Caruru no rio Tiquiê, que deixa 6 filhos, 32 netos e 31 bisnetos. Tive o prazer de conhecê-la, em 2003, lá na Estação de Piscicultura do Caruru, na companhia do agrônomo holandês Pieter Van der Veld e da educadora norueguesa Eva Maria Johannessen.
Dona Quintina, mãe de Laura e sogra de Nazareno, tinha pós-doutorado na preparação da quinhapira, “o prato nacional” do Rio Negro: peixe cozido com pimenta, em cujo caldo se umedece o beiju. As formas de preparar são diversificadas, com muitas combinações: quinhapira de peixe com tucupi e caruru, de piraíba com tucupi doce e amarelo, de aracu com pimenta murupi, tucupi preto e chibé de açaí. Uma delícia, muito apreciada pelo conde italiano Stradelli (1852-1926), que depois de “molhar os lábios no molho estonteante das pimentas” trocou a vida num castelo em Borgotaro para viver no Rio Negro.
A castanha kuwaida
Quem provou uma vez a quinhapira preparada por dona Quintina, vicia e fica dependente. É o caso do Pieter, com quem retornei em 2004 e 2005 à Comunidade São Pedro, com direito à parada em Caruru para saborear mais uma vez a inesquecível quinhapira. Dona Quintina, anfitriã generosa, sabia como ninguém preparar o molho apimentado e o beiju branco, fresquinho, ainda mole, tirado do forno por suas mãos abençoadas. Sabor dos deuses.
– Nos meus primeiros anos, fiquei muito tempo em Caruru, trabalhando com Nazareno. Então, regularmente, comia a quinhapira preparada por dona Quintina, uma pessoa simpática, bem humorada, de caráter que não envelhecia – escreveu Pieter ao me noticiar sua morte.
Sabemos o valor da quinhapira que perdemos com a morte de dona Quintina. Ela deixou essa lembrança inesquecível ao paladar, que volta com força, agorinha, que escrevo essas linhas. Que descanse em paz a artista da quinhapira.
Nos momentos de tristeza e de dor, os rezadores Baniwa contam a seguinte história registrada pelo antropólogo Robin Wright, citado por Fabiano Maisonnave na Folha de SP e que vai aqui reescrita:
– Quando uma pessoa querida morreu, todo mundo chorou muito, incluindo os animais. Colocaram o morto no caixão e choraram a noite inteira, até ficarem fracos de tanto chorar. Depois do sepultamento, ficaram lembrando calados e tristes. Um deles pegou, então, uma castanha kuwaida e atirou-a longe, ela girou, girou, girou, voltou e caiu. Aí eles começaram a rir. Ao rir, suas almas regressaram ressuscitadas. Assim trouxe seus corações de volta, trouxe de volta seus corações. Eles rezam sobre a quinhapira, chibé, eles rezam bem.
Estamos precisando mais do que nunca atirar essa castanha kuwaida para atenuar a dor, resgatar a dignidade de nossos mortos e renovar as esperanças na vida. É uma dívida do Brasil com sua História.
P.S.1 – O professor Fábio Santos e o médico Antônio de Pádua Quirino, professor da UFAM que trabalha com atenção à saúde de povos indígenas se reuniram com lideranças do Parque das Tribos, em Manaus, para apresentar um aplicativo que realiza o mapeamento de casos de covid-19 no Brasil. É um instrumento que pode ser de grande utilidade especialmente para os indígenas que vivem em contexto urbano.
P.S. 2 – Tradução e Interculturalidade foi o tema da aula que ministramos na quarta-feira (3) no Curso de Formação Básica de Intérpretes de Línguas Indígenas promovido pela Universidade Federal de Roraima.