Fraternidade e Diálogo: Compromisso de Amor (CFE/2021). Por Gilvander Moreira[1]

Desde 1963, há 58 anos, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), anualmente, durante os 40 dias da quaresma, promove a Campanha da Fraternidade (CF), – de cinco em cinco anos ecumênica a partir de 2000, sob coordenação do Conselho Nacional de Igrejas Cristãs (CONIC), que tem colocado para estudo, reflexão e ação assuntos desafiadores, clamores ensurdecedores no seio da sociedade. Para este ano de 2021, o Tema é “Fraternidade e Diálogo: Compromisso de Amor”. E o Lema: “Cristo é a nossa Paz: do que era dividido, fez uma unidade” (Efésios 2,14).

Na viagem da CFE/2021, a primeira PARADA é para Ver a Realidade. Somos convidados/as a ver que o mundo está marcado por graves e múltiplas injustiças e violências; brutal desigualdade socio-espacial; política de morte ou “necropolítica”, segundo o camaronês Achille Mbembe, que “é a política em que o Estado se julga soberano para escolher quem morre e quem vive. Na lógica da necropolítica, a humanidade do outro é negada. São estimuladas políticas de inimizade. A violência praticada pelo Estado é legitimada e justificada. No caso brasileiro, sinais da necropolítica são perceptíveis em setores da segurança pública que é altamente repressiva e violenta contra pessoas negras e pobres. Da mesma forma, pode-se ver a necropolítica na não regularização dos territórios indígenas, ou quando o governo brasileiro não adota políticas efetivas no combate à pandemia da Covid-19. A necropolítica se volta contra as maiorias falsamente consideradas minorias: juventude negra, mulheres, povos tradicionais, imigrantes, grupos LGBTQI+, todas e todos que, por causa de preconceito e intolerância, são classificados como não cidadãos e, portanto, inimigos do sistema.” (Texto-Base da CFE/2021, p. 29, n. 58).

Estamos sob o governo de políticos fascistas e genocidas; subjugados por uma economia capitalista neoliberal, neocolonial e concentradora de riqueza nas mãos de poucas pessoas e de empresas transnacionais; enfrentamos a devastação ambiental crescente perpetrada por grandes empresas de monoculturas do capim, da soja e do eucalipto, só para citar algumas das culturas praticadas pelos agronegociantes, empresários do campo que com uso indiscriminado de agrotóxicos, em latifúndios, com o uso de tecnologia de ponta e muitas vezes trabalho análogo à escravidão produzem não alimentos, mas commodities para acumulação de capital enquanto promovem a desertificando dos territórios.

Diretora de Saúde Pública e Meio Ambiente da Organização Mundial da Saúde (OMS), a médica María Neira afirma que a pandemia do coronavírus é mais uma prova da perigosa relação entre os vírus e os desmatamentos. Em livro diz ela: “Os vírus do ebola, sars e HIV, entre outros, saltaram de animais para seres humanos depois da destruição de florestas tropicais.” Estamos também no meio de crises múltiplas: interpessoal, familiar, social, institucional, entre outras, que se fortalecem na falta de diálogo, o que reproduz e fomenta muitos ‘vírus’ que adoecem o tecido social, tais como: egoísmo, individualismo, fundamentalismo, consumismo, proselitismo, racismo. Tudo isso alimenta um caldo cultural de violência, intolerância, indiferença e extremismo.

A pandemia da COVID-19 acentuou dramaticamente uma série de problemas humanos no mundo. A humanidade está fazendo a experiência do medo, da impotência, da angústia, da fragilidade, vulnerabilidade, incerteza, da dependência, mas também descobrimos que jamais poderemos voltar à normalidade de antes, pois foi a “normalidade” capitalista que gerou a pandemia. Voltar ao ‘normal’ significa atrair outras pandemias que poderão ser cada vez mais letais. Como ponta do iceberg da injustiça social, estamos no meio de uma realidade capitalista com elevadíssimo número de homicídios por ano, sobretudo, de jovens negros e negras empobrecidos e empobrecidas, que somam 30.873 assassinados só em 2018. O feminicídio está crescendo: em 2018, 4.519 mulheres foram assassinadas, o que equivale a dizer que a cada duas horas uma mulher é assassinada no Brasil. Outra opressão é aquela que se refere à amputação de direitos trabalhistas e previdenciários promovida pelas reformas das leis trabalhista e previdenciária, que não mexeram nos privilégios do judiciário, dos militares e nem da classe política. A rejeição, a agressão e a violência contra as “minorias” se reproduzem cotidianamente: indígenas, LGBTQIA+… (em 2018, por homofobia, 420 irmãos e irmãs nossos/as do grupo LGBTQIA+ foram assassinados). Não nos esqueçamos dos/as estrangeiros/as escravizados/as: “Aproximadamente 12,5 milhões de pessoas africanas foram embarcadas à força nos navios negreiros para serem escravizadas. Pelo menos 1,8 milhão dessas pessoas morreram na travessia do Atlântico” (Cf. GOMES, 2019, p. 19). “Escravização e racismo são cruzes diariamente fincadas entre populações negras e indígenas para a manutenção de privilégios para uma elite bem restrita, que é branca, cuja riqueza, em alguns casos, é originária da escravização de pessoas africanas em tempos passados e que deseja a garantia de sua hegemonia econômica, política e social”, denuncia o profético Texto-Base da CFE/2021, n. 88. Outra forma de dominação se reflete nos altos índices de violência policial e no assassinato de defensores dos Direitos humanos (Em 2017: 156 líderes assassinados no Brasil). E tem ainda a agressão ao meio ambiente: desmatamento e extrativismo ilegais, queimadas, poluição dos rios e nascentes. A violência contra os/as encarcerados/as está sendo brutal. Segundo dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), até julho de 2020: 882.309 pessoas encontram-se em presídios, muitos deles são na prática novos campos de concentração, novos navios negreiros. Para os pobres e negros, a mão de ferro do direito penal e para empresários e políticos o direito processual que prorroga indefinidamente os julgamentos e as condenações, garantindo impunidade. No Brasil há punição em demasia para os pobres e negros e impunidade generalizada para criminosos da classe dominante.

Na segunda parada da viagem da CFE/2021, somos chamados a JULGAR, não de forma moralista, mas com as luzes das ciências humanas críticas analisar a conjuntura, recordar e perceber a mão maravilhosa, cuidadora, solidária e libertadora de Deus agindo na história das pessoas, das comunidades e na sociedade, Deus de todos os nomes. Para quem é pessoa cristã, o Deus que fez Opção pelos escravizados sob as garras do imperialismo dos faraós no Egito, ouviu seus clamores, desceu para libertá-los e marcha com o povo nos processos libertários. Esse Deus conta conosco para que um sonho bom se realize: “Amor e Verdade se encontram, Justiça e Paz se abraçam” (Sl 85,11) e “a Justiça caminhará à frente” (Sl 85,14). Como testemunha do Pai, Jesus Cristo caminhou no mundo sendo solidário com os/as injustiçados/as e incomodando os opressores ao lutar por Justiça. Jesus não só cuidava das ovelhas feridas, mas enfrentava os lobos agressores do rebanho. Por denunciar suas posturas injustas, Jesus foi perseguido por saduceus, que eram os latifundiários-empresários da época, por Herodes e César, representantes do poder político opressor e pelos chefes do poder religioso opressor, Anás e Caifás. 

Para construirmos relações sociais que viabilizem fraternidade social, ecológica, religiosa … exige-se diálogo. Porém, diálogo não pode ser apenas troca de palavras – comunicação – entre duas ou mais pessoas, onde uma fala e a/as outra/s ouve/m e vice-versa. Há falsos diálogos que na verdade são monólogos. E há autoritarismo com o uso de palavras educadas e aparentemente suaves. Como caminho para a paz social, como fruto da justiça, o diálogo precisa ser crítico e criativo, não ingênuo. Os/as discriminados/as e injustiçados/as precisam dialogar em pé de igualdade ouvindo atentamente a realidade, a experiência e os clamores do outro integrante da mesma classe pisada e violentada. De outra forma, o diálogo entre oprimidos e opressores, entre explorados e exploradores, precisa ser diferente. Um sem-terra jamais dialogará com latifundiário ou agronegociante do mesmo jeito que dialoga com um indígena, um quilombola, um negro da periferia, um integrante do grupo LGBTQI+, alguém que possui alguma deficiência física ou mental etc. Como não devemos amar todas as pessoas da mesma forma, não dá para dialogar com todos da mesma forma. O diálogo entre os/as oprimidos/as e injustiçados/as deve ser espaço de partilha e de socialização do que precisa uni-los e organizá-los para travarem conjuntamente lutas libertárias. Por outro lado, o diálogo com opressores e violentadores precisa ser com opção de classe que exige respeito, o que passa necessariamente por arrancar as armas de opressão das mãos dos opressores. Todos os cordeiros que arriscaram individualmente a dialogar com lobos foram devorados. Ao final de um diálogo com um ‘jovem rico” (Cf. Mateus 19,16-22), Jesus Cristo conclamou o ‘jovem rico’ a uma mudança radical de vida: “Vá, venda tudo o que tem e partilhe com os pobres” (Mt 19,21). No templo, não para sacrificar, mas ensinando, ao perceber a falta de verdadeiro diálogo de doutores da lei e fariseus que ameaçavam de morte uma mulher por apedrejamento (Cf. João 8,3-13), Jesus de Nazaré, em diálogo autêntico, em postura de quem não condena e nem julga, conclamou a autocrítica e defendeu a mulher ameaçada: “Quem de vocês não tiver pecado, atire nela a primeira pedra” (Jo 8,7).

Na terceira parada, no Agir, a CFE/2021 nos convida a promover o diálogo ecumênico e inter-religioso, a superar os fundamentalismos e dogmatismos; a superar a violência contra religiões de matriz africana, contra mulheres, contra irmãos/ãs LGBTQIA+. Nas relações com irmãos e irmãos de outras igrejas e religiões precisa existir não apenas tolerância ou compreensão, mas RESPEITO. “Exigimos respeito e não apenas tolerância ou compreensão”, dizem de forma pertinente nossos irmãos/as espíritas, pais e mães de santo do Candomblé e da Umbanda. “O orgulho religioso levanta muros” (Texto-Base da CFE/2021, n. 133), mas o conhecimento do outro gera amor e respeito, o que edifica pontes humanizadoras. Convida-nos também a cuidar da Casa Comum lutando para construirmos uma Sociedade do Bem Viver e Conviver, o que implica superar o sistema capitalista, máquina de moer vidas, e os mitos do progresso e do desenvolvimento econômico só para uma minoria, o que tem aprofundado o abismo da desigualdade social.

O profeta Isaías denuncia a hipocrisia religiosa: “Mesmo quando estão jejuando, vocês só cuidam dos próprios interesses e continuam explorando quem trabalha para vocês” (Isaías 58,3). Isaías aponta o que precisa ser verdadeiro jejum, ou seja, a essência da dimensão religiosa: “acabar com as prisões injustas, desfazer as correntes do jugo, pôr em liberdade os oprimidos e despedaçar qualquer jugo, repartir a comida com quem passa fome, hospedar em sua casa os pobres sem abrigo, vestir aquele que se encontra nu e não se fechar à sua própria gente” (Isaías 58,6-7). E, assim, “não é possível estar com Deus e, ao mesmo tempo, discriminar e desrespeitar as outras pessoas por causa das suas diferenças étnicas, religiosas ou de gênero”, diz o Texto-base da CFE 2021, n. 125. Enfim, cultivar afetos e derrotar todas as formas de violência. Eis o que a vida, o Deus invocado sob tantos nomes, Jesus Cristo revolucionário e a CFE/2021 pedem de nós.[2]

Referência.

GOMES, Laurentino. Escravidão. Do primeiro leilão de cativos em Portugal até a morte de Zumbi dos Palmares. Vol 1. Rio de Janeiro: Ed. Globo, 2019, p. 19.

Notas:

[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente da CPT, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH e de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte, MG.

[2] Gratidão à Carmem Imaculada de Brito, doutora em Sociologia Política pela UENF, que fez a revisão deste texto.

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