Banalização do AI-5 está na raiz das ameaças ao STF. Por Camilo Vannuchi

No Uol

O Supremo Tribunal Federal completará 130 anos na próxima semana. Foi somente a Constituição Federal de 1891 que o instituiu. A primeira Carta Magna concebida sob regime republicano, quinze meses após o fim da monarquia, foi promulgada em 24 de fevereiro daquele. A sessão inaugural da Corte ocorreu quatro dias depois, em 28 de fevereiro.

Ao longo desses 130 anos, o STF nunca foi fechado. As investidas contra ele, no entanto, foram muitas. A mais bem sucedida culminou na aposentadoria forçada de três ministros, seguida da renúncia de outros dois, nos primeiros dias de 1969. “Hermes Lima, Victor Nunes Leal e Evandro Lins e Silva eram considerados de esquerda pelos militares”, justifica artigo sobre o episódio publicado no site oficial do Supremo. “Ao ouvirem, pela Voz do Brasil, o ato de cassação, outros dois ministros saíram por discordarem da aposentadoria compulsória: o então presidente da Corte, Gonçalves de Oliveira, e aquele que seria seu sucessor na presidência, Antônio Carlos Lafayette de Andrada”.

Eram tempos sombrios, ainda mais nebulosos desde a edição do Ato Institucional número 5, popularmente conhecido como AI-5, em 13 de dezembro do ano anterior. Instrumentos por meio dos quais o Poder Executivo se arvorava a legislar, surrupiando do Parlamento a prerrogativa da função, os atos institucionais serviam aos desígnios do governante supremo de uma terra em transe. Com um agravante: diferentemente dos decretos, largamente utilizados nos dias de hoje, os atos institucionais estavam acima de toda a legislação e também da Constituição Federal. Entre abril de 1964 e dezembro de 1969, foram decretados 17 atos institucionais. O número é sugestivo. Foram editados como uma forma de conferir certo verniz de legalidade ao absolutismo. Se não está na lei, a gente faz a lei.

O mais despótico desses atos institucionais foi o quinto, formulado pelo então ministro da Justiça Gama e Silva e decretado pelo general-presidente Arthur da Costa e Silva com um total de 17 assinaturas. O número, mais uma vez, é sugestivo. Além do autógrafo presidencial, o documento trazia as assinaturas de dezesseis ministros de Estado. Delfim Netto, Mário Andreazza, Jarbas Passarinho e demais próceres da ditadura cada vez menos envergonhada, incluindo os titulares da Saúde, Leonel Miranda, e da Educação e Cultura, Tarso Dutra. Nenhuma mulher, nenhum negro, e, vale anotar, proporcionalmente mais civis do que existem hoje no primeiro escalão do governo.

Numa canetada, o AI-5 conferiu plenos poderes ao presidente da República e distribuiu bordoadas para todo lado. Logo de cara, permitiu ao presidente decretar recesso parlamentar, o que foi feito naquela mesma tarde por meio do Ato Complementar número 38. Congresso fechado, deu-se início às cassações. Considerando apenas os parlamentares, foram cassados, num primeiro momento, onze deputados federais em 30 de dezembro e outros trinta e cinco em 19 de janeiro, além de dois senadores nesta segunda data. Até o fim do recesso parlamentar, que se estendeu por dez meses, o número de cassações superou oitenta, somando as baixas nas duas Casas.

O AI-5 ainda teve o condão de autorizar o presidente a decretar estado de sítio e de intervir nos Estados e Municípios sempre que julgar apropriado, “sem as limitações previstas na Constituição”, conforme a letra da nova lei. E revogou o instrumento jurídico do habeas corpus, cassando o direito dos indiciados por crime político ou contra a segurança nacional de responder em liberdade.

A ingerência sobre o Poder Judiciário, em geral, e sobre o Supremo Tribunal Federal, em particular, nunca fora tão grande. Numa manobra anterior, cinco novos ministros haviam sido nomeados para a Corte pelos militares, fazendo o número de votantes aumentar de onze para dezesseis, o suficiente para garantir maioria para a “situação”. A expulsão, sumária ou induzida, de cinco ministros “de esquerda” após o AI-5, completou o cenário de absoluta submissão da Corte perante o arbítrio.

Essa perspectiva histórica é oportuna por diversos motivos. Entre eles, lembrar ao leitor, principalmente aos mais jovens, que foi o regime militar que de fato instrumentalizou o STF, de forma ampla e irrestrita, mudando regras e intervindo descaradamente no funcionamento de um outro poder, do qual deveria ter sido preservada a independência. O resultado foi a quase completa inanição da Suprema Corte naquele período. Com o paradoxo de ter contribuído para legitimar a tese oficial de que as instituições funcionavam regularmente, dentro das regras democráticas.

A principal razão para evocar nesta coluna os abusos instituídos pelo AI-5, no entanto, é observar o quanto sua banalização está intimamente relacionada à recente escalada de ofensas e ameaças ao Supremo e a seus ministros. Permitir ou autorizar a apologia ao AI-5 tem um custo alto para as instituições e para a própria democracia – e em relação a isso o STF pode e deve ser cobrado.

Quando os ministros do Supremo Tribunal Federal decidem, por sete votos a dois, encerrar qualquer discussão sobre a revisão da lei da anistia, como ocorreu em 2010, tal decisão equivale a conferir o selo de constitucional à anistia de torturadores e assassinos, mantendo-os a salvo de julgamento, pena ou sanção. Não foi esse o entendimento da Justiça em países como Chile e Argentina, por exemplo, onde torturadores foram condenados pelos excessos cometidos. Aqui, a decisão tem a simbologia de uma monumental passada de pano. É como se os ministros dissessem: “fiquem calmos, meninos, vocês não serão castigados; apenas não façam mais isso, talquei?”

Quando os ministros do STF entendem que um deputado federal não viola a Constituição ao homenagear o torturador Carlos Alberto Brilhante Ustra, “o terror de Dilma Rousseff”, diante do plenário lotado, nem quando repete frases como “o erro da ditadura foi torturar e não matar” ou “eu sou favorável à tortura, você sabe”, contribuem para a banalização da tortura, do assassinato e, principalmente, desse tipo de discurso, claramente atentatório contra a democracia e os direitos humanos. É como se dissessem: “deixa ele falar, ele tem direito de se expressar, ora bolas”. O perigo está no recado que esse tipo de discurso transmite a setores da sociedade. Soa como salvo conduto, uma versão estapafúrdia de palestra motivacional, para todos os homens de bem que tiverem censo cívico e “culhão” para fazer o mesmo, começando por fuzilar os “viados”, os “travecos”, os “negões” e a “petralhada”.

Quando ministros do STF demoram três anos para se manifestar contra os impulsos totalitários de um militar como o General Villas Bôas, a inação da Corte é rapidamente percebida como fragilidade e, pior, autorização. Em 3 de abril de 2018, na véspera do julgamento do habeas corpus do então pré-candidato Luiz Inácio Lula da Silva, condenado em segunda instância, Villas Bôas publicou um comentário em rede social: “Asseguro à Nação que o Exército Brasileiro julga compartilhar o anseio de todos os cidadãos de bem de repúdio à impunidade e de respeito à Constituição, à paz social e à Democracia”. Na ocasião, não foram poucos os juristas que alertaram para a gravidade daquele tuíte, escrito com a evidente intenção de influenciar a decisão da Corte no sentido de manter a condenação de Lula e decretar sua prisão. Somente agora, quando o episódio é contado em livro, o ministro Edson Fachin veio a público condenar o ocorrido. “Intolerável”, classificou. Outro ministro, Gilmar Mendes, fez coro: “Ditadura nunca mais”, tuitou. Villas Bôas somente ironizou: “Três anos depois”.

É neste contexto que deve ser interpretada a declaração do deputado federal Daniel Silveira. Quando ele grava e divulga um vídeo de 19 minutos xingando ministros do STF, como Edson Fachin e Alexandre de Moraes, afirmando ter sonhado com uma seção de pancadaria sobre um dos ministros, e dizendo-se saudoso do AI-5, o recente histórico de inação da Corte funciona como fertilizante ou anabolizante.

Tivesse o STF exigido respeito às leis e aparado as arestas de outro deputado federal, aquele que é fã do Ustra, e também exigido respeito às leis quando golpistas davam os primeiros passos rumo a um impeachment absolutamente inconsistente, ou, ainda, exigido respeito às leis quando parte significativa da sociedade aplaudia a fraude da Lava Jato, provavelmente o Brasil não viveria hoje o inferno em que foi lançado.

Imagem: RBA

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