Covid-19: Por que há missionários que não querem vacina para indígenas?

Missões evangélicas que atuam em terras indígenas da Amazônia promovem atitudes antivacina em pleno auge da pandemia de Covid-19. Após décadas de controle do atendimento sanitário, utilizado como barganha para a evangelização, missionários enxergam nas agências de saúde pública um concorrente que ameaça seu monopólio. A situação se agrava em terras indígenas no entorno de povos em situação de isolamento: nelas, igrejas recrutam ‘mateiros’ indígenas usados em expedições ilegais de contato com índios isolados, em um contínuo esforço por ampliar a abrangência da missão.

Miguel Aparicio*, no Observatório dos Direitos Humanos dos Povos Isolados e de Recente Contato – OPI

As notícias dramáticas sobre a infecção por Covid -19 invadem nossas vidas há quase um ano. Ao início, contávamos um por um os dias de confinamento acreditando que a pandemia seria superada em poucos meses. Não foi assim, a tragédia brasileira já arrancou centenas de milhares de vidas e o contágio continua em ritmo vertiginoso. Diante do caos, as vacinas surgiram como uma luz no fim do túnel, e o Brasil soube priorizar a proteção dos mais vulneráveis – idosos, profissionais de saúde e indígenas. Sim, depois de mais de 500 anos de disseminação de epidemias que assolaram inúmeras vidas indígenas, nosso país promoveu o acesso preferencial desses povos à linha de frente da imunização. Porém, ainda cometeu o grave erro de excluir da prioridade aos indígenas “não aldeados” – uma discriminação injustificada que desconhece que os povos ameríndios sempre promoveram amplas redes de circulação e intercâmbio, que atualmente operam num constante fluxo entre aldeias e cidades. Como disse Inácio Banawá, “terra de índio é para branco não entrar, não é para índio não sair”. O governo, ainda com uma concepção anacrônica que pensa as terras indígenas como ‘reservas’, segregou com essa medida mais de 40% da população indígena do país.

A chegada das primeiras equipes sanitárias às aldeias, muitas delas em locais de difícil acesso na Amazônia e outras regiões, foi possível graças a essa fantástica plataforma pública que é o SUS, e à capilaridade do subsistema inovador que é a rede de Distritos Sanitários Especiais Indígenas. Homens e mulheres vestem nas aldeias seus melhores ornamentos para receber as vacinas e garantir, uma vez mais, a sua sobrevivência. Ao mesmo tempo, na contramão do que caberia esperar, surgem pelo Brasil afora notícias de aldeias indígenas que resistem à vacinação: fontes confiáveis na mídia e nas redes sociais registram situações preocupantes entre os Tremembé no Ceará, os Tuxá na Bahia, os Xavante em Mato Grosso, os Tukano no rio Negro e os Kaiowá em Mato Grosso do Sul, conforme consta no ofício da Associação Brasileira de Antropologia em colaboração com a Associação Brasileira de Indígenas Antropóloges protocolado no dia 9 de fevereiro na 6ª Câmara da Procuradoria Geral da República.

A região do Médio rio Purus, no sul do Estado do Amazonas, comumente fora da atenção midiática nacional, apresentou nos últimos dias episódios especialmente graves. Através do aplicativo de WhatsApp, informações deturpadas, criminosas, disseminam entre os indígenas atitudes de rejeição da imunização e divulgam falsos episódios sobre efeitos patogênicos – inclusive mortais – que teriam derivado da aplicação das vacinas para Covid-19: “a vacina dá câncer”, “a vacina implanta um chip”, “índios são cobaias para testar vacina de branco” ou “quem tem fé não pega Covid”. Nos grupos de aplicativos de mensagens dos indígenas circulam declarações do pastor Silas Malafaia questionando a imunização, junto com mensagens negacionistas que seguem a tônica das pregações do pastor Edir Macedo em vídeos de ampla circulação nacional: “O mundo inteiro está ajoelhado diante dessa maldição, dessa praga chamada coronavírus. Mas, o pior de tudo é que a maioria das pessoas não sabe que a maior praga não é a coronavírus, é a coronadúvida, e para você enfrentar o coronavírus, que é a coronadúvida, você que está ileso do coronavírus, você tem que estar com o antídoto que é chamado de coronafé”. A ideia que subjaz nestas mensagens é contundente e nefasta: se você tem fé em Deus, você já está protegido.

As equipes sanitárias sediadas na cidade de Lábrea (AM) manifestaram sua inquietação perante as informações de rejeição à vacina procedentes de diversas aldeias Apurinã e de aldeias Paumari do Manissuã, Capanã, Terra Nova e Abaquadi, nos rios Tapauá e Cuniuá. Em um urgente mutirão solidário, líderes do movimento indígena regional, junto com antropólogos, ambientalistas e indigenistas parceiros, se esforçam por disseminar informações sobre a necessidade da vacina e mensagens de incentivo dirigidas às aldeias que rejeitam a imunização prevista para as próximas semanas – os Paumari construíram uma extensa rede de colaboradores para levar adiante suas bem sucedidas iniciativas de manejo de pirarucu que, em 2015, obtiveram reconhecimento através da concessão do Prêmio Nacional de Biodiversidade.

No passado dia 2 de fevereiro a equipe do Distrito Sanitário do Médio Purus partiu de Lábrea num helicóptero da Força Aérea Brasileira para realizar a imunização nas aldeias do povo Jamamadi. De forma ostensiva, indígenas manifestaram sua rejeição à equipe conjunta do DSEI e da FUNAI, que teve que retornar à cidade sem completar seus objetivos. Qual foi o motivo deste episódio surpreendente? Nos últimos anos, a assistência sanitária desse povo indígena teve como maior obstáculo a atuação da Greene Baptist Church, iniciada em 1963 pelo casal missionário norte-americano Robert e Barbara Campbell, e continuada nas últimas décadas pelo seu filho, Steve Campbell. Há sessenta anos, portanto, que a família Campbell implantou sua igreja na terra indígena, determinando as dinâmicas econômicas, rituais e territoriais indígenas. A missão batista estabeleceu fortes laços de dependência que levaram, por exemplo, à concentração de múltiplas aldeias jamamadi num aldeamento missionário central, a aldeia São Francisco – organizada em torno da pista de pouso da missão. Nesses anos todos, a assistência à saúde jamamadi se firmou como a principal estratégia dos pastores norte-americanos: o Deus cristão, através da mão benéfica dos Campbell, garantiria aos Jamamadi a proteção das doenças dos brancos. Durante décadas de controle de medicamentos e meios de transporte aéreo, a cura alopática, camuflada como intervenção divina, foi uma tática eficaz para promover a fé das igrejas fundamentalistas em aldeias da Amazônia. A consolidação das políticas públicas através do subsistema dos Distritos Sanitários Especiais Indígenas e da Secretaria Especial de Saúde Indígena – uma conquista do movimento indígena alcançada há pouco mais de 20 anos – surgiu como ameaça para o monopólio dos missionários, cuja intervenção se enfraquecia com a presença de agentes indígenas da saúde e equipes especializadas de médicos, enfermeiros e técnicos dos Distritos Sanitários. Para a teologia da prosperidade e para a fé privatista, liberal, do evangelismo fundamentalista, a implantação de uma política pública emergia como uma concorrência preocupante. A imunização, resultado das pesquisas científicas e da política pública, não chegou como sinal divino. Afinal de contas, basta a fé, que cura e protege.

A presença da missão entre os indígenas, além de trazer novos crentes para a sua igreja, se tornou estratégica por um outro motivo: os Jamamadi são contratados como ‘mateiros’ – guias de campo nas densas florestas do Purus – para realizar mais um sonho evangelizador: o contato com os Hi Merimã, povo que há décadas mantém um isolamento proativo, em mobilidade constante para fugir do cerco iniciado no auge extrativista do Purus, com o trágico impacto de massacres e epidemias. Os Jamamadi são recrutados pela missão como mão de obra nas expedições que pretendem estabelecer o ‘primeiro contato’ com os isolados. De fato, está em curso desde 2019 uma investigação do Ministério Público Federal sobre as atividades do missionário Steve Campbell por supostas expedições à procura do contato com os isolados Hi Merimã realizadas a partir do território Jamamadi. O pastor Campbell pode ser imputado por genocídio por colocar em risco a vida dos Hi Merimã.

A história se repete, não é a primeira vez que projetos missionários agem desse modo, utilizando indígenas “convertidos” para levar a fé aos isolados. Foi esse o procedimento realizado, por exemplo, pela Missão Novas Tribos Brasil (MNTB) ao recrutar indígenas Waiwai para contatar os Zo’é nos anos 1980, e, mais recentemente, pela Frontier International Mission, ao contratar indígenas Matsés para evangelizar os isolados Korubo no vale do Javari. A política de proteção do direito ao isolamento desses grupos indígenas, consolidada como política de Estado em diversos países sul-americanos (no Brasil, desde 1987), significou um duro golpe para a ação proselitista, como relata um integrante da Missão Novas Tribos:

Estamos vendo as forças do diabo crescendo em todos os lados. O comunismo varrendo o mundo, o islamismo crescendo rapidamente, seitas se multiplicando fenomenalmente, nossa nação decaindo moralmente, os valores cristãos se alterando, portas se fechando, pressões aumentando. Podemos ver Satanás trabalhando para manter as tribos afastadas das Escrituras, Satanás está chegando, com imenso estrondo, pois sabe que é por pouco tempo (Ken Johnston, “The Story of New Tribes Mission”1985, p. 282).

No Purus, os Campbell não foram os únicos missionários empenhados na evangelização dos índios ‘arredios’ e ‘selvagens’. Em 1983, meses depois do contato oficial realizado pelo sertanista Sebastião Amâncio, da FUNAI, uma equipe de JOCUM (“Jovens Com Uma Missão”) iniciava suas atividades entre os Suruwaha, povo que tinha mantido décadas de isolamento após os massacres perpetrados pelas frentes extrativistas que, no início do século XX, dizimaram sua população. Bráulia Ribeiro, uma das integrantes da ‘equipe de contato’ nos Suruwaha, descrevia com as seguintes palavras os seus sentimentos às vésperas da expedição missionária:

Estávamos hospedadas em uma barraquinha de madeira de alguns irmãos da Assembleia de Deus local. Naquela noite na cama emprestada, eu tremi de medo. Parece que só ali, prestes a partir, é que me dei conta do que realmente faria. Tentaria fazer o primeiro contato “civilizado” com uma tribo selvagem no meio do nada. Eles poderiam me matar, comer-me, violentar-me e esquartejar-me; poderiam me cacetar até perder os sentidos, flechar-me, esfolar-me viva, escalpelar-me. A história preferida dos ribeirinhos é que os índios me arrancariam os seios e os espetariam num pau para secar na beira da praia. Por alguma razão mórbida eles gostavam dessa imagem e a repetiam sem parar. Será que Deus estava em aquela loucura? Não terá eu apenas presumido ouvir a sua voz? Se fosse apenas presunção, o preço seria bem alto. Tremo de medo por várias horas naquela cama. Medo de onça, de cobra, dos índios, do isolamento, de mim mesma. Revirava de um lado a outro na cama sem conseguir controlar o terror que tomou meu corpo ao ponto de me fazer tremer (Bráulia Ribeiro, “O chamado radical”, 2007, p. 53).

Essas palavras – que mais parecem declarações de um soldado português ou um frade franciscano no imaginário de canibalismo e selvageria do século XVI – dão uma ideia do despreparo e preconceito presente nas visões dessas igrejas sobre o mundo indígena. A missionária (que ocupou a presidência nacional de JOCUM nos anos 2000 e hoje atua como colunista do jornal ultraconservador “Brasil Sem Medo”, com conselho editorial presidido pelo ideólogo de extrema-direita Olavo de Carvalho) iniciava assim a trajetória da missão nos Suruwaha. Equipes de linguistas e pastores se sucederam até a década de 2000 promovendo a conversão dos indígenas recém-contatados à fé em Jasiuwa, e operando na chave da assistência à saúde como veículo para manter a dependência com a igreja: exorcismos, cantos cristãos e orações acompanhavam as doses de cloroquina – um dos antimaláricos mais eficazes, de fato – que os missionários ofereciam nas crises de malária. Mas era Jasiuwa, não os medicamentos, o autor da cura indígena. Outras deturpações foram se desenvolvendo nos anos em que JOCUM atuou nos Suruwaha: a inalação de tabaco em forma de rapé, tradicional entre os povos do Purus, foi convertida em “batismo cristão”, as narrativas indígenas viraram variações bíblicas sobre Abraão ou Moisés, e os cantos wajuma e sonhos xamânicos eram, segundo os missionários, encontros com Jesus.

Novamente, na mais fiel tradição proselitista dessas igrejas, o desejo de ampliar as fronteiras da fé levou a equipe de JOCUM a promover expedições de contato no território Hi Merimã. Com efeito, em 1995 os missionários atuantes nos Suruwaha foram surpreendidos pelo indigenista Rieli Franciscato, da FUNAI, em uma expedição de contato que contava com o apoio de guias contratados – nessa ocasião, indígenas Banawá. A expedição foi interceptada, e os diários de campo dos missionários revelavam os verdadeiros propósitos da iniciativa de JOCUM, cujos membros tinham consciência plena da ilegalidade da viagem:

Na verdade, o diabo não está satisfeito em perder terreno pra nós e vai tentar o que lhe estiver ao alcanse [sic] para nos fazer recuar, voltar atrás, ir embora, mas em nome do Senhor Jesus Cristo continuaremos até o tempo determinado pelo Senhor, esta terra, este lugar, o povo himarimã pertence ao Senhor Jesus Cristo (Nivaldo Carvalho, JOCUM, 1995)

Ontem eu estava orando a respeito disso e Deus me deu aquele versículo que diz que andamos por fé e não por vista. Ainda que não vejamos nada e pareça confusa as coisas, creio que Deus está no controle das coisas por aqui, ele é a principal pessoa interessada neste povo, no contato (Nivaldo Carvalho, JOCUM, 1995)

Enquanto o mundo discute a Amazônia, eu estou aqui percorrendo rios, igarapés, fazendo acampamentos e procurando índios. Só o Senhor, obrigado Paizão por este presente […]. Aqui neste local, certamente nem a FUNAI, nem a Polícia Federal poderá nos encontrar (Nilton Cavalheiro, JOCUM, 1995)

Em seus escritos, missionários de JOCUM colocavam como eixo de sua pregação a ideia de que os Suruwaha estariam se transformando em Jasiuwa bahi, “presas de Deus”: sob proteção divina, suas vidas se tornariam melhores. Assim o relata o livro A Way Beyond Death [Um Caminho Além da Morte] (YWAM Publishing, 2012), em que a jornalista Jemimah Wright elabora um romance a partir das aventuras missionárias de Márcia e Edson Suzuki nas malocas Suruwaha. Durante 20 anos, JOCUM ensaiou um programa de formação de jovens pastores indígenas, tentou induzir processos escolares de alfabetização e tradução bíblica e, como vimos, buscou expandir a missão na vizinha terra dos indígenas isolados. Essas iniciativas foram canceladas com a intervenção do Ministério Público Federal, que em 2004 determinou a saída dos missionários da terra indígena.

Hoje os Suruwaha declaram com veemência: Ari ja anidawa digianaxuba (“Nós nunca teremos dono”). Eles, que não são presas de Deus, se dispõem sem receios a receber a vacina para Covid-19 nas próximas semanas, através da equipe do DSEI Médio Purus. E, decerto, os Hi Merimã, que persistem livremente na sua estratégia de isolamento, não pertencem ao Senhor Jesus Cristo. Porém, o alerta continua depois que a atual responsável do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos anunciou que “vivemos em tempos de a igreja ocupar a nação”. É possível perceber que, nas florestas do Purus ou nos bastidores do Palácio do Planalto, a cloroquina continua sendo a mão de Deus. E a vacina, produto da ciência e das políticas do Estado de direito, um adversário inoportuno da coronafé.

* Miguel Aparicio é antropólogo, professor do Programa de Antropologia e Arqueologia e coordenador do Programa de Pós-graduação em Ciências da Sociedade na Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA). É também pesquisador do Observatório dos Direitos Humanos dos Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato (OPI – CNPq).

Foto: Gleilson Miranda/CGIIRC/Funai

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