Quando os pitbulls atacam, a democracia precisa se defender

por Wilson Gomes, em Cult

O deputado Daniel Silveira (PSL-RJ), eleito na onda antipolítica e autoritária de renovação da política pelo movimento bolsonarista em 2016, credenciou-se ao cargo de deputado federal, na opinião dos eleitores fluminenses, justamente por ter protagonizado um dos episódios mais grotescos daquele ano, a quebra acintosa da placa em homenagem à vereadora assassinada Marielle Franco. A ficha corrida precedente do deputado é bizarra e desenha nitidamente o perfil de um desses pitbulls de tatame, que passou a vida cometendo pequenos crimes e atos antissociais, valentão, afrontoso e ameaçador. Gaba-se de ter matado 12 pessoas na carreira como policial da PM do Rio, de onde conseguiu a proeza de ser expulso depois de tantas que aprontou.

Mas, em 2018, o movimento bolsonarista oferecia uma oportunidade de, enfim, ser alguém na vida, para inúmeras almas perdidas, desajustadas, perdedoras, mas com autoestima elevada, que podiam agora culpar o governo, os liberais, o comunismo e o globalismo pelo próprio fracasso. Daniel Silveira tinha o físico, o passado e as ideias perfeitas para o papel. Afrontar, insultar e intimidar, como os líderes do novo movimento, ele sabia fazer; discursar contra o “mundo de hoje” e se fazia de vítima do PT e dos comunistas, ele também conseguia; culpar os comunistas e o globalismo ele podia aprender; ter um presente ou passado militar ou miliciano, ele tinha. Pronto. Quebrar a placa de Marielle, mulher, de esquerda, lésbica, vítima das milícias, negra, era o ato simbólico que faltava para poder despontar dentro da multidão militares e ex-militares, valentões de academia, adoradores de armas e odiadores de “tudo o que está aí” que apostava no cavalo do bolsonarismo que passava, selado, à frente.

Bem, todo mundo já sabe que esta semana o deputado foi preso, por determinação do STF, depois de ter postado um daqueles vídeos bolsonaristas de desafio às instituições republicanas que consistem, em geral, no tripé “desqualificar as instituições e os seus membros”, “elogiar a ditadura militar” e “incentivar ou sugerir uma sedição autocrática, isto é, a sublevação da massa contra o Congresso ou a Suprema Corte”. Fez o vídeo, foi ao Twitter defendê-lo e continuou em desafio até que a Polícia Federal bateu à sua porta com um mandado. Ainda assim, redigiu mais dois desacatos e afrontas ao STF antes de ter o celular confiscado. 

O vídeo é para quem tem estômago forte. O juiz Fachin é chamado de mau caráter, marginal da Lei, homenzinho, cara de filho da puta e cara de vagabundo, além de outras baixarias que não me atrevo a reproduzir. Do juiz Gilmar Mendes diz e repete que vende sentenças. Do ministro Barroso insinua-se a homossexualidade. Tudo isso apimentado com expressões do mais baixo calão. 

Não para, contudo, nos insultos e no ataque à imagem e à reputação dos membros do STF, nem isso é o mais importante. A investida de verdade é contra a própria Corte e a sua legitimidade, não apenas insinuando que vive em conluio com bandidos, que recebe “rachadinha” do crime, como também elogiando o regime de exceção do passado, que cassou ministros do STF. Por fim e sobretudo, recomenda que a exceção autocrática seja novamente posta em prática, colocando-se todos os juízes da Corte Suprema na cadeia, conforme o desejo expresso por Weintraub no ano passado, ou, pelo menos, que algum ministro seja cassado e preso para que os demais parem de impedir o presidente de governar. 

Daniel Silveira é apenas mais dos inúmeros Bolsonaros de que se compõe o bolsonarismo. Só que um Bolsonaro bombado, uma criatura da era das mídias digitais, que blefa possuir saber jurídico. Não fez nem disse qualquer coisa que Bolsonaro já não tenha feito e dito a vida toda, na era da TV, tendo sido sucessivamente absolvido pelo Comitê de Ética da Câmara. É a quintessência do bolsonarismo. 

Mas por que desta vez o STF resolveu agir?

É que Bolsonaro era um fascista
exótico em um momento em que
todo mundo parecia convencido
de que a democracia era um valor
universal, enquanto Silveira é um
líder pró-fascista em um momento
em que 1/3 da população abriria
tranquilamente mão da democracia
por um regime autoritário.

Passar pano para Bolsonaro foi um erro que se provou grave, quando se vê aonde isso nos levou, isto é, o fato de hoje ser ele o líder do mais importante movimento social e político brasileiro, esse autoritarismo populista que todo dia força os limites da democracia na direção de um regime autoritário. Ser indulgente com o deputado pitbull hoje é impensável, pois o fascismo não é mais exótico, é uma ameaça real e cotidiana.

Na verdade, o deputado foi mais um voluntário do bolsonarismo, testando de novo os limites e a complacência das instituições democráticas. O movimento radical populista tinha feito este teste de complacência em maio do ano passado, com Weintraub, e em junho, com Sara Winter, e só arrefeceu quando o ministro Alexandre de Moraes achou que já era demais.  Agora, que o bolsonarismo se sente novamente energizado, tendo o centrão fisiológico como novo guarda-costas, tentou de novo empurrar os limites. Se conseguir, nem posso imaginar o próximo passo. 

Quando escrevo esta coluna, ainda não sei se Daniel Silveira foi protegido ou não pelo corporativismo da Câmara. Se sair isento e restaurado, isso significa que um novo padrão de desmoralização das instituições republicanas, de apologia da ditadura e de agressão à honra e à imagem do STF foi autorizado. E que esse padrão é incompatível com a democracia. 

Os bolsonaristas, claro, acham que nada demais aconteceu. Querem ditadura para os outros e Estado de Direito para si, advogam AI-5 para os outros e liberdade absoluta de opinião e expressão para os seus, elogiam o regime que cassava mandatos, mas deploram a possibilidade de perder os próprios por decisão de autoridades democráticas. O curioso na história é que um espécime muito peculiar de progressista e de intelectual de esquerda apareceu como força coadjuvante do bolsonarismo no caso, ao fazer a estranha combinação entre uma veemente condenação ao ato de Silveira e uma idêntica condenação da sua prisão e, até, da possibilidade de perda do mandato. 

O Twitter, onde tudo acontece hoje, encheu-se de “penalistas” discutindo se flagrante delito se aplica apenas ao delinquente com a arma fumegante diante do cadáver ou se, além disso, também pode ser aplicado ao delinquente delinquindo em moto contínuo por não ter parado de fazer vídeos e posts vistos por dezenas de milhares de pessoas por hora. Depois vieram os “constitucionalistas”, argumentando o perigoso precedente que pode advir de um STF que intervém quando a prerrogativa da contenção seria de outras instituições. Ou o precedente que decorre de mandar para a cadeia sujeitos que incitam massas contra a nossa combalida democracia. 

O time que defende a democracia,
mas quer que ela não tenha garras
ou dentes para se proteger, é um
clássico das crises da democracia.

Nos anos 1920 e 1930 esse time deixou o fascismo pulverizar a democracia na Europa, porque, na sua cabeça, a superioridade da democracia não vem da igualdade ou da liberdade que ela pressupõe e garante, mas da sua recusa a usar autoridade e força para se defender. Devem pensar que as ditaduras baixarão as armas e se prostrarão em respeito à excelsa superioridade da democracia. 

Está se estabelecendo aqui um precedente? Pois, que bom, posto que não tem precedente de ministros e deputados incitarem as massas a pôr um fim ao Poder Judiciário de um Estado de democracia liberal para que o presidente possa governar sozinho. Ah, mas o precedente pode afetar o meu exercício individual da liberdade de expressão? Pois está combinado. Toda vez que eu publicar que todo o STF, funcionando em um regime democrático normal, deve ser cassado e preso, que essa Constituição que temos não presta justamente por ser democrática, que prender e torturar dissidentes é uma necessária “depuração”, que o STF é composto por ladrões, vagabundos e viados, como publicou Silveira, por favor, para o bem da democracia, prendam-me. 

E dos que acham “nefasto esse tipo de ativismo judicial”, só consigo pensar que até parece que havia instituições fazendo fila para enfrentar os avanços antidemocráticos do bolsonarismo, de forma que a gente pudesse ficar só na escalação: “Entra em campo agora o Comitê de Ética da Câmara, enquanto isso, o Ministério Público vá para o aquecimento. O STF vá já para o banco de reservas, que vamos poupá-lo desse jogo”. Na verdade, não, o Congresso não apareceu para morder em defesa da democracia quando o deputado disse que um juiz era vendido, outro era covarde, outro tinha pinto pequeno e outro gostava de pinto. A PGR não apareceu como cão de guarda dos interesses da democracia quando o deputado disse que a Constituição, por democrática, não presta, e fez uma longa apologia da ditadura. No fim do dia, como já aconteceu em maio e junho do ano passado, apareceu apenas o STF para socorrer a democracia. Ainda bem.

Para dizer a verdade, prefiro ver esta litania sobre o sexo dos anjos enquanto caem as muralhas de Constantinopla do que ouvir depois que o fascismo se instalou entre nós e nenhuma instituição apareceu para comprar a briga pela democracia. Ou que a ditadura começou no dia em que um deputado insignificante, cérebro encharcado de whey e ódio, publicou que queria cassar e prender pelo menos um juiz do STF para calar os outros. 

Wilson Gomes é doutor em Filosofia, professor titular da Faculdade de Comunicação da UFBA e autor de A democracia no mundo digital: história, problemas e temas (Edições Sesc SP)

Daniel Silveira é apenas mais dos inúmeros Bolsonaros de que se compõe o bolsonarismo (Foto: Pablo Valadares)

Enviada para Combate Racismo Ambiental por Regina Moreira.

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