Medida afeta povos e comunidades tradicionais indígenas, quilombolas e caiçaras da região de Angra dos Reis e entorno
Na última quinta-feira, 18 de fevereiro, a juíza Daniela Berwanger Martins cassou a liminar anteriormente concedida na Ação Civil Pública movida pelo Ministério Público Federal (MPF) e, com isso, passou a permitir o início da operação de transferência de rejeitos radioativos das usinas nucleares de Angra I e Angra II para uma nova estrutura, chamada de Unidade De Armazenamento Complementar a Seco para Combustíveis Irradiados (UAS).
A Ação Civil Pública (ACP), movida pelo MPF em face do Ibama, da Eletronuclear e da Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN), tem como objetivo anular as licenças concedidas à empresa Eletronuclear para a implementação da UAS localizada em área próxima às comunidades tradicionais da região. Dentre outros motivos relacionados ao processo de licenciamento das operações, a anulação foi pedida pois as comunidades tiveram seu direito à consulta prévia, livre e informada, garantido pela Convenção 169 da OIT, desrespeitado.
A instalação da UAS será feita com o intuito de transportar rejeitos nucleares e radioativos produzidos pelas Usinas de Angra I e II, que atualmente são descartados em “piscinas”. A nova instalação visa permitir que estes rejeitos sejam transportados e armazenados a seco em “cilindros” ao ar livre, o que por si só representa uma nova instalação nuclear.
No Brasil, para uma nova instalação nuclear ser implementada é necessária autorização do Congresso Nacional (artigo 21, XXIIII da CF), a realização de Estudo Prévio de Impacto Ambiental e Relatórios (EIA/RIMA), realização de audiência pública e, a depender da situação, a consulta livre, prévia e informada às comunidades tradicionais atingidas direta ou indiretamente pelo empreendimento. A consulta não foi realizada.
Na decisão, Daniela Berwanger Martins, que é juíza federal substituta atuante na 1ª Vara Federal de Angra dos Reis, considerou a postura do MPF “alarmista” e fez uso da exigência da consulta livre, prévia e informada aos povos tradicionais como único impeditivo para o início das operações.
O descumprimento do direito à consulta prévia não é a única consequência negativa que a revogação da liminar acarreta, uma vez que a decisão, ao permitir o início da operação, desconsiderou outras previsões em lei exigidas para este tipo de empreendimento – exemplo disso é a falta de consideração de todas as comunidades tradicionais afetadas direta e indiretamente no processo de licenciamento ambiental.
A Eletronuclear promoveu uma audiência pública no dia 22 de janeiro de 2021, no entanto a audiência não se tratou de momento de consulta livre, prévia e informada. Esta foi realizada sob a modalidade online, em uma sexta-feira à noite, sem a presença de intérprete da língua materna das comunidades tradicionais, e a dificuldade que estas pessoas enfrentam no acesso à internet foi desconsiderada. Além disso, quem pôde estar presente na audiência relatou a dificuldade de compreensão das questões discutidas e das dificuldades de acesso à audiência em si.
“Muito complexo o acesso à audiência. Muitas etapas, app cuja conexão não é confiável (recebi notificação), necessidade de senha. Penso que o público desta audiência será muito seleto” ou “Gente, não consigo acessar. É o mesmo problema da última vez. Me cadastrei e aparece essa página dizendo para baixar o aplicativo” – são apenas alguns exemplos de relatos de membros das comunidades tradicionais compartilhados e que ilustram a dificuldade de acesso à audiência pública.
Para o Cimi, é importante ressaltar que as comunidades tradicionais da região já suportam consequências irreparáveis relacionadas ao crescimento desordenado da região desde a década de 1970. O conjunto das três usinas termonucleares, Angra I, II e III (em construção) foi implementado sob o discurso do desenvolvimentismo energético, porém em um país que é rico em recursos naturais e que poderia explorar outras formas de produção de energia.
É imprescindível afirmar que todo megaempreendimento implementado nos territórios tradicionais representa uma nociva e inestimável transformação do uso, da ocupação e do modo de vida destas comunidades em relação aos seus territórios ancestrais. No caso, por exemplo, de um eventual vazamento de materiais radioativos ao meio ambiente, as comunidades tradicionais da região seriam indubitavelmente afetadas, tanto por conta de sua subsistência, quanto por conta da sua relação ancestral com estes territórios.
O Cimi foi admitido nesta ACP como amicus curiae (amigos da corte) em parceria com o Fórum de Comunidades Tradicionais de Angra Paraty e Ubatuba (FCT) e está acompanhando a ação com o principal propósito de auxiliar o juízo no diálogo junto às comunidades indígenas, quilombolas e caiçaras da região, a fim de que estas tenham suas vozes consideradas, e que tenham seus direitos garantidos no processo de implementação da UAS.
Chapecó, SC, 19 de fevereiro de 2021
Conselho Indigenista Missionário – Regional Sul
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Usina de Angra. Foto: Eletronuclear