Comissão da Assembleia Legislativa do Pará aponta violações e possível execução de Isac Tembé, morto em ação policial

Após diligência no local do assassinato do jovem Tembé, relatório da Comissão de Direitos Humanos aponta inconsistências do relato policial e cobra investigação do caso

Por Tiago Miotto, no Cimi

A Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Pará (Alepa), em relatório apresentado nesta quinta-feira (25), identificou “flagrantes violações de direitos humanos” e “possível prática de execução” no caso do assassinato de Isac Tembé, jovem indígena de 24 anos morto pela Polícia Militar na noite do dia 12 de fevereiro.

O relatório é fruto de uma diligência realizada na Terra Indígena (TI) Alto Rio Guamá e foi apresentado durante coletiva de imprensa, também transmitida pela internet (confira abaixo). A Comissão aponta diversas inconsistências no relato feito pelos policiais e faz recomendações para garantir a devida investigação do caso aos órgãos de segurança do estado do Pará e aos Ministérios Públicos Estadual e Federal.

Isac Tembé foi morto por policiais militares numa localidade vizinha à TI Alto Rio Guamá, conhecida como Fazenda do Nédio, na noite da sexta-feira de Carnaval. Segundo os indígenas, embora fique fora da demarcação, o local sempre foi um espaço de caça dos Tembé, e era isso que Isac e outros indígenas faziam naquela noite.

O Boletim de Ocorrência registrado pelos PMs que participaram da ação, incluído no relatório, indica que eles foram chamados ao local pelo filho do proprietário da fazenda, que denunciou a presença de “vários indivíduos armados” que estariam roubando gado na propriedade. Ainda segundo os policiais, eles somente teriam atirado em reação aos disparos efetuados pelos indígenas.

Os PMs alegam, ainda, ter encontrado uma arma de calibre 38, deflagrada, ao lado do Isac, que teria sido prontamente socorrido. A versão oficial é contestada frontalmente pelo povo Tembé-Tenetehar, que contam que Isac estava desarmado. Diversos indícios identificados pela Comissão de Direitos Humanos também contrariam o relato dos policiais.

“O histórico dos conflitos agrários e socioambientais que envolvem a Reserva Indígena Alto Rio Guamá, ensejava outra conduta por parte dos policiais que atuaram na averiguação do suposto furto de gado e que ao fim produziram a morte do indígena, demonstrando que flagrantes violações de direitos humanos são observadas no caso em tela, com especial ênfase para a possível prática de execução do guerreiro Isac Tembé”, afirma o relatório.

https://youtube.com/watch?v=Kf4VBPj4Eig

Cena modificada, perícia comprometida

À Comissão, os indígenas presentes no local com Isac contaram que, surpreendidos pelas luzes de pelo menos dois veículos e pelos gritos dos policiais, eles se dispersaram e procuraram se esconder. Já escondidos, ouviram pelo menos quatro disparos e não viram mais Isac.

Os indígenas ainda ressaltaram que “todos encontravam-se desarmados, que não houve revide e que Isac não fugiu porque iria apresentar-se aos policiais e esclarecer a situação”.

“Por que chegaram atirando contra nossos jovens, filhos, netos e sobrinhos, que caçavam, prática que faz parte da cultura de nosso povo?”, questionaram os Tembé em nota pública sobre o caso.

“A única justificativa que aparece é um telefone do filho do dono da fazenda, dizendo que estavam roubando gado e nada mais do que isso. Foi isso que fundamentou uma ação tão desproporcional, tão agressiva? Parece até que o deslocamento deste comboio não era para prender ninguém. Que motivação tinha, então, o seu deslocamento com armas tão pesadas?”, questionou o presidente da Comissão de Direitos Humanos da Alepa, deputado estadual Carlos Bordalo (PT).

O relatório também destaca que os policiais “deliberadamente deixaram de observar regras claras de conduta quanto à preservação da cena dos fatos”, inclusive com a remoção da arma supostamente encontrada em posse de Isac, o que impediu a perícia efetiva do local.

Alguns pontos de divergência chamaram especial atenção da Comissão. O relatório destaca que a perícia não encontrou cápsulas de projéteis disparados pelos policiais e nem pelos indígenas no suposto confronto. Durante a diligência, entretanto, os integrantes da comitiva encontraram diversas cápsulas no local indicado pelos indígenas como cena do crime.

“Qual de fato foi o local do óbito de Isac Tembé e quais as circunstâncias de sua morte, uma vez que a equipe da perícia científica conduzida ao local apontado pelos militares não encontrou vestígios do suposto confronto e os relatos dos indígenas dão conta que Isac foi ao encontro dos policiais para desmonstar sua tranquilidade quanto licitude do que estava fazendo no local?”, questiona o relatório.

“Esse é um detalhe importante, porque há uma contradição”, ressaltou o presidente da Comissão durante a apresentação do relatório. “Na terça-feira, nós fomos e encontramos um monte de cápsulas. Contamos pelo menos 18 cápsulas, o que nos leva a uma outra questão: essas são realmente as cápsulas do evento? De onde apareceram essas cápsulas? Essa cápsulas podem ter sido jogadas no local pós evento? Pós perícia?”, interrogou.

Outro ponto destacado, ainda, foi a falta de investigação e perícia acerca da carcaça de um boi supostamente encontrada no local, que evidenciaria o crime de roubo de gado. A Comissão questiona o fato de não haver fotos do corpo de Isac ao lado da carcaça – já que, segundo o registro feito pelos policiais, eles teriam sido encontrados lado a lado.

“Não encontramos o boi. Cadê o boi?”, perguntou o deputado Bordalo. “Encontramos um couro de boi, com uma cabeça e uma aparência de um couro que parecia muito mais velho do que um gado que teria sido morto na madrugada de sábado. Não foi feito perícia no boi. Pelo menos até aqui, não aparece o que foi que matou o boi que eles dizem que acharam”.

Três horas para prestar socorro

O longo tempo decorrido entre os disparos contra Isac e a sua entrada no hospital também são duramente questionados pelos indígenas e pela Comissão de Direitos Humanos. Segundo o boletim de ocorrência feito pelos policiais e o relato dos indígenas, os disparos ocorreram em torno das 19 horas. O registro do hospital obtido pela Comissão indica que Isac só foi levado pelos policiais ao local “por volta das 22:53” – quase quatro horas depois de ter sido atingido.

Quando chegou ao hospital, segundo o registro, Isac já estava “sem pulso e sem sinais vitais”. Como averiguado pela diligência, entretanto, a distância entre o local do assassinato e o hospital do município de Capitão Poço é curta e pode ser percorrida em cerca de 20 minutos.

“Esta área do evento para a cidade tem uma distância que eu percorri com o carro em vinte minutos, no máximo. Pergunta-se: onde estavam os policiais e o Isac nesse período inteiro? O que foi feito nesse período? Se era para socorrer a vítima, foi socorrido onde? Onde estava Isac nas quase três horas que separam o registro do horário do evento para sua chegada na unidade de saúde?”, reforçou o presidente da Comissão.

“Todas as viaturas de Polícia Militar hoje tem um GPS, que é possível saber precisamente onde ela andava em cada minuto. Não é difícil fazer esse rastreamento: onde estavam essas viaturas? O que elas fizeram naquele período?”, indaga o deputado estadual.

Indígenas impedidos de registrar ocorrência

A série de violações e contradições identificadas pela Comissão de Direitos Humanos no caso que vitimou Isac Tembé inclui, ainda, a obstrução do registro de um Boletim de Ocorrência pelos Tembé, na delegacia da Polícia Civil do município de Capitão Poço. A Comissão cobra, no relatório, que se realize um inquérito para esclarecer e identificar os responsáveis pela obstrução do registro dos indígenas.

“Quando se fala que a gente foi negado a fazer o BO [Boletim de Ocorrência], que a gente se preocupava de tirar o nosso irmão para que fossem feitos os procedimentos legais, não foi essa a única vez. Vários fatos que ocorrem dentro da terra indígena, e com indígenas, a gente sempre foi negado a fazer a denúncia e fazer o BO”, afirmou Wender Tembé, liderança do povo que participou da coletiva de apresentação do relatório.

“A gente procura Capitão Poço, não atende; Garrafão não atende, Santa Luzia do Pará não atende, só diz que todo fato ocorrido com a comunidade indígena tem que ser direcionado à Polícia Federal. Mas como é que, para incriminar o indígena, qualquer delegacia atende e os indígenas não podem fazer esse BO? Por que esse olhar tão discriminatório para o meu povo?”, denunciou a liderança.

Conflitos e pressão sobre o território

Para Wender, a situação que vitimou Isac tem relação direta com os conflitos pelo território Tembé e a luta que o povo trava na Justiça para que os fazendeiros desocupem a terra demarcada.

“Há anos que a gente vem lutando por Justiça, não somente por esse caso recente que aconteceu, mas também pela desocupação do nosso território, que vem há 40 anos na Justiça e a gente nunca teve uma resposta”, afirma.

“Desde a enorme ferida que um fazendeiro abriu por dentro da reserva, que gerou fluxo de mais de 400 famílias dentro da terra indígena, que se estabeleceram dentro dela fazendo campo para pastagens, jogando agrotóxicos no entorno e dentro da terra indígena, roubando madeira, açaí, alimento, caça”, denuncia a liderança.

“E a gente sempre recorrendo à Justiça e a gente nunca derramou sangue, dentro da nossa terra, dos invasores. E da mesma forma, a gente está aqui reivindicando justiça, porque acreditamos na Justiça, e queremos que a Justiça seja igual para todos”, reivindica Wender.

O presidente da Comissão da Alepa reforçou que esse contexto de disputa territorial precisa ser levado em conta nas investigações. “Essa área de amortecimento é objeto de conflito e disputa antiga. Os índios reivindicam como sua, o fazendeiro reivindica como sua”, ponderou, garantindo que a Comissão seguirá acompanhando os desdobramentos do caso.

Além de investigações aos órgãos de segurança do estado do Pará, ao MPE e ao MPF, o relatório da Comissão de Direitos Humanos da Alepa também recomenda proteção às testemunhas do caso e o afastamento dos policiais envolvidos no assassinato de Isac Tembé.

“Queremos que o Ministério Público Federal acompanhe esse caso, até que a gente chegue aos verdadeiros culpados e aos mandantes desse crime”, cobrou Wender Tembé.

Presente na coletiva, o corregedor-geral da Polícia Civil do Pará, Raimundo Benassuly, afirmou que o relatório traz “ponderações importantes que a investigação tem que esclarecer”, e garantiu que as investigações internas estão sendo feitas pela Diretoria de Crimes Funcionais, em diálogo com a equipe responsável pela perícia criminal.

Clique aqui para ler o relatório completo.

Isaac Tembé. Foto: Arquivo Pessoal

Deixe um comentário

O comentário deve ter seu nome e sobrenome. O e-mail é necessário, mas não será publicado.

1 × três =