Desde a área de cuidados em saúde mental, psiquiatra analisa como os desmontes e ataques às políticas públicas de atenção social vão deixar marcas ainda mais profundas no Brasil pós-Covi-19
Por: João Vitor Santos, em IHU On-Line
Todos estão cansados; o medo, a dor e o luto são sentimentos presentes em uma sociedade sem ar. É por isso que especialistas dizem que os efeitos da Covid-19 vão muito além da desafiadora recuperação da doença, atingindo até mesmo quem não esteve doente ou não a contraiu de forma grave. São os efeitos psicológicos de uma pandemia que maculam todo o corpo social. No caso do Brasil, o recente histórico de desmonte de políticas públicas de atenção à saúde mental pode dificultar essa recuperação, fazendo com que as marcas dessa experiência sejam sentidas por anos. “Há uma indagação de fundo, inevitável. Qual será nosso futuro? Nosso país está diante de uma escolha como sociedade: ou a devastação, ou a solidariedade econômica e social”, aponta o psiquiatra Pedro Delgado, em entrevista concedida ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU por e-mail.
Ele explica que o desmonte das políticas de atenção à saúde mental não é novo, começou com mais veemência no governo de Michel Temer e se acelerou agora, mesmo com a pandemia já em curso. Para o psiquiatra, é mais uma face do desmonte das ações de assistência social e saúde que temos vivido. “A política de restrição brutal do Estado de bem-estar, de desemprego estrutural e degradação da renda, como praticada pelo governo Bolsonaro-Guedes, com apoio do oligopólio de comunicação social, do setor financeiro e do sistema de justiça, está dirigindo o país para um cenário de miséria, violência e barbárie. A catástrofe da pandemia só vem acelerar tragicamente este itinerário”, detalha.
Pedro ainda destaca que “estamos diante de uma imensa catástrofe sanitária e social, que produz um sentimento de medo, insegurança e desamparo”, pois além das pessoas que sofrem as perdas de amigos e parentes, com a doença em si, com a perda das formas de sustento e desassistência estatal que repercute psicologicamente, ainda há problemas seríssimos na saúde mental de profissionais que estão na linha de frente do combate à pandemia. “Tenho conhecimento de dados preliminares de uma pesquisa nacional sobre adoecimento e morte de trabalhadores da área da saúde no Brasil que revelam uma tragédia ainda oculta, que é fruto da gravidade da pandemia, mas igualmente do descaso das autoridades sanitárias no contexto atual do nosso país”, aponta. E tudo em meio ao raquitismo de Centros de Apoios Psicossociais – Caps e outras portas de entrada para se restaurar a saúde mental.
No entanto, o médico diz que não se pode perder a esperança e que a resistência é o melhor caminho. E para isso traz a inspiração do coletivo de trabalhadores, usuários e familiares da saúde, a Frente Estamira de Caps, criada no estado do Rio de Janeiro. “É inevitável que as ações de defesa da saúde mental tenham que enfrentar dois inimigos poderosos: a pandemia e o desmantelamento da política de reforma psiquiátrica. Neste cenário tão inóspito, a resistência como estratégia e a invenção como método têm se revelado o caminho para fortalecer a solidariedade e a esperança”, resume.
Pedro Gabriel Godinho Delgado é psiquiatra, professor associado da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, no Instituto de Psiquiatria e Faculdade de Medicina, e vice-presidente regional da Associação Mundial de Reabilitação Psicossocial. Foi coordenador nacional de saúde mental, álcool e outras drogas, do Ministério da Saúde, de 2000 a 2010.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – No final do ano passado, entrou na pauta da Câmara Técnica do Conselho Nacional de Secretários de Saúde – Conass a possibilidade de revogar 99 portarias relacionadas à saúde mental. Em que consistem essas portarias e o que sua revogação representa?
Pedro Delgado – O Ministério da Saúde preparou uma planilha com extensa lista de portarias e alguns outros atos normativos relacionados à saúde mental, propondo sua revogação. Foram citadas desde a Portaria 224, de 1991, que criava os serviços de atenção diária chamados de Centro de Atenção Psicossocial – Caps ou Núcleo de Atenção Psicossocial – Naps, até a histórica e estruturante Portaria 336, de fevereiro de 2002, que sistematizou as modalidades e portes de Caps e assegurou seu financiamento federal e gestão municipal. Todas as normas que definiam o controle técnico sobre hospitais psiquiátricos foram igualmente indicadas para revogação. Os serviços residenciais terapêuticos teriam o destino de sair da saúde pública e ser transferidos para a assistência social.
Inovações muito efetivas, como os consultórios de rua, seriam simplesmente extintos, com a alegação de que “não são serviços de saúde”. Instruções normativas relevantes para a orientação dos gestores e trabalhadores, relacionadas à atenção psicossocial de crianças e adolescentes e de pessoas que fazem uso prejudicial de álcool e outras drogas, seriam sumariamente canceladas. Estou citando apenas alguns exemplos, mas a proposta do Ministério da Saúde do governo Bolsonaro era claramente destruir toda a estrutura normativa da Política Nacional de Saúde Mental.
Esta ação destrutiva foi programada para a reunião ordinária de 17/12/2020, da Comissão Intergestores Tripartite, a CIT, criada na legislação do SUS para funcionar como a instância de pactuação entre os gestores federais (Ministério da Saúde), estaduais (representados por seu conselho, o Conselho Nacional de Secretários de Saúde – Conass) e municipais (representados pelo Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde – Conasems). Diante da reação de várias instituições representativas do campo da saúde mental, o Ministério da Saúde retirou a proposta da pauta daquela reunião, mas prosseguiu seu intento, através das diversas medidas que continua a tomar para promover um retrocesso drástico na política de saúde mental do país.
IHU On-Line – O que esse movimento para revogar portarias relacionadas à saúde mental revela?
Pedro Delgado – O chamado “revogaço” é o ápice de um complexo processo, iniciado em 2016, de desconstrução dos avanços alcançados, especialmente a partir da aprovação da Lei 10.216/2001, pela política pública de saúde mental no Brasil.
Todas as transformações que consideramos como parte da Reforma Psiquiátrica brasileira – RPb, iniciada ainda no período de transição democrática dos anos 80 do século passado, foram resultado de processos de construção coletiva de consensos e legitimidade. Considero decisivo ressaltar aqui este argumento. A Constituição de 1988 foi uma extraordinária conquista no esforço civilizatório de produção de consenso. Todos os avanços da reforma psiquiátrica se fizeram pari passu com os esforços coletivos de construir um país menos desigual, com políticas públicas que assegurassem o exercício objetivo da cidadania. Cidadania como direitos, como acesso à saúde, à educação, à renda, à proteção social.
Tivemos uma Conferência Nacional de Saúde Mental (Segunda Conferência), em 1992, na qual os mil delegados, dos quais 200 eram usuários e familiares, afirmaram com todas as letras que era preciso construir e fortalecer a saúde mental comunitária, e reduzir progressivamente o componente hospitalar na assistência. Isso foi reafirmado na Terceira Conferência, de 2001, na qual crianças e adolescentes, e a política para usuários de álcool e outras drogas, entraram definitivamente na agenda da reforma psiquiátrica. E em 2010, já como Conferência Intersetorial, os representantes de todos os municípios do país reafirmaram a direção ética e estratégica da atenção psicossocial no território e da autonomia e protagonismo de usuários e familiares. Cito as Conferências Nacionais como o exemplo maior de um processo constante e capilarizado, de intensa participação de trabalhadores, usuários e familiares.
É o mesmo processo de construção e legitimação do SUS, da política educacional, do Sistema Único de Assistência Social – Suas, da política de direitos das crianças e adolescentes, todos na esteira da redemocratização consolidada no grande pacto da Constituição de 1988. Ora, não existe oposição entre a produção de consensos da democracia participativa e as conquistas consolidadas no campo científico. Ao contrário. Sem democracia, não há saúde mental, não há saúde pública, não há avanço do conhecimento científico.
Uma ideia democrática que permitia ajustes
Enquanto tivemos democracia no Brasil, até abril de 2016, toda a controvérsia técnica, científica, gerencial, administrativa, ideológica, que existia em torno da política de saúde mental, era perfeitamente absorvida pelos mecanismos de pressões legítimas para produção de consenso. Claro, o jogo era pesado, mas havia uma institucionalidade democrática que assegurava o andamento das controvérsias, sem prejuízo da população. Produziam-se ajustes e retificações, quando necessário, mas o desafio principal, que era, e sempre foi, assegurar o acesso ao tratamento adequado em saúde mental no âmbito do SUS, continuava sendo enfrentado no dia a dia.
Com a interrupção da democracia em 2016, logo veio uma medida drástica, que atingiu de modo devastador o SUS e todas as políticas públicas: a PEC 95, de congelamento dos gastos públicos. E na saúde mental vieram todas as medidas de desconstrução, iniciadas com [Michel] Temer e aprofundadas com Bolsonaro, que podem ser vistas com minúcias em estudos já publicados.
De novo, ideologia X ciência
O “revogaço” foi construído pelo novo grupo dirigente que assumiu o Ministério da Saúde militarizado do governo Bolsonaro, com assessoria autoproclamada de duas entidades médicas, o Conselho Federal de Medicina e a Associação Brasileira de Psiquiatria. Foi retomado o argumento canhestro da Ciência versus Ideologia, contraditoriamente proclamado pelos áulicos de um governo terraplanista, para afirmar que, doravante, iria imperar a Ciência no lugar da ideologia, em nome de uma nova política de saúde mental.
Tal extravagância sinistra só é possível porque não estamos mais em uma democracia. Seu autor é o mesmo Ministério da Saúde do colapso de oxigênio em Manaus, da imposição do uso de cloroquina, da falta de vacinas e dos 250.000 brasileiros mortos pela Covid-19 [dado de quando a entrevista foi concedida, em 23-02-2021].
IHU On-Line – As políticas de saúde mental também estão no bojo do Sistema Único de Saúde – SUS. Como todo o sistema vem sofrendo ataques e desmontes, de que forma a saúde mental tem sido impactada?
Pedro Delgado – Se não for revogada, a EC 95 vai asfixiar definitivamente o SUS. A proposta que acaba com os pisos constitucionais para saúde e educação, apresentada pelo governo agora, em fevereiro de 2021, visa completar este intento de desfinanciamento do SUS. É este o objetivo dos governos Temer e Bolsonaro, e de seus apoiadores na grande imprensa (liderados pela Rede Globo), no mercado financeiro (representado no governo pelo ministro Guedes), do grande segmento dos planos de saúde, das corporações profissionais reacionárias, como as atuais entidades médicas.
Ninguém quer o SUS, todos querem vender planos de saúde à classe média e mercadorizar drasticamente todas as ações pequenas e grandes da prática em saúde. O modelo é o selvagem mercado de planos de saúde dos Estados Unidos. É um paradoxo, porque o projeto ultraneoliberal de Temer, Bolsonaro e seus apoiadores torna a população cada vez mais desempregada, mais pobre, mais dependente, menos apta a comprar planos de saúde. A classe média está migrando dos planos caros para os mais baratos, e destes para plano nenhum, enquanto o SUS é destruído. O cenário é da Terra Desolada de T.S. Eliot.
IHU On-Line – Que outras ações e políticas públicas ligadas à saúde mental vêm sofrendo ataques?
Pedro Delgado – A política de saúde mental é intersetorial e articulada com as políticas de bem-estar social, segurança pública cidadã, pleno emprego, direito à habitação, segurança alimentar. Todas essas políticas vêm sendo destruídas ponto a ponto no governo de destruição nacional de Bolsonaro e seus apoiadores. Essa desconstrução drástica do projeto de bem-estar social oriundo da Constituição de 1988 atinge diretamente a saúde mental.
Cito também alguns fatos específicos:
1) tornou-se claro que a saúde pública foi esvaziada de suas responsabilidades na política de álcool e outras drogas, que ficou restrita ao Ministério da Cidadania e ao financiamento das comunidades terapêuticas. Em 09/02/21, o Diário Oficial publicou a habilitação de mais 492 comunidades terapêuticas: nenhum pesquisador do nosso campo de política de saúde mental é capaz de estimar quantas são as comunidades terapêuticas hoje, e quanto é o financiamento anual do governo Bolsonaro para estas instituições de confinamento. Em 2019 foi aprovada nova legislação sobre drogas, ainda mais proibicionista e draconiana que as anteriores. A política de redução de danos está sob ataque intenso dos fundamentalistas do Ministério da Cidadania, o que é um golpe profundo na política de saúde mental.
2) em 2019 o governo simplesmente revogou o Programa Nacional de Apoio ao Associativismo e Cooperativismo Social – Pronacoop Social, e não colocou nada no lugar. Na prática, isto extingue a possibilidade de ações sustentáveis de cooperativismo social e economia solidária, um dos componentes mais promissores da política de saúde mental, desde 2005, no primeiro governo Lula.
3) a mudança da Política Nacional de Atenção Básica – Pnab, com seu enfraquecimento, atinge diretamente a articulação da saúde mental com as equipes de saúde da família, articulação que é essencial para assegurar a ampliação do acesso ao tratamento em saúde mental.
IHU On-Line – Quais avanços, em termos políticos, de atenção à saúde mental os Caps trouxeram? O que seu desmonte pode representar?
Pedro Delgado – No final de 2018, havia 2.540 Caps em funcionamento no país. Naquele ano, apenas 30 novos Caps foram implantados, significando uma drástica redução na média anual de incremento destes serviços (esta média, até 2015, era de 120 novos Caps ao ano). Mesmo com todo o desfinanciamento e sucateamento, os 2.540 Caps são a fronteira viva da resistência contra o desmonte da saúde mental. Não é por acaso que o atual Ministério da Saúde, com seus assessores militares e da corporação médica, busca a todo momento, em declarações públicas, desqualificar os Caps, chegando a afirmar que eles não são “serviços de tratamento” mas “apenas” de reabilitação. Como se tratamento e reabilitação fossem coisas distintas. Para esses burocratas conservadores, tratamento é o velhíssimo ambulatório distribuidor de remédios, ou o hospital psiquiátrico convencional.
Com certeza, a resistência está nos Caps. No estado do Rio de Janeiro, em dezembro de 2019, foi criado um coletivo chamado Frente Estamira de Caps – Resistência e Invenção, que reúne trabalhadores, usuários e familiares dos 188 Caps daquele Estado. Hoje, certamente os Caps são a fronteira da resistência. Até que a democracia ressurja no horizonte.
IHU On-Line – Além do sucateamento dos Caps e dos poucos recursos para consultas e tratamentos psicológicos e psiquiátricos, para muitos é desafiador acessar essas políticas de saúde mental. E, ainda, mesmo os planos privados de saúde limitam consultas e tendem a levar os pacientes muito mais para medicalização do que para outras terapias. Por que a atenção à saúde mental parece estar sempre em segundo plano, quase nunca compreendida plenamente, seja nos sistemas públicos ou privados de saúde?
Pedro Delgado – É um fato que a saúde mental aparece de forma subalterna na agenda da saúde pública, mesmo que tenha sido prioridade em algumas experiências (foi prioridade nos governos Lula e Dilma, foi prioridade no governo de David Capistrano, em Santos, no início dos anos 1990; outras experiências municipais do SUS deram destaque político e financeiro à saúde mental). Como regra, a saúde mental é invisível, não faz pressão real sobre os prefeitos, e não tem sua complexidade plenamente compreendida. Na verdade, nosso conceito-chave da atenção psicossocial no território não é facilmente apreensível pelo administrador público. Ocorrem também divergências, de certa forma previsíveis, sobre as estratégias terapêuticas da atenção psicossocial, como é o caso da baixa aceitação da redução de danos pela maioria dos gestores de saúde.
Os planos de saúde, há muito tempo, e com a complacência das agências de controle, oferecem “pacotes” muito restritivos e inadequados para as necessidades do tratamento em saúde mental, que, na maior parte dos casos, precisa ser de longo prazo.
IHU On-Line – Durante a pandemia, vemos notícias sobre dezenas de pesquisas que apontam que a saúde mental dos brasileiros também tem sido impactada. Quais os desafios para transformar essas muitas pesquisas em políticas de assistência efetivas?
Pedro Delgado – Inicialmente, gostaria de comentar que, de fato, há uma imensa e inédita profusão de pesquisas científicas sobre a pandemia de Covid-19, desde que o problema surgiu, na província chinesa de Wuhan, em novembro de 2019. Se houve uma reação rápida e de grande impacto social em relação à pandemia, foi a da comunidade científica, especialmente os estudos sobre ciclo epidemiológico, transmissão, prevenção do contágio, fisiopatologia dos casos graves, tratamento e produção de vacinas.
Agora, uma nova frente de pesquisa dedica-se aos estudos sobre a síndrome pós-Covid, demonstrando a gravidade da doença, suas sequelas e seu às vezes longo período de recuperação. Felizmente, mais de 85% dos casos têm uma evolução muito rápida e benigna, para cura completa. Mas a magnitude da pandemia, que já acometeu 112 milhões de pessoas no mundo, causando a morte de 2 milhões e 472 mil (OMS, 24/02/21), tem se mostrado devastadora para a humanidade. É uma tragédia mundial.
Os anos de 2020 e 2021 serão lembrados por gerações como os anos terríveis da morte, do luto, do medo, da irresponsabilidade dos governos, mas igualmente da empatia, resistência e ações solidárias das comunidades. Afirmo que hoje, especialmente com a situação de desmantelamento da saúde pública que vive o Brasil e o negacionismo genocida do governo federal (que não foi capaz sequer de prover oxigênio para os serviços de saúde de Manaus, e distribuiu medicamentos ineficazes para iludir a população), a principal luta política de todos os cidadãos responsáveis é VACINA PARA TODOS, e a defesa do SUS.
Impactos na saúde mental
O impacto sobre a saúde mental da população é muito claro, e está evidenciado em inúmeros estudos ao redor do mundo e no Brasil. Estamos diante de uma imensa catástrofe sanitária e social, que produz um sentimento de medo, insegurança e desamparo. A morte de pessoas queridas, e a impossibilidade de fazer os ritos de despedida, afeta profundamente a todos, e terá repercussões psicossociais por muito tempo, talvez anos. A crise econômica e social decorrente da pandemia agrava essa situação de estresse individual e coletivo. As medidas de isolamento social, necessárias para diminuir a velocidade de propagação do vírus, geram efeitos sobre o bem-estar psíquico e sobre o ambiente familiar, acentuando experiências de solidão, de tensão familiar, de frustração.
Além do aumento das situações de sofrimento mental, demandando atenção adequada nos serviços públicos, observamos o agravamento das condições clínicas de pessoas já anteriormente afetadas por problemas mentais, e que enfrentam agora importantes barreiras de acesso a seu tratamento, com a restrição de horário de atendimento nos Caps, dificuldades de realizarem atendimento remoto, ausência de política efetiva de inclusão digital, restrição na dispensação de medicamentos de uso prolongado.
É preciso destacar outra face da pandemia, que afeta diretamente os profissionais do campo da saúde – médicos, enfermeiros, agentes comunitários de saúde, técnicos de enfermagem, cuidadores, profissionais de limpeza e manutenção de ambientes hospitalares. Tenho conhecimento de dados preliminares de uma pesquisa nacional sobre adoecimento e morte de trabalhadores da área da saúde no Brasil que revelam uma tragédia ainda oculta, que é fruto da gravidade da pandemia, mas igualmente do descaso das autoridades sanitárias no contexto atual do nosso país.
Profusão de pesquisas
Não vejo risco na divulgação de uma “avalanche” de dados e pesquisas, se forem corretas e criteriosas. Vejo risco no negacionismo, nas informações falsas, na disseminação de um comportamento que põe em risco a própria vida e a vida dos semelhantes, como as aglomerações e a recusa ao uso de máscaras e de realizar os cuidados de isolamento social.
As pesquisas podem transformar-se em políticas efetivas? Certamente, mas é importante que, para isso, sejam desenhadas com base em prioridades da saúde e com sensibilidade social, e que encontrem condições materiais de implementação. Ora, estamos vivendo a destruição do nosso sistema nacional de ciência e tecnologia, e igualmente um desmantelamento do SUS, além de ameaças a todas as políticas sociais. Infelizmente, essa pergunta tão decisiva, sobre o alcance social das pesquisas científicas, não pode ser respondida sem o componente decisivo da política. O cenário hoje, no Brasil, tanto na área de pesquisa e formação, especialmente nas universidades públicas, como na saúde pública, é de resistência e luta sem trégua. A pandemia atingiu nosso país em um dos piores momentos de sua história institucional.
IHU On-Line – O senhor acredita que a experiência da pandemia deve mudar a relação das pessoas com as questões da saúde mental?
Pedro Delgado – Já está mudando, e há mudanças muito positivas, apesar do cenário de agravamento do sofrimento social. Os serviços (sempre me refiro ao sistema público de saúde) são obrigados a desenvolver inovações em suas estratégias terapêuticas, não apenas através de formas de atendimento remoto, mas igualmente desenvolvendo as potencialidades de pessoas da família ou grupo social para atuarem como parceiros do cuidado. Ações deslocadas do serviço para a casa são cada vez mais frequentes.
Hoje mesmo ouvi a descrição de uma experiência denominada “Caps em sua casa”, com a construção de itinerários terapêuticos que não haviam sido pensados antes. É necessário estar aberto a uma imensa criatividade e compartilhamento de saberes. A saúde mental é muito rica nesses desenvolvimentos, pelo menos a saúde mental praticada pela atenção psicossocial, que sempre busca o protagonismo dos usuários e familiares no ofício do cuidado.
Há outra dimensão que vejo se desenvolver. A perspectiva do autocuidado, da empatia, da solidariedade, da imersão na cultura e na sensibilidade estética, da espiritualidade. Tal perspectiva vem sendo incorporada como dimensões muito relevantes do bem-estar mental. Com certeza haverá mudanças profundas no modo de funcionamento da atenção psicossocial nos territórios, trazidas pelo aprendizado que a situação trágica da pandemia está nos proporcionando.
IHU On-Line – Crianças fora da escola, pais perdendo os empregos e ainda tendo de administrar a vida familiar, o medo, a iminência da presença da morte são experiências que temos vivido. Quais os custos sociais dessas experiências de tempos pandêmicos?
Pedro Delgado – Nossa rotina diária ainda será impactada pela pandemia por pelo menos um ano e meio mais, no melhor cenário, de vacinação para todos, políticas de proteção financeira (auxílio emergencial), qualificação do ensino remoto, recuperação do oxigênio democrático, ações incisivas de bem-estar social, combate à fome e à miséria.
Há uma indagação de fundo, inevitável. Qual será nosso futuro? Nosso país está diante de uma escolha como sociedade: ou a devastação, ou a solidariedade econômica e social. A política de restrição brutal do Estado de bem-estar, de desemprego estrutural e degradação da renda, como praticada pelo governo Bolsonaro-Guedes, com apoio do oligopólio de comunicação social, do setor financeiro e do sistema de justiça, está dirigindo o país para um cenário de miséria, violência e barbárie. A catástrofe da pandemia só vem acelerar tragicamente este itinerário. O governo atual e seus apoiadores já tomaram sua decisão, de aprofundar a tragédia social, em nome da manutenção do ultraneoliberalismo. O campo da saúde mental continuará sua resistência, assim como os movimentos sociais da cidade e do campo. Estamos diante de uma escolha e uma decisão: este é o dilema ético do Brasil hoje.
IHU On-Line – Quais os caminhos para fortalecer as políticas de atenção à saúde mental? Como construir saídas para as máculas da pandemia e fortalecer as redes de atenção à saúde mental?
Pedro Delgado – Permitam-me relatar a experiência de coletivo de trabalhadores, usuários e familiares da saúde, a Frente Estamira de Caps, criada no estado do Rio de Janeiro em dezembro de 2019, para articular ações de defesa da atenção psicossocial e do SUS, e construir espaços de acolhimento e ações solidárias. Que estamos vendo, após um ano de pandemia? Nunca os ataques à política de saúde mental foram tão violentos e tão danosos como agora, e a cada dia novas notícias aparecem, dando conta de um projeto em andamento de desmonte dos Caps, dos consultórios na rua, residências terapêuticas, centros de acolhimento, núcleos de apoio à atenção psicossocial, saúde mental na atenção básica.
É inevitável que as ações de defesa da saúde mental tenham que enfrentar dois inimigos poderosos: a pandemia e o desmantelamento da política de reforma psiquiátrica. Neste cenário tão inóspito, a resistência como estratégia e a invenção como método têm se revelado o caminho para fortalecer a solidariedade e a esperança. A saúde mental está cada vez mais próxima das comunidades, das lutas sociais, das frentes de defesa da democracia. Esse é o caminho da esperança: luta diária, empatia com o sofrimento, solidariedade, alegria, resistência.