O Dia Internacional da Mulher na visão de Anielle Franco*
Neste 8 de março, Dia Internacional da Mulher, é importante destacar que nossos passos vêm de longe! Em um ano repleto de desafios para a população, com recorde de número de mortes por Covid-19, e com o avanço da desigualdade, da violência doméstica, das operações policiais em favelas, do total descaso e projeto de morte alimentado pelo governo federal, foram as mulheres que lideraram os processos de resistência e produção de alternativas de vida em diversas cidades, favelas e periferias do Brasil.
Foi Lélia Gonzalez, ativista e intelectual negra, referência para muitas de nós, que apontou a importância de se defender um feminismo afro-latino-americano, uma luta comprometida com a libertação de nosso povo e o rompimento de processos de opressão que são conectados a essa estrutura em que vivemos, como a raça, a classe e o patriarcado.
“A movimentação de mulheres negras nas esferas de decisão é a possibilidade de pensarmos novos marcos de construção da nossa sociedade.”
Costumo pensar que “liberdade” pode ter muitos significados no mundo hoje, mas para a população negra esta definição sempre foi muito bem conhecida: almejar acessar o mundo com igualdade e equidade. E isso tem sido uma luta de séculos em nosso país. E, para nós, mulheres negras, é algo que construímos com luta, suor e construção coletiva. Vejo que comecei a compreender melhor nos últimos anos a importância de se olhar para trás para entender os caminhos que podemos escolher seguir hoje na busca por uma mudança estrutural significativa em nosso país.
Para começar, quero dizer que um dos grandes pilares da luta que trago em meu nome, e também no nome de minha irmã, Marielle Franco, é a nossa família. Uma família negra, favelada, com fortes traços matriarcais, reduto de mulheres fortes. Mari e eu nascemos deste espaço, e seu legado é a multiplicação do protagonismo de mulheres negras à frente da transformação social no país. Estes corpos, suas experiências, construções e lutas inspirados na Mari movem as estruturas cotidianas que tentam inviabilizar a vida da população negra.
Perdida para sempre há três anos, o legado que Marielle deixou impacta de forma profunda a construção de outras perspectivas de futuro e de sociedade, onde nós, mulheres negras, temos papel primordial na interlocução da mudança e por um mundo mais justo e igualitário. Este legado da Mari se traduz no feminismo negro. Esse feminismo que evidencia que as opressões de raça, classe e gênero estão conectadas, só havendo libertação para nós, mulheres negras, quando as amarras racistas, patriarcais e de classe são destruídas. Marielle trazia em si este signo e sua atuação era do lado das mulheres negras, teorizando e construindo outras práticas baseadas na construção coletiva e na ancestralidade. Ela era uma mulheraça, e seu legado se traduz a partir destes princípios, trazendo contribuições para o feminismo negro em esfera global.
E é este feminismo que nos dá pistas sobre qual será o “novo normal” que demandamos após a pandemia, sob quais corpos queremos ver on poder de liderar a mudança. A luta contra as consequências da Covid-19 em nosso país está sendo liderada por mulheres negras no front. Munidas de saber e prática, a experiência política das mulheres negras deve ser reconhecida e valorizada. O engajamento destes corpos nos espaços de decisão é uma forma de romper o apagamento estrutural e, também, é reconhecer que a construção de soluções verdadeiramente efetivas para toda a sociedade será feita a partir de nós.
O Instituto Marielle Franco, organização que foi criada por nossa família para espalhar o legado, defender a memória, lutar por justiça e regar as sementes de Marielle, lançou um relatório com o movimento Mulheres Negras Decidem chamado Para Onde Vamos. O relatório aponta que a atuação das mulheres negras poderá contribuir para estilhaçar as ilusões que insistem em nos colocar apenas como coadjuvantes na sociedade, movendo as estruturas desse sistema racista e solidificando nosso papel como protagonistas da frente de combate ao fascismo, ao racismo e ao patriarcado. A movimentação de mulheres negras nas esferas de decisão é a possibilidade de pensarmos novos marcos de construção da nossa sociedade.
E o sentido de organização e liderança presente em Mari e em todas as mulheres negras que hoje estão liderando processos de mudanças é o retrato de um passado recente, repleto de famílias de mulheres fortes que enfrentaram as mais diversas adversidades. Um passado doloroso em que aprendemos com os passos de nossas mais velhas as estratégias que devem ser capazes de recolocar e valorizar nosso papel enquanto agentes importantes da transformação.
“O engajamento destes corpos… é uma forma de romper o apagamento estrutural e, também, é reconhecer que a construção de soluções verdadeiramente efetivas para toda a sociedade será feita a partir de nós.”
E que neste #8M possamos reforçar que nossa luta, nossa vida, nossa escrevivência, nossos passos importam. Juntas, coletivamente, jamais seremos interrompidas.
*Cria da favela da Maré, é formada em Jornalismo e Inglês pela Universidade Central de Carolina do Norte e em Inglês/Literaturas pela UERJ. É mestra em Jornalismo e Inglês pela Universidade de Florida A&M e atualmente é mestranda no CEFET-RJ, onde cursa Relações Étnico-Raciais com o foco na identidade das mulheres negras através da memória e do legado de Marielle Franco, sua irmã e inspiração diária.
Arte original por Raquel Batista, artista visual que trabalha como fotógrafa e ilustradora. É estudante na Escola de Belas Artes da UFRJ, mulher negra e moradora da Zona Oeste do Rio.