Policial civil Leonel Radde é um antifascista declarado e foi eleito vereador com esse discurso. Em entrevista, ele diz que a direita conseguiu monopolizar debate e construir a ideia de que só ela sabe fazer segurança.
Por Philipp Lichterbeck, na DW
A questão da segurança pública é um tema que preocupa os brasileiros como quase nenhum outro. No ano passado, cerca de 45 mil pessoas foram assassinadas, e incontáveis roubos, estupros, furtos e atos de violência acontecem todos os dias. Para muitos, o crime não é algo abstrato, mas uma realidade. A discussão sobre a segurança pública é, portanto, emocional. Ditados como “bandido bom, bandido morto” estão na boca de muitos, popularizados pelo presidente Jair Bolsonaro, que gosta de se mostrar como um amigo da polícia.
“A direita conseguiu monopolizar o debate”, diz o policial civil Leonel Radde, em entrevista à DW Brasil. “A esquerda precisa mudar o seu discurso sobre segurança pública se quiser convencer os eleitores.”
Radde é uma exceção entre os policiais do Brasil, que têm a reputação de serem partidários de Bolsonaro. O policial de 40 anos, de Porto Alegre, é um antifascista declarado. Sua posição política é abertamente conhecida nas redes sociais. Ele grava vídeos, faz lives, escreve no Twitter. Usa frequentemente uma camiseta com a palavra, em letra maiúsculas: “antifascismo”.
No ano passado, Radde foi eleito vereador pelo PT em Porto Alegre. “Eu reparei que a esquerda debate muito sobre segurança pública mas não tem representantes na segurança pública”, diz. “Acho que as pessoas repararam que faltava uma voz como a minha na esquerda”.
Radde fez muitos inimigos com sua postura política. Recebeu inúmeras ameaças de fascistas e de círculos policiais. Sua ascensão dentro da polícia civil, denuncia ele, foi impedida pelas mais altas autoridades políticas, apesar de seu bom trabalho como policial.
Mas não é apenas a direita que critica Radde, cuja mãe foi cofundadora do PT no Rio Grande do Sul. “Na internet, eu sou muito mais atacado pela extrema esquerda”, diz ele. “Parece que sou esquerda demais para a polícia e policial demais para a esquerda.”
Radde deixa claro que nem todos os policiais são bolsonaristas. “Até na PM existem muitos policiais que pensam diferente. Não são necessariamente da esquerda mas não concordam com o pensamento bolsonarista. Eles não se posicionam porque sabem que isso pode ter um preço alto.”
Radde mantém o equilíbrio emocional praticando aikido e zen-budismo. “Você tem que saber quando é melhor entrar com agressividade e quando a agressividade te enfraquece.”
Agora ele está pensando em concorrer como deputado estadual no Rio Grande do Sul ou como deputado federal. “Eu poderia demonstrar que segurança pública não é hegemonia da direita”, afirma.
Nas eleições de 2020 você foi eleito vereador pelo PT em Porto Alegre. Como está sendo a experiência?
Para ser sincero, existe uma sensação de impotência. Em Porto Alegre tem uma maioria conservadora brutal e de certa forma intolerante. Portanto, não tem muitas possibilidades para mudar algo. Você pode apresentar a melhor proposta, e aquilo que está sendo apresentado pelo outro lado pode ser o maior absurdo, mas o resultado não vai diferir. O absurdo vai ganhar porque tem um acordo que existe entre os grupos no poder.
Nos últimos anos muitos policiais entraram na política brasileira surfando na onda ultraconservadora. Você, por outro lado, é um policial de esquerda. Por que decidiu entrar na questão eleitoral?
Primeiro, por uma necessidade de autopreservação. Em 2014 eu comecei a sofrer perseguições dentro da Polícia Civil porque havia gravado um vídeo em apoio ao governador Tarso Genro do PT. Quando o vídeo viralizou, os delegados que apoiavam o Ivo Sartori, do PMDB, decidiram que eu estava causando um problema. Eu sempre estava vinculado a causas sociais. Minha mãe foi uma das fundadoras do PT no Rio Grande do Sul. Meu pai era diretor de teatro e brizolista. É o meu direito expressar os meus pontos de vista políticos. Mas a Polícia Civil abriu uma sindicância contra mim. A segunda sindicância veio porque eu critiquei a primeira. E a terceira veio em 2015 quando critiquei o governo Sartori. Pra mim foi a gota d’água. Enviaram uma viatura para me entregar uma intimação. Entraram na minha delegacia como se eu fosse um criminoso. Ao final as sindicâncias foram arquivadas. Mas foi um aviso. Queriam prejudicar a minha carreira. Eu decidi entrar na política e me candidatei duas vezes sem sucesso, em 2016 e 2018.
E finalmente você conseguiu, em 2020. Por quê?
Eu reparei que a esquerda debate muito sobre segurança pública mas não tem representantes na segurança pública. É grave porque a segurança é um ponto principal desde as eleições de 2016. Existe essa noção errada de que só a direita sabe como trazer segurança. Era óbvio que a esquerda precisava de um representante que fosse capaz de falar sobre esse tema com base na própria experiência. Em geral, a esquerda precisa de um discurso diferente sobre segurança. Não adianta dizer que a polícia é truculenta e mata jovens negros da periferia, embora isso ocorra. Mas a própria periferia quer segurança, e a esquerda perdeu a periferia por isso. Acho que as pessoas repararam que faltava uma voz como a minha na esquerda.
Você deve enfrentar muitas reações desagradáveis por seu posicionamento político.
É claro que fiz muitos inimigos durante a minha carreira. Como policial eu solucionei vários casos de violência racista e fascista e consegui a condenação desses caras, algo que não é muito fácil no nosso sistema judicial. Quando esses grupos da extrema direita não conseguem mais te atingir nas redes sociais, começam a atacar institucionalmente. Por exemplo, aqui tem um deputado estadual da extrema direita, o Ruy Irigaray do PSL. Ele é suspeito em casos de corrupção e de manter um gabinete ilegal de ódio. O que ele fez? Foi no Ministério Público dizendo que eu era terrorista. Aí chegaram mensagens para mim no meu Whatsapp particular de neonazistas dizendo que “a gente vai te matar” e áudios vazados de grupos restritos de policiais, demonstrando que estavam infiltrados. Aprendi como manter a calma e me defender.
Os ataques vêm apenas da direita?
Infelizmente, não. Na internet, eu sou muito mais atacado pela extrema esquerda. Parece que sou esquerda demais para a polícia e policial demais para a esquerda. Para eles, qualquer coisa que eu falo automaticamente é racismo ou fascismo.
Você foi criticado por dizer que não é a polícia que mata os jovens negros no Brasil, mas o tráfico de drogas. Você pode explicar isso.
Eu sempre defendi a descriminalização das drogas porque a lei de drogas tem um viés racista. Minha dissertação de mestrado foi sobre vítimas de homicídios e encarceramento. Quem eram as vítimas de homicídios e quem eram os assassinos? Os dados demonstram que mais de 70% dos homicídios em Porto Alegre têm vinculações com disputas do tráfico de drogas. No Rio Grande do Sul 10% da população é autodeclarada negra. Mas 30% dos mortos e dos encarcerados são negros. Proporcionalmente morrem três vezes mais negros por homicídio e a motivação da maioria dos crimes é o tráfico de drogas. Eu fui atacado por falar sobre isso. Sim, é um fato que a nossa polícia é racista porque a nossa sociedade é racista. Mas a maioria das mortes na periferia são causadas pelo tráfico. Tem um youtuber que me atacou por dizer isso. Falou que eu era racista. Já tive problemas com vários influencers que tiram tudo do contexto e te acusam de ser isso ou aquilo. Distorcem as tuas palavras, são pessoas intelectualmente desonestas.
Você é filho de um diretor de teatro e de uma sindicalista. Atuou em peças e em comerciais quando era jovem. Fez faculdade de história, de direito e estudou direitos humanos. Em 2010, ingressou na polícia. É uma escolha bastante surpreendente considerando a sua trajetória e a má reputação da polícia brasileira. O que te atraiu nessa profissão?
Minha mãe disse uma vez que posso escolher qualquer profissão, menos policial. Depois ela compreendeu a minha decisão. Eu entrei na questão policial por causa das artes marciais. Tenho a faixa preta em Aikido. Quando o meu professor começou a dar aulas para profissionais da brigada militar, eu auxiliava ele e comecei me interessar por essa realidade do pessoal da segurança. Decidi fazer um concurso para a Polícia Civil. Pensava naquilo como uma forma de agir sobre as questões da sociedade de uma forma direta: resolver crimes e retirar homicidas. Trabalhei em equipes e departamentos muito sérios com policiais dedicados. A gente trouxe um benefício para a sociedade. Isso é o dever do policial e não deve ser uma questão partidária.
Quantos policiais existem que pensam como você mas estão com medo de se manifestar? Sobretudo a PM é conhecida por atrair pessoas da direita e da extrema direita.
Tem uma diferença considerável entre as diferentes polícias. A PM é mais à direita, a Polícia Civil é menos. Mas até na PM existem muitos policiais que pensam diferente. Não são da esquerda mas não concordam com o pensamento bolsonarista. Eles não se posicionam porque sabem que isso pode ter um preço alto. Os grupos intolerantes da polícia são muito barulhentos e violentos. Os caras da extrema direita se manifestam sempre sem pudor. Então você acaba perdendo. Por exemplo, eu tinha feito a maior operação do meu departamento em 2019, prendemos mais de 25 criminosos. Mas quando saiu a lista de promoções – e eu tinha a pontuação certa para ser promovido – fui barrado por intervenção da cúpula do governo Eduardo Leite por ser anti-fascista. Os policiais da direita não têm esse problema. É muito assustador que a polícia esteja se vinculando cada vez mais ao governo Bolsonaro. A gente tem que batalhar para que ela fique sendo uma polícia de estado. E que ela seja uma polícia cidadã de fato. Por isso eu defendo a desmilitarização.
Os oponentes da desmilitarização argumentam que o crime organizado no Brasil é tão poderoso e tão fortemente armado que você quase precisa de um exército para combatê-lo?
Essa é uma lógica deturpada. Com a desmilitarização a polícia não vai perder a característica de ostensividade. Ela vai continuar usando força, farda e armamento. O que vai mudar é a questão da hierarquia e da formação. Tem que desvincular o exército da polícia. A polícia rodoviária federal já funciona fora da lógica militar e com carreira única. É uma polícia bem funcional e sem esse excessos de violência da PM. O grande problema é a formação. Um policial militar é formado na base da subordinação. Ele é humilhado e vai humilhar. Aprende que tem amigos e inimigos mas não aprende que o cidadão tem direitos. Existe uma lógica de guerra. Os caras saem da academia pensando que precisam demonstrar que eles têm poder. E cometem abusos porque muitas vezes sofrem abusos e não são vistos como trabalhadores com direitos.
Você está pensando em se candidatar ao nível estadual ou federal?
Eu acho que seria muito importante ter uma candidatura em 2022 de um policial de esquerda. Precisamos demonstrar que segurança pública não é hegemonia da direita. Mas é uma missão difícil porque a pauta da esquerda está muito virada para questões identitárias. Elas têm muita relevância, mas como branco e policial não me encaixo facilmente nisso. Também voltaria para a polícia, mas a corporação não me perdoaria por meu posicionamento político. Não teria muitas possibilidades para subir.
Você é zen-budista e vegetariano. Explica como isso ajuda no seu trabalho.
Eu sou vegetariano há 24 anos. Quando virei vegetariano também parei de beber álcool e comecei a praticar artes marciais japonesas que são ligadas ao zen-budismo. Acho que o zen-budismo tem uma conexão com a função policial porque trabalha o autocontrole. Por exemplo, participei de um curso sobre operações táticas. Nesse curso você tem que aguentar muita pressão psicológica, passar por situações extremas, você é privado de sono e comida. Tem gás, spray de pimenta, bomba, tiros. No meu curso éramos 125 inscritos e no final se formavam 10. Eu era um deles. O zen-budismo me ajudou a manter o equilíbrio. Hoje, eu uso meus aprendizados também na política. Você tem que saber quando é melhor entrar com agressividade para não ser atropelado – e quando a agressividade te enfraquece. Tudo é um Yin e um Yang.
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Foto: Leonel Radde usa frequentemente uma camiseta com a palavra “antifascimo”.