A fábula do Polvo e da Piranha: Lula e Fred. Por José Ribamar Bessa Freire

No Taqui Pra Ti

Desesperado com a volta de Lula ao cenário político nacional, um sobrinho querido me bombardeou com memes e mensagens enviadas a ele por milícias digitais e grupos de extrema direita, que tratavam o ex-presidente como ladrão.  Fred – esse é o seu nome – frequenta a Igreja Universal do bispo Macedo, paga o dízimo, não perde as atrações da Rede Aleluia e só dorme depois de assistir, de madrugada, o programa Inteligência e Fé da TV Record. Incomodado como todos nós com a corrupção, ele crê piamente, no entanto, que Bolsonaro vai acabar com ela. Fora desse contexto no qual sua mente foi capturada pelo capiroto, ele é inventivo e afetuoso.  

É possível um bolsonarista ser amado por quem luta contra a desigualdade social? É sim. Muitas famílias vivem a contradição deste locutor que vos fala. Fred, 42 anos, pai de três filhos, envenenado diariamente com centenas de fake news, nelas acredita como um ato de fé. Não adianta sua mãe, seu irmão e seu tio, que lhe deu amorosamente o primeiro berço, enviar informações documentadas e comprovadas. Ele rejeita todas, muitas delas sem sequer ler. Só acredita em parábolas. Por isso, conto a ele aqui a fábula protagonizada por polvos e piranhas, no tempo em que animais falavam como gente. Foi assim.

O molusco

O Polvo saiu do mar pobre do litoral nordestino seguindo um navio negreiro cheio de araras empoleiradas. Entrou em águas fluviais e, por ser um molusco marinho dotado de extraordinária acuidade visual, foi escolhido pela maioria dos peixes para governar o território aquático de Pindorama. Sua visão binocular lhe permitiu ver que tubarões de dentes afiados e pontiagudos se apropriavam dos alimentos, matando cardumes inteiros de fome. Suas ventosas equipadas com quimiorreceptores lhe permitiram redistribuir comida aos peixes famintos, o que provocou a ira dos tubarões, que não queriam ceder nenhuma migalha de seus privilégios.

Entraram em cena outros dois personagens: o Piranhudo que, em nome do tubaronato, chamou o Bacalhau Seco denominado pelos franceses de Morue e lhe disse:

– Morue, o Polvo não pode voltar a governar o reino de Pindorama. Inventa alguma coisa para aprisioná-lo, que eu te darei uma boa recompensa.

Dito e feito. Entra aqui o quarto personagem dessa história – a Baleia de doze metros encalhada no golfo da Flórida, que orientou o Bacalhau nas técnicas que transformam mentira em verdade.

Com sua voz de marreco, o Bacalhau Seco berrou que o Polvo tinha recebido de propina do Tubarão-Martelo uma morada de pedra e um pedalinho, o que não fazia sentido. Nem precisava. Bastava derramar a mentira pelo cano enferrujado de esgoto que desaguava no mar e mostrá-la diariamente a milhões de peixes. Essa imagem, que ficou gravada na mente dos seres da água, dispensava provas. Provas existem em outras operações: o depósito de R$89.000,00 na conta de Michele feito pelo Pacu Queiroz, que ficou livre. Mas o Polvo foi aprisionado no aquário.

O subserviente Piranhudo pôde, enfim se tornar o dono de Pindorama, com o apoio da Baleia – Baleia First –  de quem puxava o saco, digo, a barbatana. Chamou, então, para administrar a justiça no oceano e rios o Bacalhau, porém – ai porém – sua popularidade ascendente foi vista como uma ameaça ao trono. Por isso, Piranhudo deu um pontapé na bunda do leso do Bacalhau, cujo papel de falsário se esgotara.

Polvos são extremamente inteligentes quando em cativeiro – observam os pesquisadores. Depois de 580 dias preso, o nosso herói levantou a tampa do aquário, desmontou a válvula de reciclagem da água e saiu lépido e fagueiro. Já em liberdade, se deparou com outra realidade. Encontrou as águas dos rios e do mar poluídas com o mercúrio do garimpo e das mineradores, que matavam mais de dois mil seres aquáticos por dia. Os peixes de Pindorama com fome, morriam asfixiados, suas brânquias não conseguiam passar o oxigênio da água para o interior do corpo e nem repassar o dióxido de carbono para a água. O mar não estava mesmo para peixe.

Piranhudo Miliciano

Voraz, sanguinário e predador, o Piranhudo receitou cloro para os peixes – um veneno. Incentivou a aglomeração em áreas poluídas e, no lugar de imunizar e de despoluir a água, estimulou o uso do arpão, que passou a circular livremente. Jurou que as máscaras usadas na cavidade bucal para evitar a contaminação pelo mercúrio provocavam reações adversas. Piranha Júnior 03 mandou que os peixes enfiassem as máscaras no rabo. E todo peixe que fosse imunizado viraria Jacaré ou soltaria borbulhinhas de amor como um gayzinho. Disfarçava as mortes, alegando que não era coveiro, mas cemitérios aquáticos não mentem: quase 300 mil já estavam lá sepultados.

Eis que libertado do aquário, o Polvo usou seus dois olhos, os três corações, os oito braços, os nove dedos, as duas fileiras de fortes ventosas e o cérebro com 500 milhões de neurônios para mostrar que pertencia à família Cephalopoda, aliás, Cephalaphodona. Num discurso célebre, ele diagnosticou o drama de Pindorama. Com seus macro neurônios, aconselhou os peixes a usarem máscaras na cavidade bucal, explicou que os rios estavam dentro de um planeta que era redondo e não plano, orientou a evitarem o cloro, insistiu no distanciamento e indicou a imunização em massa contra o mercúrio homicida, recuperando a imagem do Peixe Gotinha.

Apenas quatro horas após esta fala, o Piranhudo obedeceu as indicações dadas e apareceu ao lado do Tambaqui Pesadelo, do Pirarucu condecorado e de outros esqueletos cartilaginosos fardados – todos eles devidamente mascarados. Fez-se fotografar com um globo terrestre sobre a mesa. Parecia até um inocente Pacu. Com apenas um único discurso, o Polvo começara a ditar princípios de civilidade naquele território aquático desgovernado. O Piranhão seguiu os preceitos do Polvo, fingindo mudar de comportamento. Mas não renunciou aos arpões.

As recaídas, porém, são sucessivas. O Piranhão continua usando sua mandíbula canibalesca e seus dentes serrilhados para rasgar carne e impedir que seu filhote Rachadinha Zero Um seja julgado pela compra de uma mansão no fundo do mar – essa sim com comprovantes. Por outro lado, Piranha Junior Zero Três conspurcou a imagem do Peixe Gotinha, fazendo-o empunhar uma metralhadora e um arpão no lugar da seringa imunizadora.

Nenhum poeta ou artista festejou com poesia e música o Piranhudo, que como um certo coronel “no tiene quien le escriba”. No entanto, muitos poemas e canções celebraram a volta do Polvo, que renovou, enfim, as esperanças de Pindorama. Afinal, se suprimir o “l” de lembrança, Polvo e povo se fundem num corpo só.

E o Fred, qual foi sua reação? Ah, depois eu te conto. Adianto apenas que as pessoas que o amam não desistiram de libertar sua alma intoxicada, aprisionada por fake news e de vaciná-lo contra o bolsovirus.

***

P.S. Nota de Pesar da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB) informa e lamenta profundamente o falecimento de LAURO FIDELIS BANIWA, mais uma vida da COVID-19 e do negacionismo governamental. Lauro faleceu nesta sexta-feira (12), em um hospital de Manaus. Pai do ator, compositor, militante e liderança indígena Fidelis Baniwa, Lauro foi transferido de Santa Isabel do Rio Negro, onde deu início a seu tratamento, para Manaus. Uma grande rede de apoio, que tomou as redes sociais, foi formada para ajudá-lo nessa transferência. Infelizmente, após 28 dias de luta contra o coronavirus em Manaus, ele não resistiu. Deixa filhos e netos. “É muito triste perder um ente querido. Muitos parentes indígenas já se foram. É nosso dever seguir na luta contra o Covid e contra aqueles que irresponsavelmente a negam e a proliferam” – escreveu Fidelis.Que os eternos recebam este guerreiro. 

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