Talíria Petrone, Erica Malunguinho e Leci Brandão contam que Marielle inspirou mulheres negras a entrar para e seguir lutando na política: “Ela é a responsável por esse olhar para a política de forma séria”
Por Caê Vasconcelos, na Ponte
Há três anos, em 14 de março de 2018, a vereadora Marielle Franco foi brutalmente assassinada quando voltava para casa depois de uma atividade com outras mulheres negras no centro da cidade do Rio de Janeiro. Quando a vida de Marielle foi arrancada, ela já era gigante: a vereadora do PSOL foi quinta parlamentar mais bem votada das eleições municipais do Rio de Janeiro em 2016, com 46 mil votos.
Até hoje não se sabe ao certo os motivos que levaram os assassinos de Marielle a tirarem a sua vida, também não se sabe quem está por trás do crime que chocou o país e o mundo. Mas sabemos que a voz da parlamentar nunca foi silenciada, pelo contrário, só ecoou. E ecoou principalmente na política.
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No mesmo ano em que Marielle Franco foi executada, outras mulheres negras foram eleitas para ocupar cargos de deputadas estaduais e federais. Três ex-assessoras de Marielle se tornaram deputadas estaduais pelo PSOL do Rio de Janeiro e entraram para a história da Alerj (Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro): Renata Souza, Monica Francisco e Dani Monteiro. Todas negras e faveladas.
No estado de São Paulo foi a vez de Erica Malunguinho (PSOL), primeira parlamentar trans do Brasil. No âmbito federal, Talíria Petrone e Áurea Carolina, ambas do PSOL, mulheres negras e amigas de Marielle, ocuparam cadeiras na Câmara dos Deputados.
Nas eleições de 2020, 700 candidatos, em mais de 270 cidades brasileiras, assinaram a Agenda Marielle Franco, se comprometendo a seguir pautas antirracistas, feministas e populares a partir do legado de Marielle. Dessas candidaturas, 82 foram eleitas, 58% delas mulheres negras.
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À Ponte, a deputada federal Talíria Petrone, 35 anos, lembra como foi se tornar a vereadora mais votada de Niterói no mesmo ano em que Marielle entrava para a política. “Eu topei a tarefa de me candidatar a vereadora sem nenhuma expectativa de ser eleita”.
Talíria conta que ficou feliz ao ver que Marielle, quem conhecia da época que dava aulas de história no Complexo da Maré, favela onde Marielle foi criada, também havia topado se candidatar. “A nossa missão foi em conjunto”, se recorda.
“Marielle com mais de 40 mil votos no Rio e eu a mais votada de Niterói, para mostrar uma nova possibilidade de a gente fazer política: ocupar o espaço institucional, tão difícil para o nosso corpo, mas de forma de suporte pessoal e afetivo”.
Para isso acontecer, muitas violências precisaram ser travadas, denuncia Talíria. A mais grave foi o assassinato de Marielle. “Foi algo muito escandaloso. Até hoje”.
“Perder o que Marielle significava em vida me fez enfrentar muitos lutos. O luto da amiga, da confidente, da companheira de mandato e essa Marielle que se evidenciou gigante, porque ela já era gigante, e que fortaleceu a luta antirracista mundo afora”.
Para Talíria, a execução de Marielle reforçou a urgência que Franco já gritava no parlamento: “a urgência de enfrentar o genocídio de jovens negros, de ampliar as vozes das mães negras que perdem seus filhos assassinados, enfrentar a lesbofobia, a transfobia, a bifobia, colocar as favelas e periferias no centro”.
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Com isso, avalia Talíria, houve uma reorganização da política brasileira. “Conseguimos ter mais corpos como o de Marielle ocupando esses espaços de poder. Mas isso não é uma vitória, não podemos falar em vitória com um corpo morto três anos depois sem respostas. Podemos falar em resistências como a de Marielle para fazer com que os nossos corpos fiquem vivos”.
Com a execução de Marielle, Talíria se candidatou como deputada federal. Foi eleita com 107.317 votos, mas, a cada dia que passava, começou a ser mais ameaçada de morte. Precisou sair do estado do Rio de Janeiro com o marido e a filha com menos de um ano.
“Não vim com a minha família para onde estou por opção, fomos obrigados a sair por conta das ameaças. Hoje eu ando com escolta parlamentar, não saio de casa sem escolta. Eu morava na cidade que eu nasci e cresci. É uma fratura na democracia, que já é frágil e nunca se consolidou”, lamenta.
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Talíria assegura que toda essa onda de ódio contra ela e outras parlamentares negras, incluindo Marielle, tem a ver com o avanço do bolsonarismo, que “não só explicita um Brasil racista, patriarcal, colonial, escravocrata escondido nos porões, que nunca abandonou a ditadura, como fortalece e aprofunda esse Brasil”.
“Quando um presidente diz as coisas que diz, quando estimula o armamento da população e a violência, ele autoriza toda a população a usar o racismo de forma violenta. A principal tarefa do momento é derrotar o bolsonarismo para podermos seguir lutando pela democracia. Democracia é falar do povo negro, de nós mulheres. Democracia em que nossos corpos não cabem não serve”, completa.
Identidade como fator determinante
Quem também se candidatou a um cargo em 2018, impulsionada pela execução de Marielle Franco, foi Erica Malunguinho, 39 anos, que se tornou a primeira parlamentar trans do país, eleita com 54 mil votos pelo PSOL-SP para ocupar uma das cadeiras da Alesp (Assembleia Legislativa de São Paulo).
Quando decidiu por essa batalha, de se tornar parlamentar, Erica sabia o que poderia enfrentar. “A gente tem uma condição histórica, enquanto mulheres trans e travestis, de um perigo constante, de saber que o seu corpo e a sua existência estão sempre em risco. Isso é uma questão de ordem estrutural e histórica que a gente conhece muito bem”, afirma em entrevista à Ponte.
Com mais visibilidade, mais o risco de atentados, físicos e morais, argumenta Erica. “As pessoas perguntam se eu sinto medo e eu digo que já nasci morta, então o medo não é um sentimento que se cultiva muito em mim. Marielle morreu em 2018, eu fui eleita em 2018”.
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Logo nos primeiros meses de mandato, Erica Malunguinho enfrentou um ataque transfóbico de um colega de Alesp. O deputado Douglas Garcia, do então partido do presidente Jair Bolsonaro, PSL, atacou Erica durante uma plenária alegando que “se um homem que se acha mulher entrar no banheiro em que estiver minha mãe ou irmã, tiro o homem de lá a tapa e depois chamo a polícia”.
Esse ódio, que também é um ódio enfrentado por outras mulheres negras na política que vieram antes, como Benedita da Silva, Leci Brandão, Theodosina Ribeiro, define Erica, tem a ver com a história do país.
“Eu não vou dizer que [antes] era melhor do que agora porque não vivi, mas é muito nítido, para pessoas de esquerda, que o acirramento entre os campos ideológicos nunca foi tão grave como esse agora, com a potencialização das redes sociais que disseminam os discursos de ódio de forma muito mais rápida”.
Erica avalia também que não dá para afastar os fatores identitários desse ódio. “O que fez Marielle ser tão grande é o discurso em relação à negritude, à lesbianidade, à favela. Acrescenta-se a isso a uma estrutura patriarcal de inúmeras opressões. Marielle está presente em um ddiferentes marcos da discriminação: de gênero, de sexualidade e de raça. É inevitável que esse é o plus de Marielle”.
Erica também enxerga que o fato de Marielle ter sido eleita ao lado de Talíria Petrone e Áurea Carolina foi importante. “Isso já indicava para a sociedade brasileira que mulheres negras, embora sendo pouquíssimas dentro de um universo parlamentar gigantesco, estavam chegando e eram combativas em relação às questões de gênero, raça e sexualidade”.
Para a parlamentar, esse acirramento começou com mais força com o impeachment de Dilma Rousseff (PT) em 2016. “Com isso há uma autorização para que a direita repudie os corpos e o fazer político das mulheres de esquerda. Sendo lésbica e negra mais ainda. A morte de Marielle é fruto disso”.
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Identidade, aponta Erica, é mais do que imagem, é “condição histórica, social e política. A afirmação dessas identidades está carregada de lutas históricas, está carregada com aquilo que nos faz identificar como mulher negra, travesti, trans, lésbica, periférica. Isso está carregado de processos históricos e políticos”.
Mas Erica aponta: “Não estamos aqui para reivindicar sobre si, mas reenvidar sobre uma coletividade saudável, que consiga agir sem violências. É sobre nós, mas para a emancipação coletiva”.
“Nossos corpos são intelectos e temos para oferecer para esses espaços [de poder político] o desatar dos nós das violências, que incidiram diretamente sobre os nossos corpos e compreendemos como isso se dá em uma ordem histórica, estrutural e institucional”.
Passos que vêm de longe
Seis anos antes de Marielle ser eleita, Leci Brandão, 76 anos, assumia o seu primeiro mandato como deputada estadual pelo PCdoB-SP. Em 2010, Leci foi eleita com 85 mil votos. Na eleição seguinte, em 2014, foi reeleita com 71 mil votos. No ano em que Marielle foi executada, em 2018, Leci chegava a seu terceiro mandato, eleita com 68 mil votos.
À Ponte, Leci faz questão de lembrar que a sua trajetória começou na música e não na política. “Eu sempre fui marcada como compositora e cantora, sempre foram as lutas sociais, até por causa disso eu tive alguns castigos. Fiquei cinco anos sem gravadora, censurada”.
Tudo isso, pontua Leci, por usar a música como instrumento de luta pelos mais desfavorecidos e das minorias. “Isso era complicado porque não havia nenhuma menina preta ligada às escolas de samba e de repente estava eu lá, fazendo música ligada a um contexto social”.
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Antes de se imaginar ocupando um cargo político, Leci cantava em comícios de Benedita da Silva, ainda durante as campanhas como deputada federal em 1986 e governadora 2001 pelo Rio de Janeiro. “Não só nessas situações, mas eu sempre digo que nas encrencas brasileiras eu estive presente. Sempre cantei por essas coisas”, lembra Leci.
Até se filiar ao PCdoB e se candidatar em 2010, Leci fez um caminho artístico fora de partidos políticos. “Eu não era de nenhum partido político, nunca fui do movimento negro. A minha coisa é a música trazendo questões de todas as minorias. Cantei para as lutas indígenas, cantei para a luta dos professores, cantei pelas Diretas Já. Eu sou preta e cantava o que eu escrevia”.
Leci lembra que em 1988, no centenário da abolição da escravatura, muitas candidaturas negras foram lançadas, mas ninguém foi eleito. “Pensei ‘o que adianta se o país não é consciente para entender que o racismo sempre existiu?’. Mas os grupos continuaram a sua luta”.
Na época da ditatura, em 1976 e 1977, Leci chegou a ter músicas censuradas, mas não chegou a ser presa nem apanhar da polícia, como gosta de destacar. “Era algo mais brando porque eu ficava em cima dos palcos”.
Quando foi eleita, mais uma vez Leci via sua música sendo perseguida. “Só se falava de eu ser do samba, da Mangueira, as pessoas perguntavam se teria samba no meu gabinete e eu dizia que estava aqui para construir projetos de lei para as pautas do povo que eu sempre fui muito ligada: as favelas do Rio de Janeiro e as periferias de São Paulo”.
Logo na primeira entrevista concedida à mídia, lembra Leci, sem recordar para qual veículo, foi questionada se haveria samba e malandros sem seu gabinete. “Respondi à altura. Falei que não tinha samba, tinha pessoas trabalhando para construir os projetos, que não tinham mulatas, mas negras e que eu era uma delas, e que o samba no samba não tem só malandro tinha compositores, velha guarda, a bateria”.
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Para Leci, a potência de Marielle Franco mudou a história da política brasileira. “Eu não a conheci pessoalmente. Eu vim para São Paulo em 1985, pela minha carreira artística, e não voltei para o Rio e acabei me elegendo aqui”, lembra.
“Mas sabia que tinha uma vereadora no Rio de Janeiro que era oriunda da favela e que estava levando pautas de luta para dentro da Câmara dos Vereadores. Um detalhe que me chamou atenção é que ela lutava contra uma coisa chamada milícia. Ela foi uma pessoa que nunca escondeu as pautas sérias que lutava e acabou enfrentando tudo isso”.
A execução de Marielle, se recorda Leci, não chocou apenas o Rio de Janeiro, mas o país inteiro. “A partir daí, ficou nítido que era preciso tomar uma posição, responder a isso e as coisas foram acontecendo de uma forma mais afirmativa”.
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“Muitas meninas negras, meninas mesmo, não só no Rio de Janeiro, mas em todo o país, se mostraram com vontade de entrar para a política. Foi um marco de luta, que infelizmente veio da morte cruel de Marielle. Ela é a responsável desse olhar para a política de forma séria. Foi para além dos partidos. Marielle é um mártir”, define Leci.
“[Depois de Marielle] podem não ter sido todas eleitas, mas que tiveram muitas candidatas em todos os partidos isso aconteceu mesmo. Eu tenho na porta do meu gabinete a plaquinha com o nome da Marielle”, revela.
Leci conta que nunca sofreu ameaças por ser uma parlamentar negra porque já entrou na política perseguida pelas coisas que cantava. “O meu trabalho discográfico, desde o primeiro LP, tem faixas que tem críticas sociais”.
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“Eu trouxe muitas pautas que chamaram a atenção das pessoas por eu vir de origem humilde, sem nenhuma faculdade. Sempre trabalhei, como operária de fábrica, telefonista, servente de escola, tudo isso chamava atenção porque quem tinha a minha caminhada e cantava o que cantava, porque tudo tinha que ser como a sociedade e a branquitude pensam”, aponta.
A parlamentar conta que sofreu ameaças em 2014, logo depois da sua segunda eleição, mas o motivo foi outro: o fato de ser ligada às religiões de matrizes africanas. “Recebi algumas coisas pela internet, ameaças de morte. Na Alesp, me ofereceram segurança, mas eu disse que não precisava porque eu tinha muita fé nos meus orixás”.
Leci, que já viveu os piores momentos da história recente do país, conta que o atual está sendo “insuportável”. “Faz mal para a minha saúde e para a minha cabeça. O pior de tudo é que eu não vejo reação do povo brasileiro, isso antes da pandemia”.
“As pessoas ficam o dia todo ameaçando de um lado e um genocida armando a população de outro. Tudo de ruim essa pessoa tem, eu me recuso a dizer o nome dele. Ele é homofóbico, machista, negacionista, racista”, finaliza.
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Da esquerda para a direita: Talíria Petrone, Erica Malunguinho, Leci Brandão e Marielle Franco | Fotos: Reprodução / Instagram