Novo ataque aéreo com agrotóxicos leva medo e prejuízos a assentados no RS

Avião jogou veneno sobre pessoas, animais, casas e hortas em Nova Santa Rita. Agapan fará uma transmissão ao vivo na segunda-feira (29) em seu canal no YouTube mostrando depoimentos

Por Anahi Fros, na Agapan

Uma sequência de crimes ambientais e humanos tem levado medo, incerteza e inúmeros prejuízos às famílias de agricultores ecologistas do assentamento Santa Rita de Cássia II, em Nova Santa Rita, região metropolitana de Porto Alegre. Mais de cem famílias vêm sofrendo com intoxicações e até perdas totais da produção por conta da pulverização aérea por terceiros de agrotóxicos sobre suas casas, hortas e pomares.

Até o ano passado eles sofriam com a chamada deriva – desvio pelo ar – de veneno aplicado em área vizinha. O problema, que acontecia de forma pontual há cerca de cinco anos, vinha se agravando ao longo do tempo. Mas o pior ainda estava por vir. No dia 17 março, por volta das 15h30min, uma tarde quente e com bastante vento, um avião surpreendeu os moradores ao sobrevoar somente as residências e galpões, jogando veneno propositalmente sobre as construções e plantações e fazendo rasantes, sem se importar com a presença de crianças, adultos e animais.

“Olha, tem brilhante caindo do céu”, chegaram a comentar dois meninos. Inocentes, eles observavam os jatos do líquido que, cintilando em contraste com o sol, se depositavam sobre suas cabeças. Imediatamente, um cheiro forte tomou conta do assentamento e logo começaram os efeitos das intoxicações. São inúmeros os relatos de ânsia de vômito, dor de cabeça, coceira pelo corpo e olhos lacrimejando. Muitos tiveram de ser atendidos na Unidade Básica de Saúde do município. Uma vaca que estava prenha chegou a abortar. Foram registradas ocorrências e aberto inquérito na Polícia Federal. Os efeitos foram tão intensos que, passada uma semana, há quem ainda esteja com sintomas. E o que motivou o ataque em plena luz do dia?

Tudo aponta para uma disputa territorial desigual e retaliação a denúncias feitas pelos assentados a partir de novembro de 2020, quando a passagem de um avião que aplicava agrotóxicos em uma propriedade vizinha, produtora de arroz convencional, deixou um rastro de destruição, queimando folhas de hortaliças e causando a morte de inúmeras variedades, acabando com cultivos do Verão. Uma aeronave chegou a passar novamente pela comunidade dias depois. Um laudo técnico profissional confirmou visualmente a contaminação das hortas por veneno. O documento final ainda é aguardado pelos assentados. Os casos, registrados em boletins de ocorrência e junto aos órgãos competentes, foram levados a público por assentados durante participação na Tribuna Popular da Câmara de Vereadores de Nova Santa Rita no dia 1º de dezembro.

A partir daí, foi ajuizada ação na Justiça Federal pela Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (Agapan), Núcleo Amigos da Terra Brasil, Instituto Preservar, Instituto Gaúcho de Estudos Ambientais (InGá), Cooperativa Central dos Assentamentos do Rio Grande do Sul (Coceargs), Associação Comunitária 29 de Outubro, Associação Brasileira de Agroecologia (ABA) e Associação Amigos do Meio Ambiente (AMA Guaíba) contra a União, o proprietário do imóvel rural vizinho do assentamento, a Fundação Estadual de Proteção Ambiental (Fepam) e o Executivo estadual, pedindo a proibição da utilização de produtos químicos pelo produtor lindeiro. 

No dia 11 de março, em decisão de primeiro grau, a juíza Clarides Rahmeier, da 9ª Vara Federal de Porto Alegre, acatou o pedido e determinou via liminar a suspensão imediata do uso de qualquer tipo de agrotóxico pelo ar ou mesmo solo na fazenda vizinha aos assentamentos, fixou multa de R$100 mil em caso de descumprimento e determinou que a União e o Estado do Rio Grande do Sul entregassem em 30 dias os laudos conclusivos das amostras coletadas em novembro. Eis que cinco dias depois foi registrado o novo sobrevoo, desta vez mirando as residências.

O fazendeiro João Carlos Fontana Hanus, proprietário da área vizinha denunciada, tentou reverter a decisão através de recurso. Na terça-feira, 23 de março, o Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4) reiterou a proibição da pulverização de agrotóxicos com aeronaves nas proximidades dos assentamentos.

O desembargador Cândido Alfredo Leal Júnior, da 4ª Turma do TRF4, manteve boa parte da decisão liminar da juíza, “no intuito de conciliar o direito de agricultura orgânica com a agricultura promovida pelo acusado”, delimitando a proibição, “sob qualquer modalidade de aplicação”, do uso dos compostos 2,4-D e Loyant (composição química Florpirauxifen-Benzil), e também do uso “mediante pulverizações aéreas próximas ao assentamento de agrotóxicos em geral”. No entanto, retira a proibição inicial do uso no solo de outras substâncias. Além disso, determinou que o granjeiro será responsabilizado se outros defensivos agrícolas vierem a danificar o resultado do trabalho dos assentados. 

Segundo Emiliano Maldonado, da Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares (Renap), que representa as famílias, trata-se de uma decisão que manteve a proteção dos agricultores e reconheceu os riscos de danos que a pulverização aérea tem ocasionado na produção agroecológica.

Saúde em risco, contas em atraso e batalha judicial

Além da total insegurança gerada pelo fato de as famílias não saberem quais serão os efeitos a médio e longo prazo gerado pelo veneno, elas enfrentam um baque econômico imenso, com quebras que variam entre 70% a 100% dos plantios, conforme laudo emitido pela Emater/RS-Ascar. Culturas como tomate e feijão tiveram perdas totais. A aplicação de agrotóxicos nas lavouras inviabiliza, por exemplo, a comercialização do arroz e hortifrutigranjeiros, que, por serem orgânicos e certificados, não podem ter qualquer sinal de resíduos químicos.

Estas e outras situações serão mostrados em uma transmissão ao vivo que ocorre na segunda-feira (29), às 19h30min, no canal da Agapan no YouTube, momento no qual será lançado vídeo com depoimentos, seguido de debate entre membros da entidade e convidados.

“Nossas contas estavam todas atrasadas por causa das perdas anteriores e estávamos enfim retomando a produção e colocando tudo em dia. E agora tudo isso acontecendo de novo, mas ainda pior. Não sabemos como vamos pagar os boletos no próximo mês, até mesmo dos insumos. É desanimador”, lamenta uma das produtoras, que prefere não se identificar por medo de mais represálias.

Conselheiro da Agapan e ex-presidente da entidade, Leonardo Melgarejo esteve no assentamento fazendo escutas e prestando solidariedade às famílias na última segunda-feira (22) juntamente com representantes do Fórum Gaúcho de Combate aos Impactos dos Agrotóxicos, do Conselho de Segurança Alimentar e Nutricional do Rio Grande do Sul (Consea-RS) e a Vigilância Sanitária da Secretaria Municipal de Saúde de Nova Santa Rita. Ele gravou uma série de depoimentos, que poderão ser conferidos durante o ao vivo de segunda.

“Ali, o direito constitucional de produzir alimentos sem o uso de veneno está sendo impedido. O direito de respirar com segurança, no próprio pátio, de beber água limpa, na própria fonte, também estão comprometidos. Pensem no estresse daquelas famílias! Que vida é essa e por que isso acontece? Porque somos omissos como sociedade e estamos permitindo que os direitos humanos, os direitos à vida, se façam ameaçados”, critica. Para Melgarejo, é preciso impor limitações aos responsáveis por todo esse drama, acolher os agricultores afetados e eliminar o mau exemplo dos que os estão ameaçando.

“A Agapan tem como lema A VIDA SEMPRE EM PRIMEIRO LUGAR, e por isso está e estará ao lado das famílias de Nova Santa Rita, nesta luta desigual”, afirma.”Não é possível que o direito mais básico de todos, de respirar ar puro, bem como beber água descontaminada, seja atropelado por práticas produtivas ultrapassadas, que utilizam agrotóxicos. E ainda realizadas por poucos contra o restante da população. É um verdadeiro crime contra vida e contra a própria economia”, enfatiza o presidente da Agapan, Francisco Milanez.

Conforme o advogado Emiliano Maldonado, o segundo passo será buscar a indenização dos atingidos. “Primeiramente, entramos com a ação cautelar para garantir que as amostras recolhidas ainda em novembro sejam enviadas para o laboratório da Universidade Federal de Santa Maria em tempo de garantir a vida útil delas e termos em mãos os laudos sobre quais agrotóxicos foram utilizados, e que seja definitivamente proibida a pulverização para evitar novos prejuízos, sendo tomadas as medidas de fiscalização cabíveis”, explica.

Os assentados da região reivindicam a criação de uma lei municipal que proíba a pulverização e o uso de venenos na cidade de Nova Santa Rita, região que é reconhecida nacionalmente pelo plantio agroecológico.

Enviada para Combate Racismo Ambiental por Diogo Rocha.

Foto: Antonio Cruz – Agencia Brasil

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