A minha impressão é a de que o mundo estaria hoje totalmente dominado pelo império alemão, caso os europeus tivessem reagido ao nazisfascismo — campos de concentração, vagões da morte — da mesma forma que estamos reagindo (como sociedade, coletivamente) ao genocídio em curso.
Um colega, o Leo Vini, pergunta em sua página, sobre os que aceitavam aquela ida ao matadouro: “Impotência, conformismo, esperança de que sobreviveriam?”
Chegam relatos de pessoas no exterior, estrangeiros estupefatos com essa matança silenciosa, que perguntam: mas vocês, brasileiros, estão mesmo tão apáticos como está parecendo?
No momento em que escrevo a pergunta acima (e como quase sempre acontece nos meus textos) eu lembro de outra coisa e mudo o rumo do que pensava. Lembrei-me de uma cena do documentário sobre o mutante Arnaldo Baptista, “Loki?”.
Fim dos anos 70, ele estava tocando piano no Teatro Ruth Escobar, no Morro dos Ingleses, em uma peça teatral. E a diretora e as atrizes no palco. A certa altura ele largou o piano e foi para o palco também, dançar, interagir com elas. Mais tarde, eles foram para a escadaria que dá para o Bexiga, bem ao lado. Para conversar, meditar. A certa altura Arnaldo dispara a elas a seguinte pergunta: “Mas como vocês conseguem?”
Elas não entenderam direito, ele repetiu a pergunta: “Mas como vocês conseguem?” Arnaldo disse que não conseguia entender como elas conseguiam suportar aquelas energias tão intensas que fluíam no palco. “Porque no tempo em que eu fiquei lá era como se meu corpo fosse totalmente perfurado”.
Como a gente consegue e como podemos deixar tantos corpos serem perfurados, torturados e triturados sem que se faça algo de muito diferente, sem que alguém tente roubar a arma do guarda no campo de concentração?
Como podemos suportar esses nazistas a debochar de nossas caras, esses psicopatas a empurrar cloroquina em milhões de goelas sem que a gente reaja à altura, sem que a gente escrache os togados e engravatados que permitem esse massacre, que a gente exponha internacionalmente o nome desses outros genocidas?
Que história contaremos a nossos netos? Mentiremos? Diremos a eles que fomos heroicos sem termos sido? Que nos deixamos abater sem a contundência necessária, sem aproveitar momentos históricos, como este, em que o presidente está enfraquecido e parece haver alguma reação em alguns setores da elite?
O que teremos feito nos piores dias da pandemia, o que teremos feito para proteger os mais vulneráveis, não somente as crianças e idosos, mas os adoecidos, inclusive os mentalmente (e profundamente) adoecidos, aqueles que não poderão ser cobrados a respeito?
Qual o grau de entorpecimento que conseguiremos suportar antes de esboçar um grito mais amplo de revolta?
Por que certos campos de resistência que costumamos associar à ideia de esquerda estão tão tímidos, como se pudéssemos esperar alguma mudança eleitoral, como se as eleições de 2022 não estivessem a milênios deste colapso, como se esse cálculo fosse ético, como se isso não fosse abjeto?
Por que não nomeamos Augusto Aras e cada ministro do STF e Arthur Lira e Rodrigo Pacheco como os próximos a responder internacionalmente por esse genocídio, por que eles não ganham esse dedo legítimo na cara, por que esses homens e essas mulheres podem dormir sonos tranquilos como se não fossem também assassinos em série?
Sim, existe gente se mobilizando. E cada uma dessas vozes precisa ser ampliada. Se os demais estão entorpecidos, que arrumem ao menos alguns minutos ou segundos para potencializarem essas causas.
(Porque tem hora que quem está à frente desanima também, pois tenta fazer algo e poucos parecem apoiar ou reagir. E não, não podemos desanimar. É o que eles querem — faz parte intrínseca do extermínio.)
Quem está no comando de algum tipo de resistência precisa também de motivação, isso é algo muito concreto. Que abracemos aqueles que estão com mais forças, que digamos a eles e elas que sim, elas e eles têm nosso apoio incondicional, inclusive para que cada um desses resistentes suba o tom, eleve sua indignação para os níveis compatíveis com a extensão do massacre.
Porque senão (pensem nos alemães e em seus canhões, mas também no que não aconteceu) o bolsonarismo dominará o mundo, com sua mediocridade e tristeza, sua pulsão de morte e seu desprezo pela vida, sua estupidez e seu horror, e daqui a algumas décadas os arqueólogos dessa destruição se sentirão no dever de perguntar:
— Por que aquela geração permitiu tão passivamente que aqueles vagões fossem multiplicados, aqueles vagões repletos de miséria política?
–
Fonte: https://m.facebook.com/story.php?story_fbid=4057082801019957&id=100001548300927