Ao se recusarem a levantar as patentes das vacinas contra a Covid-19, os ocidentais mostraram sua incapacidade de levar em conta as necessidades dos países do Sul, avalia o economista Thomas Piketty, diretor de Estudos da École des Hautes Études en Sciences Sociales, Escola de Economia de Paris, em artigo publicado por Le Monde. A tradução é de André Langer.
A crise da Covid-19, a mais grave crise sanitária mundial em um século, obriga-nos a repensar fundamentalmente a noção de solidariedade internacional. Além do direito de produzir vacinas e equipamentos médicos, é toda a questão do direito dos países pobres de se desenvolverem e de captarem parte das receitas tributárias das multinacionais e dos bilionários do planeta que deve ser questionada. Precisamos abandonar a noção neocolonial de ajuda internacional, paga de boa vontade pelos países ricos, sob seu controle, e passar finalmente para uma lógica de direitos.
Vamos começar pelas vacinas. Há quem argumente (de forma imprudente) que seria inútil suspender os direitos de propriedade sobre as patentes, porque os países pobres seriam incapazes de produzir as preciosas doses. Isso não é verdade. A Índia e a África do Sul têm uma capacidade significativa de produção de vacinas, que poderia ser expandida, e suprimentos médicos podem ser produzidos em quase todos os cantos do mundo. Não é para passar o tempo que esses dois países assumiram a liderança de uma coalizão de cem países para exigir da OMC [Organização Mundial do Comércio] o levantamento excepcional desses direitos de propriedade. Ao se oporem, os países ricos não apenas deixaram o campo aberto para a China e a Rússia: eles perderam uma grande oportunidade de mudar de época e mostrar que sua concepção de multilateralismo não era de sentido único. Esperamos que eles recuem muito rapidamente.
A França e a Europa completamente dominadas
Mas, além desse direito de produzir, é todo o sistema econômico internacional que deve ser repensado em termos de direitos para os países pobres se desenvolverem e não mais se deixarem saquear pelos mais ricos. Em particular, o debate sobre a reforma da tributação internacional não pode ser reduzido a uma discussão entre países ricos com o objetivo de repartir os lucros atualmente localizados nos paraísos fiscais. Esse é todo o problema dos projetos em discussão na OCDE [Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico]. Prevê-se que as multinacionais façam uma única declaração dos seus lucros a nível global, o que por si só é excelente. Mas ao distribuir essa base tributária entre os países, prevê-se o uso de uma mistura de critérios (massa salarial e vendas realizadas nos diferentes territórios) que, na prática, resultará na atribuição aos países ricos de mais de 95% dos lucros realocados, e a não deixar nada além de migalhas para os países pobres. A única maneira de evitar este desastre anunciado é incluir finalmente os países pobres em torno da mesa e repartir os lucros em questão de acordo com a população (pelo menos em parte).
Esse debate também deve ser enquadrado na perspectiva mais ampla de um imposto progressivo sobre as rendas e os patrimônios mais altos, e não apenas um imposto mínimo sobre os lucros das multinacionais. Concretamente, a alíquota mínima de 21% proposta pelo governo Biden constitui um avanço significativo, até porque os Estados Unidos pretendem aplicá-la de imediato, sem esperar a conclusão de um acordo internacional.
Em outras palavras, as subsidiárias de multinacionais estadunidenses estabelecidas na Irlanda (onde a alíquota é de 12%) pagarão imediatamente um imposto adicional de 9% às autoridades fiscais de Washington. A França e a Europa, que continuam defendendo uma alíquota mínima de 12%, que nada mudaria, parecem totalmente dominadas pelos acontecimentos. Mas esse sistema de imposto mínimo para as multinacionais é, no entanto, muito insuficiente se não fizer parte de uma perspectiva mais ambiciosa que visa restaurar a escalada de impostos no nível individual. A OCDE evoca receitas inferiores a 100 bilhões de euros, ou seja, menos de 0,1% do PIB mundial (cerca de 100 trilhões de euros).
Em comparação, um imposto mundial de 2% sobre as fortunas acima de 10 milhões de euros renderia dez vezes mais: 1 trilhão de euros por ano, ou 1% do PIB global, que poderia ser atribuído a cada país proporcionalmente à sua população. Colocando o limite em 2 milhões de euros, aumentaríamos 2% do PIB mundial, ou mesmo 5% com uma escala altamente progressiva para os bilionários. Ao aderir à opção menos ambiciosa, isso seria mais do que suficiente para substituir totalmente toda a ajuda oficial internacional atual, que representa menos de 0,2% do PIB global (e apenas 0,03% para a ajuda humanitária de emergência, como recordava recentemente Pierre Micheletti, presidente da Ação Contra Fome).
Caça às fortunas mal adquiridas
Por que cada país deveria ter direito a uma parcela das receitas arrecadadas das multinacionais e bilionários do planeta?
Em primeiro lugar, porque todo ser humano deve ter um direito mínimo igual à saúde, à educação e ao desenvolvimento.
Em segundo lugar, porque a prosperidade dos países ricos não existiria sem os países pobres: o enriquecimento ocidental sempre se baseou na divisão internacional do trabalho e na exploração desenfreada dos recursos naturais e humanos do planeta.
Certamente, os países ricos poderiam continuar a financiar suas agências de desenvolvimento, se desejassem. Mas isso viria além desse direito irrevogável dos países pobres de desenvolver e construir seu Estado.
Para evitar que o dinheiro seja mal utilizado, também seria necessário generalizar a perseguição a fortunas mal adquiridas, quer venham da África, do Líbano ou de qualquer outro país. O sistema de circulação descontrolada de capital e de opacidade financeira imposto pelo Norte desde os anos 1980 tem contribuído muito para minar o frágil processo de construção do Estado nos países do Sul, e é hora de acabar com isso.
Último ponto: nada impede que todo país rico comece agora a destinar aos países pobres uma fração dos impostos cobrados das multinacionais e dos bilionários. É hora de pegar o novo vento dos Estados Unidos e canalizá-lo na direção do soberanismo apoiado em objetivos universalistas.