por Maíra Mathias e Raquel Torres, em Outra Saúde
SPUTNIK V REPROVADA
Após uma reunião extraordinária de quase cinco horas (vídeo completo aqui; apresentações aqui e aqui), a Diretoria Colegiada da Anvisa negou ontem pedidos de importação emergencial da Sputnik V. A decisão foi unânime, baseada na avaliação das áreas técnicas da agência. Além de dados suficientes para a análise – algo que a Anvisa vinha apontando há tempos – há outros problemas que já haviam sido em parte ventilados recentemente, quando a imprensa obteve laudos internos da Anvisa enviados ao STF.
Na falta do necessário relatório técnico, a Anvisa pediu informações às autoridades russas e a outros países que já aprovaram a vacina, como Argentina e México, e encontrou irregularidades que podem comprometer a segurança, a eficácia e a qualidade do imunizante.
Um ponto muito grave, segundo a o gerente-geral de medicamentos da agência, Gustavo Mendes, é que em todos os lotes analisados foram encontrados adenovírus replicantes. Como se sabe, nessa vacina o adenovírus é usado como vetor, um ‘meio de transporte’ para levar o material genético do coronavírus ao organismo e induzir a resposta imunológica. Mas para isso ser seguro, o vetor precisa estar inativado, incapaz de se replicar. Caso contrário, pode provocar infecções em seres humanos e, de acordo a Anvisa, “causar danos e óbitos, especialmente em pessoas com baixa imunidade e problemas respiratórios, entre outros problemas de saúde”.
Além disso, não foram apresentados estudos clínicos de biodistribuição da vacina, que avaliam como ela e seus componentes se comportam no organismo humano e em animais. Também não há estudos de toxicidade reprodutiva feitos em animais para avaliar se os componentes podem ter impactos na fertilidade.
Foram apontadas ainda falhas no protocolo dos ensaios clínicos: por exemplo, há uma indefinição dos sintomas a serem observados para detectar infecções, do período para realizar o teste PCR para confirmá-las e dos tipos de amostras clínicas coletadas, o que pode gerar falsos negativos e afetar a eficácia observada. Isso não quer dizer que a vacina não seja eficaz – mas que os furos no protocolo tornam os resultados pouco confiáveis.
Outro problema é no registro e avaliação dos eventos adversos: não ficou claro como os participantes foram instruídos a reportá-los, não se informou como os efeitos foram avaliados pela equipe médica e não se apresentou a descrição dos casos para determinar se os efeitos foram causados pela vacina. Houve quatro óbitos no estudo, e a avaliação da relação entre essas mortes e a vacina foi, segundo a Anvisa, limitada. O único ‘efeito adverso de interesse especial’ (ocorrência possivelmente associada à vacina) incluído nos estudos clínicos foi o agravamento da covid-19 em função da aplicação da vacina, o que “impede que sejam identificadas possíveis reações adversas que precisam constar em bula para direcionar a conduta de profissionais de saúde”. E o perfil de segurança não foi analisado por faixa etária ou em pessoas com comorbidades.
Mendes também mencionou falhas no controle de qualidade: “Um exemplo é a falta de informações sobre o controle de possíveis impurezas na vacina. A empresa não demonstrou que controla de forma eficiente o processo para evitar outros vírus contaminantes“. Para completar, ele disse que desde a realização dos ensaios clínicos houve mudanças nos locais de fabricação do IFA e do produto acabado, além da escala de produção e dos testes de controle de qualidade. Não se sabe se o produto vendido hoje é comparável ao usado nos ensaios.
Já a gerente-geral de inspeção e fiscalização, Ana Carolina Marino, disse que a equipe da Anvisa responsável por visitar as fábricas russas foi impedida de entrar em algumas instalações do Instituto Gamaleya, que desenvolve a vacina. Só deu para visitar duas plantas terceirizadas pela Rússia para a produção da vacina pronta e do IFA e, de acordo Marino, não foi possível garantir a qualidade do processo produtivo nesses locais.
Por sua vez, a gerente-geral de monitoramento, Suzie Marie Gomes, afirmou que a análise das informações dos estudos clínicos, do processo produtivo e do andamento da vacinação nos países que já usam a Sputnik V mostraram problemas no desenvolvimento, fabricação e monitoramento do uso.
NOS CONFORMES
Vale lembrar que, em fevereiro, os resultados dos ensaios clínicos com a Sputnik V foram publicados no periódico The Lancet. Na reunião de ontem, Gustavo Mendes ressaltou que “a avaliação sanitária é diferente da feita por uma revista científica. A sanitária precisa ter acesso a todos os dados brutos”. E precisa mesmo – tanto que a aprovação de outros imunizantes por grandes agências como a FDA (dos EUA), a EMA (da União Europeia) e a própria Anvisa tem passado pela entrega prévia dos relatórios completos. O órgão europeu começou sua análise da Sputnik V há quase dois meses, mas ainda não deu nenhum parecer. Ontem, a chanceler alemã Angela Merkel disse que ainda há “perguntas sem resposta” para esse imunizante.
Seria muito importante contar com mais uma vacina no raquítico processo brasileiro de imunização, mas, pela ampla gama de falhas apontadas pela Anvisa, a decisão foi acertada. Ela é uma resposta a um pedido de dez estados, que solicitaram autorização para importar quase 30 milhões de doses. Mas havia outros interessados também. Até o momento, 14 estados enviaram pedidos de importação da Sputnik V para a Anvisa: Acre, Alagoas, Amapá, Bahia, Ceará, Maranhão, Mato Grosso, Pará, Pernambuco, Piauí, Rio Grande do Norte, Rondônia, Sergipe e Tocantins, além dos municípios fluminenses de Maricá e Niterói.
Em tempo: a Anvisa tem sofrido enorme pressão para aprovar a Sputnik V, não apenas dos governadores mas também de parlamentares. No Congresso, o maior lobista é o ex-deputado federal Rogério Rosso, hoje diretor de negócios da farmacêutica União Química, que por sua vez é parceira do governo russo na produção e comercialização do imunizante no Brasil.
O governo Bolsonaro tem demonstrado forte interesse na aprovação. Seu líder na Câmara, Ricardo Barros (PP-PR), chegou a dizer que iria “enquadrar” a agência para isso. Ontem, antes da decisão da Anvisa, o ministro da Saúde havia se reunido com o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG). E, segundo o Valor, Marcelo Queiroga indicou que entre os próximos passos do combate à pandemia estariam a aprovação tanto da Sputnik V como da indiana Covaxin.
NOVOS ENTRAVES
Além da baixa com a Sputnik V, outros entraves podem impactar as estimativas para a campanha de imunização nos próximos meses, diz o Valor. A Pfizer, de quem o governo comprou 100 milhões de doses, informou que não vai apresentar informações detalhadas sobre a produção e o controle de qualidade do IFA. Legalmente, sem isso não pode ser feita a inspeção e a liberação dos lotes pelo Instituto Nacional de Controle de Qualidade em Saúde (INCQS), da Fiocruz. A farmacêutica também não vai informar “dados referentes às etapas dos processos de produção e seus respectivos controles de qualidade, bem como as especificações de liberação do fabricante, com base nas informações presentes no registro sanitário”, enumera a reportagem. Para garantir a entrega mesmo assim, o INCQS precisaria achar uma “forma alternativa” de aprovar a entrada do produto no país. Ou então o Ministério da Saúde precisaria aprovar a abertura de uma exceção específica para a Pfizer. Todos os outros imunizantes que chegam ao Brasil cumprem as exigências.
NO SENADO…
Marcelo Queiroga reconheceu que “há dificuldade” para distribuir aos estados novos lotes da CoronaVac, necessários para garantir que as pessoas tomem a segunda dose. Em audiência pública, ele disse que deve emitir uma nota técnica sobre a aplicação da vacina neste cenário… “Hoje o quantitativo de segunda dose que estamos ‘devendo’ é relativamente pequeno”, minimizou o secretário de Vigilância em Saúde, Arnaldo Medeiros.
ESCOANDO AS SOBRAS
Sob forte pressão internacional, os Estados Unidos decidiram doar 60 milhões de doses da vacina de Oxford/AstraZeneca. Mas não se sabe a data, nem quais nações serão beneficiadas. Segundo a BBC, é bem provável que a Índia esteja à frente nessa fila.
O imunizante ainda não foi aprovado pela agência reguladora dos EUA e não há previsão de quando isso deve ocorrer. Os outros três utilizados por lá – Pfizer, Moderna e Janssen – já alcançaram mais de 40% da população e estão amplamente disponíveis. Segundo a Casa Branca, 10 milhões de doses poderiam ser liberadas “nas próximas semanas”, e outras 50 milhões entre maio e junho.
COM OS BURROS N´ÁGUA
Na véspera da instalação da CPI da Covid, um juiz de primeira instância acatou o pedido da deputada bolsonarista Carla Zambelli (PSL-SP) e concedeu liminar para impedir que Renan Calheiros (MDB-AL) assuma a relatoria da comissão. Segundo Charles Morais, da 2ª Vara Federal do Distrito Federal, o fato de o senador ser pai de um governador – Renan Filho, de Alagoas – o impediria de participar da “votação” para compor a CPI na condição de relator.
Faltou ler o regimento do Senado, contudo. É que o relator não é eleito, mas indicado pelo presidente do colegiado. Tudo acontece por acordo – e este foi selado na semana passada pelo “G-7”, grupo de senadores da oposição e “independentes” que detém a maior parte dos assentos na CPI.
Se com a liminar judicial o governo tentava ao menos adiar a instalação da comissão, nem isso deu certo. Será ignorada pelo presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), com o apoio de parlamentares que não veem embasamento jurídico na decisão. “Vai haver a eleição para a escolha do presidente e do vice. Vamos fazer isso nesta terça, às 10h. Não muda nada. Não existe eleição para relator”, garantiu o senador Otto Alencar (PSD-BA), o mais velho do colegiado e responsável por presidir a instalação da CPI.
Segundo Renan, a decisão é “esdrúxula”, e foi orquestrada pelo governo Jair Bolsonaro. “Estamos entrando com recurso e pergunto: por que tanto medo?”, alfinetou. Para se esquivar de críticas, o emedebista já havia avisado pelo Twitter, na sexta, que se declarava “parcial” para tratar qualquer assunto que envolva Alagoas na CPI. “Não relatarei ou votarei”, escreveu.
Também para tumultuar a CPI, os governistas decidiram lançar candidatura própria para presidir a comissão. Trata-se do senador Eduardo Girão (Podemos-CE), o mesmo que pediu a ampliação do foco das investigações para estados e municípios.
ZUM, ZUM, ZUM
Renan Calheiros pode pedir ao STF o compartilhamento dos inquéritos das fake news e dos atos antidemocráticos. O que isso tem a ver com a CPI da Covid? Segundo a Folha, daria para avaliar se há dedo do governo federal nos disparos de conteúdos que fazem propaganda da cloroquina e outros medicamentos sem eficácia para a covid-19.
E a ideia da Casa Civil de enumerar 23 erros do governo no combate à pandemia foi recebida por parte dos senadores como uma confissão antecipada de culpa. “É um caso único de delação precoce”, ironizou o senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP), para quem dá para aproveitar na CPI o roteiro oferecido de bandeja pela Casa Civil. “Parece um guia de como o próprio governo vê onde ficou fragilizado”, observou o líder do MDB no Senado, Eduardo Braga (AM), também integrante da CPI.
Mas o marco zero da comissão será a malsucedida negociação de compra da vacina da Pfizer no ano passado, exposta na entrevista do Fabio Wajngarten à Veja. Ou seja, também foi dada aos senadores de mão beijada por um aliado do presidente. “Essa história confirma muitas coisas que nós já tínhamos suspeita, envolve mais diretamente o Palácio do Planalto”, apontou o senador Otto Alencar.
ENQUANTO ISSO…
Jair Bolsonaro continua adotando um tom golpista e tentando desviar o foco de atenção do governo federal para os estados. Em evento em Feira de Santana (BA) ontem, o presidente afirmou que “está chegando a hora de o Brasil dar um novo grito de independência”. “Não podemos admitir alguns pseudo-governadores quererem impor a ditadura no meio de vocês usando do vírus para subjugá-los’, esbravejou.
Mas Bolsonaro não chegou nem perto de concentrar as atenções. Os holofotes ficaram com Eduardo Pazuello filmado no domingo enquanto passeava sem máscara de proteção no shopping mais chique de Manaus. Ao ser abordado por funcionários do estabelecimento, fez troça: “Onde compra isso?”. A gravação teria causado irritação no Planalto, que recomendou ao general da ativa que evite mais exposição desnecessária antes de ser convocado para a CPI.
E o mar não está para peixe no governo federal, que precisou mudar o formato do encontro com ministros do TCU marcado para hoje. A ideia era promover um café da manhã com participação dos nove integrantes do órgão de fiscalização, Bolsonaro, vários ministros do governo e até o presidente do BNDES na mesma manhã em que a CPI será instalada. Mas até ontem, apenas quatro ministros tinham confirmado presença. E o mesmo número tinha declinado do convite – incluindo a presidente do TCU, Ana Arraes, o vice, Bruno Dantas, e os dois ministros que relatam assuntos da área da saúde, Vital do Rêgo e Benjamin Zymler. O Planalto resolveu chamá-los para uma videoconferência.
NAUFRÁGIO
O PL patrocinado por empresários e aprovado no Congresso que previa renúncia fiscal de até R$ 2,5 bilhões para a contratação de leitos privados para uso na pandemia foi inviabilizado por Jair Bolsonaro. O presidente vetou justamente o dispositivo que permitia a empresas e pessoas físicas abater os valores do Imposto de Renda. O veto pode ser derrubado pelos parlamentares.