A Pública conversou com fontes envolvidas na apreensão de madeira ilegal na Amazônia e revela os bastidores do lobby que provocou a notícia-crime do delegado da PF contra o ministro do Meio Ambiente
Por Alice Maciel, em Agência Pública
Passava pouco das 17 horasdo dia 17 de março, quarta-feira, quando o ministro do Meio Ambiente abriu as portas de seu gabinete para um grupo de madeireiros de Santa Catarina. Eles foram apresentados a Ricardo Salles pela deputada federal Caroline de Toni (PSL/SC) e pelo senador Jorginho Mello (PL/SC). O encontro foi agendado pelos dois parlamentares a pedido de empresários catarinenses com extensas terras no Pará, representados pelo vice-presidente regional oeste da Federação das Indústrias do Estado de Santa Catarina (Fiesc), Waldemar Schmitz, e do vereador de Palmitos, Rafael Dutra Dacroce (PP). Na pauta, a maior apreensão de madeira ilegal da Amazônia, realizada durante a Operação Handroanthus GLO pela Polícia Federal.
“Participaram da reunião alguns proprietários rurais, algumas figuras políticas, o Salles com alguma equipe dele. Nós explicamos para ele onde nós ficávamos, o que que nós fazíamos”, contou Rafael Dacroce que é irmão da médica da prefeitura de Chapecó, Francine Cella Dacroce, de 35 anos, proprietária da Fazenda Francine II, que foi alvo da operação. “Basicamente, foi uma reunião de apresentação onde políticos catarinenses que nos representaram buscaram nossos anseios como figuras públicas políticas que são”, acrescentou Rafael.
Por trás dos empresários, até então desconhecidos por Salles, está uma das principais madeireiras do Pará, a Rondobel Indústria e Comércio de Madeiras, responsável pela extração da maior parte da madeira apreendida pela Polícia Federal na operação. A empresa possui 20 autos de infração registrados no Ibama, de 2001 a 2018, cujos valores chegam a aproximadamente R$8,37 milhões, de acordo com a PF. Em nota pública divulgada em 19 de abril, a Rondobel afirma que “atua rigorosamente dentro da lei”.
Diretores da madeireira integram a Associação das Indústrias Exportadoras de Madeiras do Pará (Aimex) que fez lobby para acabar com a necessidade de que o Ibama autorize a exportação de cargas de madeiras retirada das florestas no país, conforme revelou o Intercept Brasil em parceria com o site De Olho nos Ruralistas, em reportagem publicada em março do ano passado.
Segundo Rafael, os catarinenses, donos de terras no Pará investigados na operação, possuem “parceria” com a Rondobel. “ A empresa pactua e diz: ‘eu ganho tanto, vocês ganham tanto e eu exploro, e vocês me dão a madeira’, tudo certinho”, explicou.
Conforme informações da revista Isto É, a Polícia Federal e o Ministério Público Federal (MPF) investigam a ligação de Ricardo Salles com integrantes da família de Walter Dacroce, avô de Francine e Rafael Dacroce, considerado um grileiro profissional. De acordo com a revista, ele serviria como uma espécie de “agente” que localiza terras devolutas e até de aldeias indígenas, viabiliza a grilagem por meio de parentes, incluindo seus filhos, e abre caminhos para que a madeireira Rondobel explore ilegalmente as áreas ocupadas.
A operação Handroanthus, iniciada em novembro do ano passado, concluiu que houve desmatamento ilegal, grilagem de terra, fraude em escrituras e exploração madeireira em áreas de preservação permanente. Foram apreendidos 214 mil metros cúbicos de madeira na divisa entre Amazonas e Pará, avaliados em R$129,17 milhões, a maior já registrada pela Polícia Federal.
“A gente não questiona a ilegalidade do pessoal do Amazonas, eu não posso falar por eles, mas a nossa, no estado do Pará, principalmente do nosso grupo, com a empresa ali, com a Rondobel, esses estão 100% legais”, defendeu o vereador de Palmitos.
Salles foi procurado para “resolver o problema”
Dacroce contou que o grupo catarinense procurou Salles e outros delegados da Polícia Federal para que eles os “ajudassem a resolver o problema” porque estavam “indignados” com a condução da operação liderada pelo ex-superintendente da Polícia Federal no Amazonas, o delegado Alexandre Saraiva. “Cada um na sua esfera, cada um na sua competência, ninguém fazendo pré-julgamentos, para ajudar”, observou.
A Agência Pública apurou que empresários da Rondobel se reuniram no dia 28 de janeiro com o então diretor-geral da Polícia Federal, Rolando Alexandre, e o senador Zequinha Marinho, para tratar do assunto. O encontro foi registrado na agenda oficial do delegado.
O senador Zequinha informou, por meio de nota, que, a pedido da Aimex e da Cadeia Produtiva Florestal da Amazônia (Unifloresta), “buscou as autoridades federais como forma de entender o ocorrido na Amazônia, no âmbito da Operação Handroanthus GLO”. “Inclusive, antes de abrir as tratativas com o Ministro Ricardo Salles, o senador tentou diálogo com a diretoria da Polícia Federal e com o Ministério da Justiça. O ministro do Meio Ambiente foi procurado num segundo momento para que ele pudesse ser um agente de entendimento entre as partes”, acrescentou.
Dacroce não revelou os nomes dos empresários que fazem parte do grupo catarinense citado por ele. Não conseguimos contato com Waldemar Schmitz.
A reportagem tentou contato com o senador e a deputada presentes na reunião do dia 17 de março em Brasília. A assessoria de comunicação de Caroline de Toni não deu retorno. A assessoria do senador Jorginho Mello também não informou quem participou do encontro. A Pública também solicitou ao Ministério do Meio Ambiente a lista de todas as pessoas que participaram do encontro, mas a pasta não respondeu.
Na ocasião, o ministro disse aos madeireiros que já havia marcado para a semana seguinte, dia 25, uma reunião com “o grupo” do Amazonas e de Roraima, também alvos da operação. Segundo Dacroce, Salles afirmou: “quinta-feira que vem eu tenho uma reunião com esses grupos (do Amazonas e de Roraima) para tratarem sobre essa questão de regularização fundiária, no que o ministro do meio ambiente pode auxiliar (‘no que tange à sua competência, também nunca extrapolou a competência dele’, frisou Rafael) e venham vocês juntos então, que daí a gente se apresenta todo mundo”.
Na agenda do ministro do dia 25 de março foi registrada a participação dos senadores Telmário Mota (PROS/RR), Zequinha Marinho (PSC/PA) e Jorginho Mello na reunião. A pauta: “setor madeireiro”.
Em entrevista à rádio CBN na última segunda-feira (26/04), Ricardo Salles revelou que atuou para liberar a madeira ilegal a pedido de três deputados federais e quatro senadores. “Nós fomos procurados primeiro pelo senador Jorginho Mello e pela deputada Caroline de Toni, porque são representantes do estado de Santa Catarina e parte desses empresários que se acham prejudicados são do estado de Santa Catarina, mas estão há décadas no Pará”, contou.
“Depois fomos procurados pelo senador Telmário Mota, porque os seus eleitores lá no estado de Roraima também foram objeto de fiscalização. Fomos procurados pelo senador Zequinha Marinho e Mecias de Jesus (Republicanos-RR), ou seja, eu estou lhe falando de quatro senadores. Para além disso, três deputados federais”, destacou o ministro.
A atuação de Ricardo Salles e do senador Telmário Mota na defesa dos investigados na Operação Handroanthus GLO, motivaram a notícia-crime de autoria do delegado Alexandre Saraiva, enviada ao Supremo Tribunal Federal (STF) em 14 de abril. O delegado foi demitido da superintendência da PF no Amazonas após apresentar a denúncia.
Segundo Saraiva, Salles agiu para dificultar a ação de fiscalização ambiental e “patrocina diretamente interesses privados (de madeireiros investigados) e ilegítimos no âmbito da Administração Pública”, além de integrar, “na qualidade de braço forte do Estado, organização criminosa orquestrada por madeireiros alvos da Operação Handroanthus com o objetivo de obter, direta ou indiretamente, vantagem de qualquer natureza”.
Em entrevista à rádio CBN na segunda-feira, Ricardo Salles disse que a notícia-crime é “absurda e sem fundamentos” e que o delegado Alexandre Saraiva teria preparado o documento logo depois de saber que seria exonerado do cargo. “Fez em revanche, fez para ganhar holofotes”, ressaltou. “O que nós pedimos foi celeridade”, defendeu. Segundo o ministro, o delegado fez uma operação sobre a extração ilegal de madeira , mas não ouviu todas as partes, não recebeu documentos e não deu andamento ao inquérito num prazo de 120 dias.
Na última terça-feira (27/04), a ministra do STF, Cármen Lúcia, determinou que a Procuradoria-Geral da República se manifeste sobre a notícia-crime. Segundo ela, os fatos narrados são de “gravidade incontestável” e envolvem “tema de significação maior para a vida saudável do planeta, como é a questão ambiental”.
Plano de ação
Foi na reunião do dia 25 de março com a presença dos madeireiros investigados, de deputados, senadores, representantes da Polícia Federal, do Ministério da Justiça e do Ibama, que o ministro Ricardo Salles planejou sua primeira expedição ao Pará para averiguar as toras de madeiras apreendidas na operação Handroanthus GLO.
“Neste dia nós falamos para ele (Ricardo Salles) uma frase que foi: ‘olha, se tiver pessoas com mais e melhores documentos que as nossas terras ali, no estado do Pará, na nossa região, a gente entrega a fazenda de presente para quem mostrar isso’. Daí ele gostou e falou, ‘ah, então nós vamos conhecer esse caso de vocês’ e convidou o presidente do Ibama, convidou algumas lideranças políticas. Ele quis entender, mas em momento nenhum ele fez um pré-julgamento de olha, ah, vocês estão certos, então vamos liberar a madeira amanhã’”, contou Rafael Dacroce.
O ministro desembarcou em Santarém seis dias depois do encontro, em 31 de março. Ele foi até Cachoeira do Aruã, no Rio Arapiuns, onde a PF fez as apreensões. Salles e sua equipe foram recebidos pelos madeireiros.
“Fomos hoje a Cachoeira do Aruã, no Pará, analisar o rastreamento da madeira extraída. As etiquetas em cada tora indicam o local exato de onde foram extraídas, conforme o plano de manejo florestal aprovado. Escolhemos alguns exemplos aleatórios e fomos conferir lá no meio da floresta. Andamos muito de carro e a pé até chegar no ponto exato de onde teria sido tirada, e bateu certinho. Além disso, tiramos amostras para comparação no teste do DNA. Há gente séria fazendo o trabalho direito. Não é correto demonizar todo o setor madeireiro. É preciso identificar os criminosos e puni-los duramente, mas sem generalizar”, defendeu Salles em suas redes sociais.
“Ação do governo”
Na semana seguinte, em 07 de abril, Ricardo Salles retornou ao Pará e se encontrou pela quarta vez com os madeireiros investigados, em um hotel em Santarém (PA), para que eles apresentassem os documentos exigidos pela PF. “Essa não é uma ação do ministro Ricardo Salles, essa é uma ação do governo que foi acionado pelo Legislativo para que respondesse finalmente”, discursou o ministro durante o encontro.
Nesta viagem, ele foi acompanhado pela presidente da Comissão de Meio Ambiente da Câmara dos Deputados, a deputada federal Carla Zambelli (PSL/SP), e pelo senador Zequinha Marinho.
Conforme informações da Polícia Federal, de 52 processos solicitados, apenas 11 pastas foram entregues durante a reunião em Santarém. “Em todos os processos examinados foram constatadas diversas fraudes, o que demonstra que os processos de licenciamento analisados foram produzidos e aprovados sem consistência técnica, apenas como meio de “legalizar” a madeira a ser extraída”, destacou o delegado Alexandre Saraiva em sua participação na audiência pública na Câmara dos Deputados, na segunda-feira (26/04).
Ainda na visita ao Pará no dia 07 de abril, Ricardo Salles gravou um vídeo no pátio da Fazenda Francine II – que está registrada em nome da irmã do vereador Rafael Dacroce – defendendo a legalidade da extração e da ação dos madeireiros. Na cena, divulgada nas redes sociais da deputada federal Carla Zambelli, o ministro aparece à frente da placa da fazenda, advogando a favor dos empresários.
A imagem foi usada para embasar a notícia-crime da PF do Amazonas. “A título ilustrativo, pode-se mencionar que o Plano de Manejo Florestal da Fazenda Francine II, titular de um dos pátios de madeira visitado pelo Ministro, apresenta diversas falhas que comprometem todo o Plano de Manejo Florestal, como a omissão e exploração em Áreas de Preservação Permanente – APP”, denunciou Alexandre Saraiva.
No texto da notícia-crime, o delegado destacou que “a documentação entregue na reunião convocada pelo Ministro de Estado Ricardo Salles e pelo Senador Telmário, descortinou uma fraude na titulação de terras em nome de terceiros com a utilização de títulos de região que dista do local mais de 500 quilômetros”.
Durante audiência pública na Câmara dos deputados, ele reforçou essa denúncia ressaltando que de todas as fraudes detectadas, “a grilagem de terra em larga escala”, foi a mais grave. Segundo o delegado, os processos que autorizaram a exploração da madeira apreendida, “possuem um vício de origem insanável”. “Foi retirada de uma terra que não pertence àquelas pessoas, apesar de ter um documento que comprova a propriedade daquela terra”, justificou.
Família Dacroce e as terras no Pará
Em 1986, o governo do Pará realizou uma licitação para distribuir terras em um assentamento que foi denominado Trairão. Esse assentamento estava em área da União e, por isso, apesar de ter sido feito todo o procedimento licitatório, por uma ação do Incra e da Funai, o procedimento não foi concluído. “Ou seja, as pessoas que adquiriram a terra não tomaram posse da área”, explicou o delegado Saraiva em audiência pública na Câmara dos Deputados.
Passados 32 anos, em 2017, o governo do Pará começou a fazer uma permuta dessas terras. Em nenhum dos 11 casos avaliados pela PF, de acordo com o delegado, “há correspondência entre os antigos licitantes (compradores) e os novos nomes”.
“Antigos compradores teriam transferido a posse para os novos proprietários sem qualquer anuência daqueles, ou seja, os antigos compradores sequer teriam conhecimento dessa permuta”, ressaltou Saraiva. Ele observou ainda que “os documentos fundiários, requisito indispensável para a realização de planos de manejo florestal, são fraudulentos”. “Apesar disso, foram analisados os planos de planejo”, acrescentou.
O pai de Francine e Rafael Dacroce, Leonir Dacroce, presidiu a Associação dos Proprietários do Projeto Integrado Trairão, em 1991, que à época tentou suspender a portaria de número 220/90 da Funai e do Decreto 98.865/90, “relativos à interdição da área destinada à garantir a vida e o bem-estar dos índios da etnia Kayapó, nos municípios de Altamira e São Félix do Xingu, no Pará”.
Além da Fazenda Francine II, alvo da Operação Handroanthus GLO, a família possui hoje, pelo menos, outras duas áreas no Trairão adquiridas por meio de permuta, de acordo com informações extraídas do Diário Oficial do Pará: a Fazenda Francine I, em nome de Leonir Dacroce com área de 368,4648 hectares, localizado no Município de Aveiro Estado do Pará e uma área de 1.826,2994 hectares, localizada na Gleba Paru II, Município de Prainha (PA), em nome de Rafael Dacroce. De acordo com o vereador de Palmitos, a titularidade das terras foi feita dentro da lei.
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Foto do encontro com Salles com os madeireiros postada nas redes sociais do vereador Rafael Dacroce e da deputada Caroline de Toni (Reprodução Facebook)