A nova ofensiva do agronegócio sobre a educação

Agronegócio quer ditar os rumos da educação brasileira. Campanha “De olho no material escolar” incita perseguição a professores e professoras. Representantes do agronegócio se articulam para interferir no currículo e no material didático de escolas públicas e particulares e na formação de professores.

Por  Geoagrária

Um grupo de mulheres ligadas ao agronegócio, que se autointitulam “mães do agro”, iniciou ano passado uma campanha denominada “De olho no material escolar”. Segundo suas fundadoras, diante do acompanhamento mais sistemático das atividades escolares realizadas por seus filhos e filhas no contexto do ensino remoto, perceberam que haveria em muitos materiais didáticos mentiras sobre a realidade do campo brasileiro, com críticas indevidas ao agronegócio.

Iniciaram assim uma ampla movimentação visando pressionar escolas e editoras a alterar os materiais didáticos e o próprio Ministério da Educação a rever orientações curriculares, de modo que materiais didáticos e currículos passassem a expressar o que dizem ser a visão correta sobre o agronegócio brasileiro.

Uma das principais formas de ação incentivada pela campanha “De olho material escolar” é que as mães[1] fiscalizem os materiais utilizados nas escolas e a forma como o agronegócio é retratado neles. Sugerem que sejam feitas fotos, vídeos, ou registros quaisquer dos materiais utilizados, de forma a comprovar os problemas presentes nos materiais didáticos.

Entre os principais aliados deste grupo de mães na crítica aos materiais didáticos está o ex-deputado pelo PSDB Xico Graziano, que tem divulgado uma série de vídeos afirmando que livros didáticos e apostilas propagam uma “imagem negativa e preconceituosa do agronegócio sem embasamento científico”. Em vídeo postado em suas redes sociais no dia 10 de outubro de 2020, o ex-deputado afirma que analisou apostilas de várias escolas particulares, começando pela rede Anglo e constatou “erros, desatualizações, ideologia”.

Marcos Fava Neves é outro importante aliado da campanha e chegou a divulgar, em vídeo publicado no canal Terraviva, um roteiro para que as “mães do agro” avaliem os materiais didáticos dos seus filhos. Entre as orientações está a busca por termos “ultrapassados” como latifúndio e proletário.  Além disso, incentiva a gravação de aulas e reclamações das mães contra professores e conteúdos abordados relacionados ao agronegócio. Destaca também que os professores de Geografia e História são os mais doutrinadores e difusores de ideologias esquerdistas.

As líderes da campanha “De olho no material escolar” também têm buscado se articular com parlamentares da Bancada Ruralista (cujo nome oficial é Frente Parlamentar da Agropecuária – FPA), que representa os interesses do agronegócio no Congresso Nacional.

O deputado federal Jerônimo Göergen (Progressistas – RS), por exemplo, integrante da FPA, participou de uma entrevista junto com Xico Graziano no dia 13 de outubro no programa “Liberdade Econômica – o Brasil livre para crescer”, veiculado no Youtube, na qual ambos criticam as apostilas do grupo Anglo e do grupo Somos, que juntos possuem mais de 305 mil alunos. Segundo Xico Graziano, essas redes possuem materiais que prejudicam a imagem do agronegócio. O grupo Somos um dos maiores grupos empresariais que atua no setor educacional do Brasil, possuindo atuação em vários campos, tais como: sistemas de ensino, editoras, plataformas digitais etc. Em meio a críticas ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), aos governos petistas e acusações de doutrinação por parte de “professores esquerdistas”, em especial de Geografia e História, defendem a revisão dos materiais didáticos empregados por essas redes particulares de ensino.

Mas, além de incidirem sobre as escolas particulares, as articulações desencadeadas pela campanha “De olho no material escolar” se desdobraram em ações junto ao Ministério da Educação (MEC), com o intuito de promover alterações nas orientações curriculares e no Programa Nacional do Livro e do Material Didático. Nota publicada na coluna da jornalista Mônica Bergamo, na Folha de São Paulo no dia 19 de outubro de 2020, informa sobre uma ação do deputado Jerônimo Göergen junto ao MEC, pedindo a revisão dos livros didáticos.

Matéria publicada no jornal Valor Econômico, no dia 27 de outubro de 2020, traz declarações da ministra da Agricultura, Teresa Cristina, criticando a forma como o agronegócio é retratado nos livros didáticos e se comprometendo a levar o problema para o ministro da Educação, Milton Ribeiro.

Ao que parece as articulações têm sido bem sucedidas, pois, no dia 02 de dezembro de 2020 uma das líderes da campanha “De olho no material escolar” se reuniu com o ministro da Educação, ao lado de vários parlamentares da FPA para apresentar a  campanha e debater ações do MEC. Em vídeo publicado no dia seguinte a essa reunião, a mesma liderança afirma que o agronegócio vai indicar representante para a comissão de avaliação dos livros didáticos do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) do MEC.

No dia 13 de dezembro, o deputado Jerônimo Göergen fez uma postagem em suas redes sociais, em que afirma ter formalizado junto ao MEC um pedido de informações sobre os critérios de escolha e produção de materiais didáticos. Em ofício, o parlamentar cobra uma revisão dos materiais didáticos por possuírem conteúdo ideológico que formam juízo de valor contra o agronegócio e o produtor rural brasileiro.

Em entrevista ao Programa República do Agro, veiculado no Canal Terraviva, no dia 05 de novembro, o ex-ministro da Agricultura no governo Lula, Roberto Rodrigues, e um executivo do Somos, Mario Ghio, sinalizaram parcerias entre o Grupo, entidades patronais e empresas do agronegócio para contribuir na indicação de pessoas para colaborar na revisão da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e na formação de professores, bem como, fomentar a produção de materiais complementares ou alternativos aos atuais.

Em Abril de 2021, a campanha “De olho no material escolar” realizou uma reunião com o secretário de educação do estado de São Paulo com a intermediação do deputado federal Geninho Zuliani (DEM-SP). O secretário Rossieli Soares da Silva relatou ter ficado empolgado com a iniciativa e se colocou a disposição para estabelecer parcerias. É importante destacar que Rossieli chegou a ser Ministro da Educação no governo Temer. No período que trabalhou no ministério, participou ativamente da construção da BNCC para a Educação Infantil e o Ensino Fundamental, homologada em dezembro de 2017 e da BNCC do Ensino Médio, homologada em dezembro de 2018.

Todas essas ações têm sido coordenadas pela campanha “De olho no material escolar”, que se organizou em Grupos de Trabalho (GT) que se dedicam a diferentes ações: (1) produção de dossiês contra materiais didáticos, a partir do envio de vídeos de “mães do agro”; (2) Frente nacional das escolas particulares, com o objetivo de pressionar a rede particular para alterar os seus materiais próprios; (3) parceria com a Sociedade Rural Brasileira (SRB) para incentivar a produção de material didático próprio e pressionar o mercado editorial; (4) parceria com professores e profissionais do agronegócio para a realização de palestras em escolas e visitas a empresas e propriedades rurais; (5) criação de uma biblioteca virtual sobre o agronegócio voltada para a formação de professores.

As informações elencadas acima, obtidas a partir de pesquisas realizadas em redes sociais, revelam uma profunda articulação de setores do agronegócio para disputar o sentido da educação realizada no Brasil. Trata-se de uma disputa ideológica profunda, cujo objetivo é aprofundar a hegemonia do agronegócio, afirmando-os como um dos pilares da economia e da sociedade brasileira, e silenciando qualquer perspectiva crítica sobre as implicações econômicas, sociais e ambientais. Buscam, através da campanha “De olho no material escolar” a todo custo impedir que nas escolas públicas e particulares se debata sobre desmatamento e queimadas, sobre trabalho escravo e superexploração do trabalho, sobre concentração fundiária, da riqueza e da renda, sobre a violência no campo, como se tudo isso fosse coisa do passado e não existisse mais no campo brasileiro, no qual reinaria o agro pop, tech, tudo…

Trata-se de uma ofensiva muito mais profunda que as já detectadas por estudos como o de Lamosa (2016) sobre o Programa Agronegócio na Escola, seja por sua escala – nacional ao invés de local – seja pela incidência sobre a própria política pública de educação, através da investida sobre a BNCC, o PNLD e a política de formação de professores.

Diante da gravidade da ofensiva, urge que professores, professoras, movimentos sociais e sindicais, associações científicas e educacionais reajam, pois o que está em jogo, para além da preservação da liberdade de professores e professoras, é o próprio debate sobre o papel social da educação: se uma educação pública e democrática ou se uma educação a serviço de interesses particulares de um dos segmentos mais retrógrados da sociedade brasileira, disfarçado sob o verniz das tecnologias mais modernas.     

Maio de 2021

GeoAgrária – Grupo de Estudos, Pesquisas e Extensão em Geografia Agrária da FFP/UERJ

GTAgrária – Grupo de Trabalho sobre Assuntos Agrários da Associação dos Geógrafos Brasileiros – Seções Rio de Janeiro e Niterói


[1] O fato de ser uma campanha direcionada exclusivamente às mães diz muito sobre o caráter patriarcal do agronegócio, afinal a educação dos/as filhos/as é vista como tarefa apenas das mulheres e não como uma responsabilidade conjunta de pais e mães. Além do caráter machista, podemos também destacar o racismo, uma vez que, dentre outras questões, em mais de 50 vídeos analisados não há nenhum em que apareça uma mulher ou um homem negro,

Link do texto em formato pdf para download:  https://drive.google.com/file/d/1OZurN0lE5citTubJ8TRfcwjt4zO5Ek1-/view?usp=sharing

Enviada para Combate Racismo Ambiental por Thiago L. Silva.

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